OSGRANDES MITOSSOBRE OCANCRO
Da prevenção da agricultura biológica aos malefícios do telemóvel, pedimos ajuda a especialistas para entender algumas ideias associadas à doença.
Nos anos 70, quando começou a trabalhar, António Parreira, hoje director clínico da Fundação Champalimaud, tinha doentes relativamente silenciosos. “Era muito frequente os doentes chegarem às consultas e não fazerem perguntas mesmo quando confrontados com uma doença grave, potencialmente maligna.” Hoje o cenário é bem diferente: há quem traga documentos impressos de estudos e tratamentos. A população está mais atenta – também no tema do cancro –, mas isso não quer dizer que não existam ideias erradas, tanto no que toca às causas como às formas de tratamento. Há mitos a desconstruir.
Com a Internet e os canais de informação que se multiplicam, há mais informação correcta a circular mas também incorrecta: este ano a World Cancer Research Fund chegou à conclusão de que metade dos britânicos pensa que o stress é uma causa do desenvolvimento do cancro – enquanto que mais de metade (51%) não sabe que as carnes processadas representam um risco (duas noções incorrectas).
Mas a ideia errada mais presente entre a população não está propriamente relacionada com produtos ou práticas que provoquem ou previnam o cancro: está relacionada com a própria natureza da doença, explica António Parreira. Há cancros que está provado terem uma origem concreta – o cancro do pulmão muitas vezes surge pelo hábito de fumar e o da pele pela exposição negligente aos raios ultravioleta – mas são excepções. “Há com frequência a ideia de que o cancro ou tem origem hereditária ou é causado por algo, mas isto não é verdade. A vasta maioria dos cancros que afligem a espécie humana, provavelmente 70% ou mais, são obra do acaso”, explica à SÁBADO.
Afastar o telemóvel
“Dizia-se que usar muito o telemóvel podia fazer cancro do cérebro ou do ouvido. Não há, até hoje, nenhuma evidência científica que justifique essas conclusões”, adianta-nos António Parreira, director clínico da Fundação Champalimaud e especialista na área de hematoncologia (junção
“HÁ COM FREQUÊNCIA A IDEIA DE QUE O CANCRO OU É HEREDITÁRIO OU CAUSADO POR ALGO – NÃO É VERDADE”
da hematologia, estudo do sangue, com a oncologia, estudo da doença do cancro). “Quanto ao microondas é hoje um objecto da vida doméstica mundialmente usado: há em hospitais, nas casas, em todo lado. E não há qualquer evidência de que aquecer a comida lá provoque doenças.”
Para entender o tema faz falta uma breve aula de Física. “Existe luz de diferentes comprimentos de onda, os que são maiores do que os da luz visível, que são radiação não ionizante, e os menores do que os da luz visível, que são radiação ionizante.” Aos últimos pertencem radiações perigosas como os raios X e os raios gama (usados na Medicina). As radiações presentes nos telemóveis, wi-fi e microondas (electrodoméstico) são microondas, que estão na classe não ionizante. Sendo, portanto, incapazes de modificar os átomos e as moléculas. A aula é cortesia do físico Carlos Fiolhais. “Há mais de 10 anos que usamos telemóvel, é dos objectos mais usados pelo homem. Em Portugal creio que temos, em média, dois por pessoa. Tanto quanto sabemos não é perigoso. Se soubéssemos já haveria tácticas limitativas como há no tabaco”, reforça. O professor e físico lembra que a IARC (International Agency for Research on Cancer), da Organização Mundial de Saúde (OMS), classifica o uso de telemóveis e da rede wi-fi como “possivelmente carcinogéneo” mas não há razão para preocupações. “Significa que não há indicações de que não seja. É uma medida de precaução.” Ao longo de milhares de anos o homem tem convivido com as radiações, lembra: “Não inventámos as ondas de rádio nem os raios X, por exemplo, só os usamos ao nosso serviço.” Quanto ao uso dos telemóveis, deixa uma dica: “As pessoas deviam preocupar-se mais com os acidentes e com a saúde mental, que é um perigo real, do que com as consequências físicas da radiação que, tanto quanto se sabe, são inexistentes.”
Largar o açúcar
Por muito que tenha ouvido ou lido sobre a teoria, saiba que não é verdade: “O açúcar não alimenta as células malignas”, garante Emanuel Gouveia, médico oncologista do IPO de Lisboa. A ideia é muito frequente: “Mesmo entre doentes há muita pressão para que não consumam açúcar.” A verdade é que todas as células do nosso corpo precisam de glucose ou frutose para se alimentarem, elementos presentes em frutas, vegetais ou leguminosas. Esses açúcares naturais são necessários à manutenção da vida ao contrário das versões refinadas, criadas pela indústria. Aí é que estará a ligação indirecta com uma série de doenças, como o cancro: “Consumir muitos alimentos ricos em açúcar pode significar mais calorias do que a pessoa precisa, o que leva a excesso de peso e gordura acumulada. É esta gordura em excesso no corpo que aumenta o risco de muitos cancros comuns”, lembra o American Institute for Cancer Research.
