Requiem por Jan Palach
Foi exactamente há 50 anos que o “comunismo” soviético esmagou a Primavera de Praga, através da Operação Danúbio. Meio milhão de homens, 6 mil carros de combate e 800 aviões da URSS, Bulgária, Polónia, Hungria e, reticentemente, da RDA invadiram a República Checa para impor a paz dos cemitérios, cortesia do Pacto de Varsóvia.
Três meses depois, no princípio de Novembro, na mesma capital, não muito longe do cruzamento entre as ruas Zitna e Stepanska, o exilado núcleo do PCP na Checoslováquia reunia-se com o SG Álvaro Cunhal, no salão de uma ONG médica internacional. Desencadeou-se aí uma tempestade, com militantes indignados face à repressão, a pedir ao partido a denúncia exemplar da ingerência do Kremlin numa nação soberana. “Félix”, um eslovaco que ajudou a organizar o encontro, falou-me em 1993, em Berlim. Lembrava-se do drama como se fosse ontem. Disse-me que os comunistas portugueses dissidentes se inspiravam precisamente na oposição albanesa, jugoslava e romena, “das entranhas do socialismo”, ao acto imperial de Moscovo. Mas este fora santificado por Cunhal, o detentor da última palavra, em nome de um “bem maior”: a “unidade” do bloco “anticapitalista” mundial. A tese da direcção do PCP era simples: os tanques da URSS limitavam-se a impedir o avanço da “contra-revolução”, apoiada pela “CIA e pelo imperialismo”.
Claro que esta era também a versão do Kremlin, apesar de nenhuma cabeça coroada da burguesia ocidental ter levantado um dedo pelos resistentes de Praga. E não nos esqueçamos de que houve cerca de 700 mortos e feridos civis.
A coragem dos comunistas que se opuseram a Cunhal tem de ser lembrada. Era bom que o PCP de hoje reconhecesse o delito de 1968, e reabilitasse os seus militantes. Em Janeiro de 1969, o estudante de História e Economia Política Jan Palach, de 21 anos, decide imolar-se pelo fogo, na Praça Venceslau, na mesma cidade ocupada de Praga. Tinha seguido os protestos dos monges budistas contra a guerra do Vietname. Conhecia bem toda a literatura eslava sobre o sacrifício. Correu-lhe uma lágrima, que todos viram, quando comungou pela última vez antes do acto: no fundo, iria cometer um suicídio.
Deixou uma carta, e, durante três dias de sobrevivência depois das queimaduras em 100% do corpo, explicou-se à interrogadora dos serviços de segurança.
“Porque fizeste isto?”, perguntou a polícia, com voz embargada. “Quis exprimir o meu protesto contra este estado de coisas, e despertar as pessoas”, responde Palach, enegrecido e agonizante, mas com voz serena. “Portanto, querias revoltar a opinião pública?”
“Sim.” A voz torna-se mais lenta. “E como, concretamente?” “Ateando-me fogo.” “Ateando-te fogo... Mas que é que esperavas mesmo alcançar?”, continua a funcionária, quase maternal. “A abolição da censura e o bloqueio do noticiário Zpráv (boletim oficial da ‘nova verdade’ soviética)”, responde Palach, com voz subitamente mais forte.
“Todos vimos o que fizeste. Mas o que é que isto significa?”, continua a funcionária.
“Não queremos ser presunçosos” (tosse e murmura), “mas simplesmente temos de deixar de pensar demasiado em nós mesmos. O Homem deve lutar contra o mal com que pode lidar”. A voz extingue-se. José Valle de Figueiredo e Manuel Rebanda compuseram o seu Requiem
por Jan Palach, canção que caiu mal na outra Primavera Marcelista, como um hino em que se sintetiza tudo isto. O homem em chamas, como outrora o reformador João Huss, como os operários, estudantes, agricultores, artesãos e poetas da Moldávia, de Pilsen, da Eslováquia e da Boémia, sacrificava-se ali por uma questão de consciência.
Esta semana, em Vilnius, ministros dos ex-estados invasores e invadido, e da Roménia, da Croácia e dos Bálticos, decidiram “uma cooperação reforçada na investigação e denúncia dos crimes dos regimes comunistas”. Começa a fazer-se justiça a Jan Palach e aos dissidentes portugueses.