O HOTEL DE AMÁLIA E HUMBERTO DELGADO
Foi um dos mais importantes de Trás-os-Montes no século XX – a fadista cantou da varanda da suíte e o general sem medo discursou em campanha. Agora reabre portas, mas como hospital, já em Setembro. Recordamos as melhores histórias.
Faltavam três semanas para as eleições presidenciais e Humberto Delgado andava em campanha pelo País quando parou no Hotel Tocaio, em Vila Real. Foi precisamente à frente do hotel que o general discursou e, no pico da euforia, subiu para o capô de um Ford Zephyr, enquanto era aplaudido pela multidão.
O almoço de dia 22 de Maio de 1958, uma quinta-feira, realizado pela Comissão de Recepção ao General Humberto Delgado, foi no famoso salão do hotel. Serviu-se sopa camponesa, tortilha à transmontana, pescada dourada, vitela assada e arroz de forno e fruta, mostra uma ementa especial do Hotel Tocaio, criada para a ocasião. Aliás, todas tinham uma recordação especial: um autógrafo do general sem medo.
Francisco Seixas da Costa, o ex-secretário de Estado e embaixador nas Nações Unidas, lembra a passagem do candidato. “Só tinha escola à tarde, e então recordo-me de que pelo meio-dia devo ter ido ver o Humberto com o meu pai. Era uma situação invulgar, afinal ele vinha a uma cidade conservadora e pacata. Ainda movimentou umas dezenas de pessoas.” Também o viu a colocar uma coroa de flores junto da estátua de Carvalho Araújo, um oficial da marinha e herói da Primeira Guerra Mundial, a uma centena de metros do hotel. Esse dia foi marcante pela confusão e por uma “sensação de mudança”, adianta.
A história do Tocaio – inaugurado no fim do século XIX – confunde-se com a história da cidade de Vila Real. Falar de quem por lá passou é recordar escritores famosos, festas intermináveis, um gerente sério que se torna fadista pela noite e acordeonista pela madrugada, uma estrela do rock que se apaixona em pleno concerto ou um piloto da II Guerra Mundial acidentado.
Este último episódio aconteceu em 1958. Pierre Clostermann, um dos maiores asas dos Aliados na II Guerra Mundial, o piloto francobrasileiro, terá passado uma ou duas noites no Tocaio, depois de ter feito uma aterragem de emergência ali perto, na Campeã, freguesia a 24 quilómetros.
Acabou por ir para Vila Real enquanto o avião não ficava pronto para descolar novamente. O pai de Francisco Seixas da Costa aproveitou a rápida passagem do piloto-estrela pela cidade para o conhecer: “O meu pai era maluco por coisas relacionadas com a guerra. Tinha o livro dele,
O Grande Circo, por isso levou-o e foi-lhe pedir um autógrafo. Ainda o tenho lá em casa.”
Quando havia visitas especiais, até se formava fila à entrada do hotel, que fica na antiga Praça de Lopo Vaz. Miúdos e graúdos vinham de papel e caneta pedir autógrafos. Um deles era Manuel Cardona,
“VER HUMBERTO NUMA CIDADE CONSERVADORA E PACATA ERA INVULGAR”
que se recorda de ter feito isso mesmo em miúdo. Foi a 24 de Janeiro de 1953 que ganhou coragem para pedir um autógrafo a Maria Dulce. A actriz, na altura também uma adolescente, estava de visita à cidade com um grupo de teatro – mas ainda era lembrada por ter participado na adaptação ao cinema de Frei Luís de
Sousa, pelo cineasta do Estado Novo António Lopes Ribeiro. Manuel Cardona guarda essa fotografia autografada até hoje.
Amália à varanda
No fim da década de 70, foi Amália Rodrigues quem fez furor. Foi tocar a uma festa privada, no aniversário de Taveira da Mota, empresário de sucesso de Vila Real, dedicado à compra e venda de bacalhau. “Na altura tinha só 17 anos, mas como me dava bem com o filho dele… acabei por ir à festa”, conta Joaquim Barreira, investigador histórico do arquivo municipal da cidade.
Foi um espectáculo de sumptuosidade: a quinta estava toda iluminada e Amália Rodrigues não foi a única convidada. “Eu estava mesmo entusiasmado era de ver a dupla Ouro Negro [o grupo de Raúl Indipwo e Milo MacMahon]”, adianta. Quanto à fadista, a sua noite de espectáculo não ficou por ali, acrescenta Manuel Cardona: “Estava com uns copinhos de vinho maduro e já era madrugada quando veio a cantar para os varredores, os almeidas.” Fez o caminho a cantar até ao Tocaio e depois subiu ao quarto – à suíte, o melhor quarto que o hotel tinha – e saiu para a varanda. Ficou a cantar para a rua. Ninguém se esqueceu da visita da artista. Mas houve personalidades que foram menos notadas – como Jorge Amado. O autor de Capitães da
Areia e Tieta do Agreste terá sido hóspede do Tocaio durante alguns dias, nos anos 60. “Na altura não era muito conhecido, não foi assim um acontecimento”, lembra Adélia, exrecepcionista. Era “gordinho e muito simpático”, diz. E até lhe ofereceu uma prenda: “Deixou-me um livro, talvez fosse Gabriela, Cravo e Canela, vinha com uma dedicatória.” Entre os hóspedes mais famosos ainda estarão, provavelmente, os dois ícones do automobilismo internacional, o inglês Stirling Moss e o francês Jean Behra (o primeiro quatro vezes vice-campeão de Fórmula 1 e o segundo reconhecido piloto na mesma categoria), que correram na cidade. É que pelo menos uma vez por ano a completa loucura e animação estava garantida em Vila Real: com as corridas de automóvel no circuito. Começaram no início do século, nos anos 20, mas tiveram o seu período de glória na década de 60. Até havia quem acampasse na rua, lembra Manuel Serôdio. Um dos oito filhos do proprietário do hotel guarda memórias vivas desse período de loucura. “Havia corredores de Fórmula 3 com quem era preciso ter cuidado. Lembro-me de um grupo que às 3h da manhã ataram os lençóis às varandas [do Tocaio] e desceram para a rua.” Entre muita animação – e copos – armava-se uma confusão e ruído tais que a esquadra da polícia, que não estava a mais de 100 metros, rapidamente era alertada. “Depois sabe como é: vinha a polícia, eles pediam desculpa e pagavam os prejuízos. Sabe que os ingleses têm vocação para estas circunstâncias.” Manuel começou a trabalhar no Tocaio em 1974. Estava a terminar o 12º ano em Lisboa quando rebentou o 25 de Abril, que o obrigou a regressar à sua terra. Voltou para dar ajuda ao pai no negócio, a supervisionar toda a logística. “Era preciso acartar os legumes e a fruta e também a lenha, para as caldeiras de aquecimento”, explica. “E era preciso garantir que a roupa que era lavada
A RECEPCIONISTA DO HOTEL RECORDA JORGE AMADO COMO “GORDINHO E MUITO SIMPÁTICO”