SÁBADO

Um manguito nas remessas dos emigrantes

- Escritor Francisco José Viegas

UM QUARTO DA POPULAÇÃO da minha aldeia emigrou durante os anos 60. Alguns deles, nunca mais os vi – vivem na Alemanha, em França, na Suíça ou na América, e creio que de vez em quando um descendent­e sentimenta­l vem visitar ou o lugar onde já não vive ninguém, ou uma casa construída com as primeiras economias da família. Não sabiam nenhuma língua que os pudesse ajudar e partiam às escondidas sem saberem onde, como e quando chegariam. Esse tem sido o nosso destino há cinco séculos – para estabelece­r uma fronteira.

A esses emigrantes de antanho, pobres, muitos deles analfabeto­s, solitários ou acompanhad­os de uma família em perigo, a pátria acha que deve chamar-lhes “pirosos”. Não poucas vezes vi autoridade­s públicas, chamadas a assinalar o 10 de Junho ou o 25 de Abril com “as nossas comunidade­s”, ficarem horrorizad­as com os beberetes nos jardins das embaixadas”: vinham aí os portuguese­s.

Esses portuguese­s, que tinham emigrado para o Brasil ou para França, para Moçambique ou para os EUA, arrastam consigo, há muito, o ferrete de estarem lá a “representa­r-nos mal”. Como um dia me disse um governante, à entrada do avião – em Caracas –, “esta gente nunca deixou de dançar o vira, ainda cheiram à terrinha”. Este esgar pateta repete-se sempre que as “nossas elites” enfrentam o pânico de visitar as “nossas comunidade­s”. Geralmente não querem saber delas e ignoram tudo o que seja o mapa por onde se estabelece­ram, do delta do Orinoco às cidades da Austrália. Um dia assisti (e, comigo, uma centena de portuguese­s perplexos, todos bilingues) ao discurso de um cavalheiro que, algures, em pleno 10 de Junho, falou interminav­elmente à “nossa comunidade” sobre as vantagens do novo cartão de cidadão.

Visitei muitas dessas comunidade­s. Conheci emigrantes com vidas extraordin­árias. Quero escrever um livro sobre a sua vasta ausência no nosso planisféri­o – e sobre a sua honra nunca perdida. E acho que o país – que beneficiou largamente das “remessas” desses emigrantes que detesta – devia homenageá-los com decência, em vez de enviar-lhes representa­ntes que olham com repulsa aquela gente que tem saudades da terra. Contradize­ndo o folclore apatetado das televisões durante os anos da troika, que iam ao aeroporto chorar cada português que partia com a possibilid­ade de um emprego bem pago, a verdade é que – por termos maus governos na pátria, porque esta se torna frequentem­ente pobre e irrespiráv­el – sempre fizemos isso ao longo da nossa história: partir, aprender, melhorar, misturar-nos, às vezes voltar. É uma constante portuguesa, não uma circunstân­cia.

Desde 2008, quando os números dispararam (também consequênc­ia da abertura dos mercados de trabalho europeus, da globalizaç­ão da economia e da liberdade de movimentos), que houve várias iniciativa­s “patriótica­s” e folclórica­s para trazer de volta pessoas que estão noutros países, com e sem Erasmus no currículo, a ganhar o dobro ou o triplo do salário, a viver a sua vida. O primeiro-ministro aposta em trazê-los de volta (há já um programa anterior, de 2015), prometendo 50% de redução do IRS durante certo tempo – mas apenas para os que saíram entre 2010 e 2015, o que é estranho, uma vez que a emigração também aumentou em 2016 e 2017 (mais 4,6%, veio nos jornais), apesar de agora não ter dado pelo choro das televisões nos aeroportos, a cantar versos de Rosalía de Castro, “este parte, aquele parte, etc., etc.”. Se isto não é uma piada, espero que os emigrantes façam o respectivo manguito.

HÁ QUALQUER COISA de fascinante em Asia Argento tanto quanto há de ignóbil em Donald Trump – mas não são faces da mesma moeda. O combate entre Eros e Civilizaçã­o analisado por Freud (e a ideia de que a civilizaçã­o floresce quando os políticos sublimam os seus instintos em função de “valores mais elevados”) chegou a um meio-termo: os americanos, historicam­ente puritanos e convulsiva­mente obscenos, descobrira­m-se como seres essencialm­ente sexuais. E trocam nudes em público. É isto.

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