O restaurante japonês mais pequeno de Lisboa faz um ano
Tomoaki Kanazawa, referência na cozinha nipónica em Lisboa, desafiou-o a ficar com o restaurante que fundou antes de partir para o Japão. Um ano depois, Paulo Morais mantém a cozinha tradicional japonesa no Kanazawa e ganhou clientes.
TOMOAKI KANAZAWA não deixou livro de receitas. Deixou um vinagre de dióspiro feito por ele, um miso caseiro, mercearias secas e zero indicações. Não foi um abandono, foi um presente. Em Agosto de 2017, Paulo Morais saiu do restaurante Rabo d’Pêxe, onde cozinhava peixe à carta para dezenas de clientes no Saldanha, em Lisboa, e assumiu o Kanazawa: oito lugares por noite em Algés para fazer cozinha kaiseki, menus de degustação tradicionalmente japoneses. Um ano depois, nesta segunda vida do Kanazawa, o restaurante é menos restritivo, todos os meses cria
menus radicalmente novos e há mais clientes.
Não há barulho entre o balcão de oito lugares e a pequena cozinha do Kanazawa à hora do jantar. Miyuki Kano, que se
Um ano depois, o Kanazawa é menos restritivo, há menus radicalmente novos todos os meses e mais clientes
ocupa da pastelaria, circula entre os dois espaços para fazer o serviço de sala enquanto Paulo Morais prepara nirigis no balcão – rala wasabi, mexe no peixe com gestos certos e automáticos, deixa os clientes de boca aberta quando rala um fígado de tamboril salgado, cozido e congelado sobre um nigiri. Lá dentro, Hugo Barreiros vai fazendo sair outros pratos, assim como Lhapka, o único que fala japonês. Umas horas antes, entre a pre- paração do jantar e a primeira reserva, não havia silêncio na esplanada da churrasqueira, a uns metros do restaurante. É aí que se faz o intervalo na jornada: o chef compra uma litrosa de cerveja e uma garrafa de 7 Up para traçar o álcool. Há que manter a concentração. A descontracção da equipa que tira umas horas diárias para uns passeios de skate passou para as regras do restaurante. “Num restaurante pequeno, estraga a experiência quando há perfumes muito intensos. O Tomo avisava que não se podia aparecer lavado em perfume. O
chefjá não faz isso”, recorda Hugo depois de ter embrulhado umas vieiras em folhas de bambu para a noite. Também passou a haver vinho e já não se vedam as refeições a crianças, embora Paulo Morais avise logo que não há menu infantil – fazem o kaiseki como os adultos, com algumas adaptações, se necessário. “Quando comecei, o objectivo era aguentar um ano”, conta Paulo Morais. “Não é fácil: são só oito lugares, e nem sempre são oito lugares. Não sabia se ia conseguir ter as contas pagas. Tem de ser-se consistente, mas hoje não basta ser bom. Às vezes penso: eu quero ir experimentar tantos restaurantes que acabo por esquecer os que já existem. É muito importante a comunicação”, continua o chef. Começou a trabalhar com uma agência de comunicação, a Chefs Agency, no início do ano, na mesma altura em que começou a apostar nos wagashi ,os pequenos doces japoneses para o lanche. O menu totalmente novo todos os meses também motivou uma maior comunicação e criou clientes fiéis. “Há um ano conhecemos o nosso melhor cliente”, comenta, enquanto
“Quando comecei,o objectivo eraaguentar umano.Nãoé fácil:sãosóoito lugaresenem sempresãooito lugares”
revisita o livro de marcações. “Foi o que mais menus experimentou. Enquanto ele continuar a aparecer, está tudo a correr bem.”
Se a cozinha kaiseki é a arte do sazonal e do local, é esta a maneira de fazer uma cozinha japonesa tradicional a milhares de quilómetros do Japão. É um desafio criativo que nunca deixa ideias esmorecer, até porque foi a possibilidade de um trabalho mais original que trouxe o
chefportuguês até aqui. Perto do final do mês, a equipa vai até ao Lugar do Olhar Feliz, a quinta no Alentejo que produz uma grande variedade de fruta e legumes orientais e tropicais. Começam a pensar em ingredientes e com isso vêm as técnicas. “Às vezes o chefvai dizendo ‘Miyuki faz isto, Hugo faz aquilo’ e nós não estamos a ver nada, mas no final junta-se tudo e faz muito sentido”, conta Miyuki que, apesar dos avós japoneses, só começou a fazer doces japoneses e a arranhar palavras nipónicas desde que chegou ao Kanazawa. O telefone toca agora mais vezes e normalmente é Paulo Morais quem atende. Responde principalmente em inglês – boa parte dos clientes é estrangeira, turistas que fazem a rota dos Michelin da capital. “Que’rremmn hambúrgueres”, brinca com a equipa depois de atender um destes telefonemas. Um ano de casa já lhes deu umas quantas histórias: volta e meia há quem peça faca e garfo, o que magoa o coração de um
sushiman, e o restaurante já se viu obrigado a cobrar taxa de rolha por refrigerantes comprados numa loja ao lado para acompanhar um dos menus que varia entre os €60 e os €150. “Nunca tive dúvidas de que queria aceitar isto”, recorda Paulo Morais. Tomo saiu a 31 de
Kaiseki é sazonal e local: é assim que se faz uma cozinha tradicional japonesa apesar da distância
Julho, Paulo começou a 2: “Só me disse ‘o gás liga-se ali, a electricidade aqui, o armazém é lá em baixo. Sê feliz.’” Depois do primeiro objectivo cumprido, no próximo ano Paulo Morais lançará um livro com os ingredientes, as receitas e as histórias por trás dos menus do Kanazawa nos últimos 12 meses. Para os próximos anos há a ideia de insistir nos fermentados feitos na casa e de organizar jantares com antigos alunos de Paulo Morais (dá aulas há mais de 20 anos). Depois, o ideal era abrir uma casa para a pastelaria japonesa, onde pudesse explorar os doces de pasta de feijão e alguns cruzamentos com o paladar português. E claro: entretanto, nessa altura, já o guia Michelin há-de ter dado por esta esquina perto da estação de Algés, em Lisboa.