O almoço
da candidatura de Humberto Delgado começou com sopa camponesa, pescada, vitela e fruta. Cada ementa tinha um autógrafo do general e uma fotografia
no rio por umas senhoras, na Timpeira [arredores da cidade], chegava em condições. Isto 365 dias por ano, 24 horas por dia.”
Como tudo começou
Se o Hotel Tocaio fosse um filme, seria realizado por Wes Anderson. Uma espécie de Grande Hotel Buda-
peste em ponto pequeno. A fantasiosa comparação começa na fachada antiga, de meados do século XIX, com as suas varandas alinhadas e os elegantes gentleman de bigode e óculos na ponta do nariz sentados de perna cruzada, à entrada. Manuel Serôdio conta que tudo começou com o bisavô, João Inácio Tocaio. Terá sido ele o primeiro homem à frente desta casa que ficou com o seu sobrenome, ainda no fim do século XIX. Em 1891, já há referências ao hotel no semanário O Vilarealense: conta-se como lá trabalhava um funcionário que gostava de pregar partidas ao Sr. Tocaio – e de como certa vez lhe apresentou uma galinha como uma só perna, fazendo-o crer que se tratava de uma rara espécie. Algumas edições depois, a referência volta a aparecer: desta vez para noticiar que o Tocaio instalava campainhas eléctricas.
Numa altura em que cafés e restaurantes ainda não proliferavam, os hotéis e as pensões eram ponto de encontro para a gente mais rica e influente que por aqui fazia refeições: políticos, médicos, advogados. Mas apesar de o Tocaio contar uma história de elite, também vai, alternadamente, fazendo um relato próximo,
TUDO COMEÇOU COM JOÃO INÁCIO TOCAIO E JÁ EM 1891 HAVIA REFERÊNCIAS AO HOTEL DE VILA REAL
Q da comunidade. Tanto hóspedes habituais como forasteiros e caçadores procuravam o hotel para uma pausa – e para provar os pratos. “Ganhou fama pela culinária suculenta, genuinamente transmontana”, refere o Guia de Portugal (Trás-os-Montes
e Alto-Douro, Vol. 1), publicado em 1924. “Oferecia tanto aos hóspedes habituais como aos forasteiros e caçadores que o procuravam, pela variedade quase pantagruélica dos repastos, em boa parte fornecido pelas terras dos bons vinhos, legumes, frutas, que o empresário possuía para os lados de Constantim e Sabrosa.” Em 1906, o Guia dos Proprietários
de Hotéis dava as indicações precisas aos proprietários destes espaços. “O asseio e a boa disposição da entrada do hotel e escada principal concorrem muito para atrair os hóspedes e dão-lhes logo uma ideia agradável de ordem e conforto. Assim, a entrada e a escada principal devem estar sempre no maior asseio e, sendo possível, ornamentadas de plantas, pelo menos à entrada.” Nunca saberemos se o Sr. Tocaio seguiu o manual ou mesmo o Sr. Serôdio, anos depois. Afinal, eles aventuraram-se na arte de servir, quando ainda se davam os primeiros passos no País. “Apesar de não perceber nada de hotelaria, o Sr. Serôdio era uma pessoa muito educada e fina”, conta José Aguilar, que viveu a época de ouro do hotel quando começou a trabalhar no Governo Civil de Vila Real. “Foi ele que ensinou todos os funcionários do hotel, que muitos eram trabalhadores lá da quinta [de Sabrosa].”
As festas pela noite dentro
As recordações mais vivas são as do século XX. É na década de 60 que se multiplicam os andaimes e as máquinas no quarteirão. O hotel sofre obras e cresce significativamente – desaparece a imponente fachada clássica para dar lugar a uma longa e sóbria fila de varandas. Por esta altura, o Sr. Tocaio já tinha morrido e deixado o hotel em testamento à filha, que morreu muito nova. Por isso, logo passou para a neta Adelaide, que se casou com Manuel António Serôdio. Ficaria conhecido em Vila Real como Sr. Serôdio, o homem sério, sempre impecável, de fato e chapéu de abas.
Quem se apresentava à porta da casa era ele, um dos últimos proprietários e o mais recordado. “Mesmo para a época, já tinha ar de pessoa muito antiga, vestia-se muito classicamente, andava sempre bem engravatado. Notava-se a presença dele também pelo cheiro, que se perfumava muito”, lembra Hermínio da Silva Botelho, cliente assíduo da zona social do hotel. De bigode arrebitado, era um homem sério e ríspido que se tornava boémio extrovertido quando o sol se punha. “Ele gostava de cantar, mas só cantava um fado – acho que era o Soldado que
Vais para a Guerra – e eu lá acompanhava com guitarra ou piano. As cantorias eram para impressionar as raparigas”, ri-se. Hermínio foi, durante anos, muito mais do que um cliente: foi também uma das estrelas das noites longas da cidade – era vocalista dos Rangers, banda que tocava na cidade e redondezas. “Ele era um bon vivant, daquelas personalidades que vivia praticamente fora de casa”, lembra José Aguilar. As festas que aconteciam no bar e na sala de jantar do Tocaio eram quase sempre memoráveis e longas – tinham o seu quê de loucura. “Fazia-se muito barulho lá em baixo. Então os hóspedes reclamavam e o Sr. Serôdio resolvia: mandava-os para outros quartos, noutra parte do hotel.” Assim, a festa podia continuar. Mas no horário de trabalho a postura era diferente, lembra. Era um homem que não sorria e que era exigente, apesar de sempre discreto. “Ele comandava o pessoal todo só com o olhar”.
