JOÃO PEDRO GEORGE
Os historiadores dos séculos futuros estudarão o culto do indivíduo incontornável como um dos traços maiores da sociedade portuguesa no momento actual
“Os incontornáveis”
A sociedade portuguesa é formada por dois blocos: os indivíduos que são passíveis de ser contornados e os indivíduos que não são passíveis de ser contornados. Aqueles constituem a massa anónima e indistinta, estes remetem para os seres excepcionais, aqueles que, sendo objecto de profundo respeito e admiração, adquiriram o título de “incontornáveis”. Os incontornáveis, como sabem os meus pacientes leitores, não são pessoas como as demais. São sujeitos que suplantaram os seus contemporâneos, que não foram absorvidos pela maioria total, que asseguraram o seu triunfo sobre a despersonalização da sociedade de massas, e que, por isso, porque evitaram a indiferença e a insignificância, adquiriram a categoria de personagem nacional. Quem se der ao incómodo de consultar a Internet notará que vivemos imersos em personalidades, referências, vozes, rostos, nomes e figuras incontornáveis. E que, embora esteja bem distribuída por todos os sectores sociais, a extensão das suas aplicações na política, em particular, é surpreendente.
Na realidade, o uso do vocábulo “incontornável” no discurso político é vertiginoso, pulula sem cessar. Como a lista não tem fim, limito-me aqui às notas de pesar ou de condolências. Vejamos o Partido Socialista: para o PS, António Arnaut é “uma incontornável referência ética e política de todos os socialistas portugueses”; Nuno Teotónio Pereira é uma “figura incontornável da história da moderna arquitectura portuguesa”; Edmundo Pedro constituiu “uma incontornável e perene referência de coragem e combate político”; Alfredo Bruto da Costa ficará para a história como “um rosto incontornável da luta contra a pobre- za e a exclusão social em Portugal”; Mário Soares é “uma figura incontornável da História de Portugal”, ao mesmo tempo que “uma figura incontornável da nossa integração europeia”; Almeida Santos é uma “figura incontornável da democracia” e, simultaneamente, uma “figura incontornável da construção democrática e da descolonização”; José Policarpo é uma “figura incontornável da sociedade portuguesa das últimas décadas”; e Nicolau Breyner é uma “figura incontornável da cena cultural do País e de Lisboa”. Se caminharmos por dentro do Executivo de António Costa, verificamos que “incontornável” é um estado que se repete em quase todos os indivíduos ilustres que faleceram desde que o XXI Governo Constitucional tomou posse, a 26 de Novembro de 2015. Neste âmbito, o ministério da Cultura oferece-nos muitas ocasiões para observarmos a difusão geral deste conceito: Júlio Pomar é uma “figura incontornável na cultura e na história das artes visuais portuguesas”, Armando Baptista-Bastos é uma “figura incontornável do jornalismo português”, Guida Maria é uma “personalidade incontornável do teatro português”, Maria Helena Rocha Pereira é uma “figura incontornável da cultura portuguesa”. Mas o vocábulo incontornável não se reproduz de boca a boca apenas no Governo de António Costa. Também o encontramos, em diversas
combinações, nos discursos dos Presidentes da República, desde Jorge Sampaio (“Melo Antunes é uma referência incontornável da nossa vida pública”) a Aníbal Cavaco Silva (consultando o arquivo da sua Presidência, as variantes não podiam ser mais imaginativas: António Feio é uma “figura incontornável do teatro, cinema e televisão em Portugal, ganhando ao longo dos anos a estima de todos os Portugueses” e Henrique Viana é uma “figura incontornável do teatro, cinema e televisão em Portugal, ganhando ao longo dos anos a estima de todos os Portugueses”), passando por Marcelo Rebelo de Sousa (Paquete de Oliveira “deixa um contributo incontornável no jornalismo” e Nuno Rocha é “um nome incontornável na história do jornalismo”). Dir-se-á que os mortos causam muito trabalho aos políticos e que a arte da política não está na diversidade das coisas ditas, mas na intensidade com que se exprime o mesmo de sempre; dir-se-á que a linguagem não tem de ser necessariamente um sinal de reflexividade ou de actividade intelectual, serve também para desembaraçar os políticos da espinhosa tarefa de pensar e de expressar sentimentos; dir-se-á que o significado não é a única nem a mais importante dimensão das palavras, há também a sonoridade ou a fonética, e que os políticos, como os poetas, são gozadores da música que as palavras produzem.
Não sei. O que sei é que assistimos hoje à ascensão de um novo tipo de indivíduo e de um novo objectivo ou ambição, uma nova justificação da existência. Hoje, não há maior e mais legítima aspiração, para um português, do que transformar-se em incontornável, inscrever-se na categoria de incontornável. Todos sonhamos com isso: ser incontornáveis. Num certo sentido, o indivíduo incontornável é um pouco como o filósofo para os antigos gregos ou o guerreiro conquistador para os antigos romanos, é o herdeiro dos grandes profetas e dos grandes génios. É, em suma, o herói, a regra e o princípio fundador do nosso tempo.
Se é verdade que podemos reconstituir a mentalidade de uma determinada época partindo da utilização abundante de certas palavras, tão abundante que ultrapassa os limites que a razão aconselha, de uma coisa podemos estar certos: os historiadores dos séculos futuros estudarão o culto do indivíduo incontornável como um dos traços maiores da sociedade portuguesa no momento actual.