“Pode conduzir à obesidade e a obesidade pode agravar a incidência em cancro do pâncreas e outros cancros digestivos.” Mas não é uma ligação simples, continua António Parreira: “É uma via muito enviesada de dizer que o açúcar é prejudicial.”
AS RADIAÇÕES DOS TELEMÓVEIS ESTÃO NA CLASSE NÃO IONIZANTE – INCAPAZ DE PROVOCAR ALTERAÇÕES
Escolher biológico
O Governo português quer incentivar a agricultura biológica tanto que, até 2027, o objectivo é duplicar a área deste tipo de cultivo. A indústria continua a crescer em Portugal como no Reino Unido e nos Estados Unidos onde se multiplicam as prateleiras de supermercado dedicadas aos produtos. O uso cauteloso de pesticidas e a rejeição de aditivos, antibióticos ou hormonas estão entre algumas das razões pelas quais o consumidor escolhe biológico – argumentos ligados à prevenção de doenças, onde o cancro ocupa lugar cimeiro. Mas a relação de causa-efeito (ou, neste caso, de consumo-prevenção) ainda está por provar. A World Cancer Research Fund alerta: “Actualmente não existem evidências fortes que suportem a ideia de que os alimentos biológicos oferecem uma protecção extra contra o cancro, comparados com produções convencionais.”
São estudos difíceis de levar a cabo lembra Emanuel Gouveia: “A única forma que teríamos de provar isto era criar dois grupos: quem só tivesse exposto a produtos biológicos e outro grupo de não biológicos. E esse é um estudo muito difícil de fazer. Tinha de se conseguir que as pessoas estivessem num ambiente estéril”, explica o especialista do IPO.
Mas a dificuldade nos estudos que apresentem provas mais concretas não apaga os benefícios do biológico, continua: “Aquilo que sabemos é que, eventualmente, se não formos expostos a pesticidas, conservantes e outros produtos que se adicionam aos alimentos – que podem ter risco carcinogéneo – podemos diminuir o nosso risco [de desenvolver cancro].” Biológicos ou não, é preciso consumi-los continua a World Cancer Research Fund: os vegetais e a fruta são importantes para manter a dose de fibra e de fitonutrientes. “Comer pelo menos cinco porções de vegetais e frutas todos os dias é um passo importante para prevenir o cancro.”
Evitar o stress
Metade dos britânicos acreditam que o stress causa cancro: foi a conclusão a que chegou a World Cancer Research Fund. No inquérito realizado, exactamente 50% da amostra representativa tinha esta opinião. Mas não existe fundamento científico. “Sugere-se uma ligação entre o stress psicológico – o que as pessoas experienciam quando sujeitas a
PODE HAVER UMA LIGAÇÃO ENTRE O STRESS E O CANCRO: MAS NADA ESTÁ COMPROVADO
pressão mental, física ou emocional – e um aumento do risco de cancro. Todavia não existe uma evidência forte”, garante a organização num painel de dúvidas.
O ponto de ligação pode ser indirecto: “O stress leva a comportamentos aditivos como fumar, beber ou comportamentos sexuais de risco que, esses sim, representam um aumento de risco de desenvolvimento da doença”, diz Emanuel Gouveia.
Não queimar as torradas
Pão que ficou tempo a mais na torradeira ou batatas com partes muito escuras provocam cancro? A resposta ainda não é clara, mas os especialistas alertam para que tenha cuidado. Vamos ao que sabemos: “Produtos queimados resultam do efeito do fogo e da combustão que gera propriedades carcinogéneas”, conta à
SÁBADO António Parreira.
No que diz respeito ao pão, às batatas ou ao arroz há ainda perguntas por responder mas sabemos que quando alimentos com amido (como é o caso dos anteriores) são cozinhados até ficarem escuros produz-se a acrilamida, substância que é potencialmente cancerígena. Não há conclusões concretas da ligação do consumo de pão queimado ao aumento de risco de desenvolver cancro mas a World Cancer Research recomenda que, na cozinha, se opte por uma cor dourada ao tostar ou assar os alimentos em questão.
Com a carne o caso é diferente. Foi em 2015 que a OMS classificou as carnes processadas como carcinogéneas. Carnes curadas, fermentadas ou fumadas estão incluídas neste grupo. “Está comprovado o maior risco de desenvolvimento do cancro gástrico”, sublinha Emanuel Gouveia.
NÃO HÁ EVIDÊNCIA DE QUE OS ALIMENTOS BIOLÓGICOS OFEREÇAM PROTECÇÃO EXTRA CONTRA O CANCRO