Adélia Carvalho confirma. Entre 1967 e 1969 foi recepcionista e mulher de muitos outros ofícios no Tocaio – geria a equipa, supervisionava a limpeza dos quartos e escrevia à máquina as cartas que o dono, o Sr. Serôdio, lhe ditava. E quando terminava a hora de expediente – no máximo, saía às 22h – dava um salto até casa, que era mesmo na rua atrás do hotel, para trocar de roupa, maquilhar-se e regressar ao ponto de partida, ao bar e à sala de jantar. Para Adélia, o Tocaio era tanto local de trabalho como ponto de encontro obrigatório: para jantar com amigas ou assistir a concertos.
SR. SERÔDIO, DONO DO HOTEL, ERA UM HOMEM RÍSPIDO QUE SE TORNAVA BOÉMIO EXTROVERTIDO QUANDO O SOL SE PUNHA
Adélia lembra como até perdeu a oportunidade de assistir ao parto da sobrinha, em Setembro de 1967, culpa de uma dessas festas de arromba – apesar de estar apenas a cerca de 300 metros de onde tudo aconteceria. Quando lá chegou, a bebé já tinha nascido.
Foi em meados da década de 60 que o hotel reabriu, depois de obras: a inauguração ficou para a história. Até se organizaram dias abertos e as pessoas podiam visitar um quarto-tipo. “Lembro-me que tinha 13 ou 14 anos e fui com amigos”, conta Francisco Seixas da Costa. O hotel aumentou e apresentava novidades, como um elevador para aceder ao primeiro e ao segundo piso. Mas, por dentro, manteve-se um estilo clássico, elegante. No bar, os sofás e as poltronas em pele castanha e também de veludo, os bancos altos de madeira junto ao balcão e pelas paredes, em todas as divisões, retratos de Reis ou de outras figuras importantes. E até uma pequena fonte, com motor eléctrico, mesmo ao centro do hall, para causar espanto aos visitantes.
As festas e os Rangers
Ao dono desta ilustre casa não lhe faltava outro atributo: a criatividade. Basta lembrar uma das noites em que houve concerto no hotel, em 1967. Os Rangers, banda de cinco rapazes da cidade, que tocava em festas de estudantes, actuou num cenário improvável – debaixo de cachos de uvas e ramos de videira, era São Martinho. A recordação é de Hermínio da Silva Botelho, vocalista. Sobressai na imagem: é o rapaz de bigode e casaca comprida, de cornucópias. Vestiu-se a preceito para aquela noite de espectáculo. “Foi um casaco que um amigo trouxe de Inglaterra e me emprestou para aquele concerto. Fez sucesso – fazia lembrar os casacos do Sgt. Pepper’s [Lonely Hearts Club Band]”, dos Beatles. Mas há outra noite que recorda ao pormenor, em 1968. Estava em pleno palco, a actuar, quando uma rapariga que assistia ao concerto lhe chamou a atenção: “Tinha um lenço ao pescoço que ligava muito bem com o cabelo curto, parecia uma artista francesa”, conta. Depois da actuação ganhou coragem e convidou-a para dançar. Foi um romance obra do Tocaio: Hermínio e Fátima estão casados há 48 anos. Muitas terão sido as horas que Hermínio passou no hotel. A relação que os Rangers tinham com o Tocaio era de proximidade – o Sr. Serôdio cedia-lhes a cave para ensaiarem e, volta e meia, lá actuavam na zona do bar. Se havia uma grande festa na cidade, o mais provável era que tivesse as coordenadas do Tocaio. As noites continuaram a ser longas também nas décadas seguintes. As festas organizadas por Joaquim Barreira, já depois de Abril de 1974, eram concorridas. O investigador histórico do arquivo municipal da cidade conta que eram cerca de 200 os jovens que se juntavam para dançar – sempre vestidos a rigor. “Proibia as pessoas de ir de jeans ou sapatilhas. Tinham de ir de fato”, conta Joaquim Barreira, que na altura organizava as festas da juventude centrista que juntava rapazes e raparigas de todas as cores políticas. O rock é que unia aquela gente toda, a dançar, no salão de jantares do hotel.
Ascensão e queda
Se os anos 50 e 60 foram de ouro, à medida que chegamos ao fim do século XX o hotel perdeu, aos poucos, o encanto. O declínio começou em 1990, quando o Sr. Serôdio morreu e lhe sucedeu no negócio o genro, que acabou por ficar responsável pelo Tocaio meia dúzia de anos. Depois de fechar portas manteve os toldos verde-alface e o letreiro que indicava o hotel – o edifício ficou ao abandono até que, em 2016, o grupo Luz Saúde anunciou a compra para ali erguer um hospital. “Para a frente é que é o caminho. Acho bem”, diz Manuel Serôdio.
A fachada fica preservada, assim como as recordações. Adélia não esquece os concertos dos Rangers. “Gostava muito quando tocavam a
Whiter Shade ofPale, era a minha favorita.” Foi depois de ter estudado em Londres e de ter vivido nos Estados Unidos que Adélia regressou a Vila Real, para trabalhar no hotel. Mesmo depois de ter atravessado o Atlântico e de ter conhecido tudo o que por lá havia, a vida no Tocaio continuava a surpreendê-la. Aliás, suspira: “Os anos 60 foram os melhores.”
O HOTEL VAI SER UM HOSPITAL. MANUEL SERÔDIO DEFENDE: “PARA A FRENTE É QUEÉO CAMINHO”