Portugal
Foram revolucionários, deputados, autarcas e governantes. Hoje são agricultores, cantores e empreendedores. Começar uma nova etapa não é fácil. Mas tende a ser mais agradável.
Memória Colorir fotos: as imagens centenárias da História de Portugal são agora mais reais
MacárioCorreia EX-SECRETÁRIO DE ESTADO DO AMBIENTE E PRESIDENTE DAS CÂMARAS DE TAVIRA E DE FARO
Macário Correia não parece o mesmo: perdeu uns 20 kg, usa botas enlameadas, um cinto preto esfarelado e tem a marca do pólo desenhada a branco na pele bronzeada. Ninguém diria que ainda há seis anos este agricultor era presidente da Câmara de Faro e um dos homens mais poderosos do Algarve. Vendo-o assim, é difícil crer que alguma vez saiu da serra do Caldeirão, onde nasceu há 61 anos no seio de uma família de lavradores, e de onde contempla hoje as suas laranjeiras e alfarrobeiras: “A minha mãe nasceu na Picota, o meu pai naquele monte e eu já nasci além, mais perto do barrocal. Nos anos 50, havia cinco vezes mais população, estava tudo lavrado. Mas os jovens foram saindo para França, Alemanha, Argentina, Marrocos. A serra ficou ao abandono”. A desertificação daquelas terras, diz, acompanhou-o até aos gabinetes dos municípios – “foi sempre uma grande preocupação”. Que, segundo ele, o levou a licenciar indevidamente três moradias e duas pisci- nas em zona protegida pela Reserva Ecológica Nacional (REN), o que conduziria a uma sentença de quatro anos de prisão com pena suspensa e à perda de mandato em Faro. “Autorizei três casais jovens a morar na serra. Não me arrependo e acredito que um dia serei medalhado por isso”, diz. “Nessa altura, irão per-
guntar-me porque não licenciei 30 ou 300 casas.” Macário deixou de acreditar na justiça. E da política não sente saudades: “Não tenho qualquer vontade de voltar a ter um cargo político.” E a política é prejudicial à saúde: “Eu estava obeso, tinha o corpo entorpecido e análises pouco saudáveis. Desde que saí, perdi peso e sinto-me bem. Os políticos têm tendência a ser gordos, fumarem e a deitarem-se tarde, porque perdem tempo em reuniões com pessoas que gostam de se ouvir a si próprias.” Subir e descer montes e conduzir tractores passaram a ser os exercícios do social-democrata. “Entreguei as chaves do carro da câmara num fim de dia e antes do nascer do sol já estava a trabalhar nos campos. Não fiquei nem um dia parado em casa”, diz, no alpendre de uma casa de família que reergueu das ruínas para arrendar. Emparcelou 180 migalhas de terra em dois terrenos grandes; na de baixo, laranjeiras, limoeiros e medronheiros; em altitude, a 3 km, alfarrobeiras. “Como político, dediquei-me aos problemas dos outros e nunca tratei do meu património. Agora quero instalar os meus sucessores. Basicamente, sou capataz do meu filho, que é o jovem agricultor titular.” Trabalha ainda como consultor independente na área da energia e do ambiente e na gestão de instituições de solidariedade social. Expressa opiniões que dificilmente tornaria públicas se ainda fosse autarca: “O Estado alimenta uma corja de centenas de milhares de pessoas que não querem trabalhar. Temos de importar trabalhadores para a apanha das laranjas porque a malta desempregada nas cidades prefere andar nos cafés, a fumar, a beber uns copos e a ir à Segurança Social arranjar carimbos para receber para o mês que vem.”
Zita Seabra REVOLUCIONÁRIA NA CLANDESTINIDADE, EX-DEPUTADA DO PCP (1980-87), DEPUTADA NA X LEGISLATURA E VICE-PRESIDENTE DA COMISSÃO POLÍTICA NACIONAL DO PSD (2007-2008)
Zita Seabra é uma personagem densa e cheia de reviravoltas, outrora comunista, hoje liberal, ateia no prefácio, católica na conclusão. Foram os livros que influenciaram as grandes decisões da sua vida: leu Os Subterrâneos da
Liberdade, de Jorge Amado, e quis ser a heroína, pelo que se tornou revolucionária na clandestinidade e comunista ortodoxa até conhecer
O Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin, e abandonar com estrondo o Partido Comunista (PCP), em 1988. “A minha saída foi dramática. Era revolucionária profissional e não sabia fazer mais nada. Procurei na indústria dos livros, mas o meio intelectual era dominado pelo PCP e ninguém me dava emprego”, lembra. “Acabei por entrar na Quetzal como editora. Mas decidi naquele instante que não ia depender mais da política. Fazer por gosto, sim, mas nunca estar amarrada a ela.” Após passagens pela Quetzal e pela Bertrand, fundou a Alêtheia, editora que ainda dirige. Eram tempos de composição a chumbo, máquinas de escrever e telex. Agora, em Óbidos, à secretária da gráfica Várzea da Rainha – onde tem o livro da feminista marroquina Fátima Mernissi Rêve
des femmes, que pensa editar – conjuga um novo segmento de mercado: impressões de livros a pedido. “Alguém escreve um livro ou encontra o livro de receitas da avó e quer ter 20 ou 50 exemplares... envia-nos o ficheiro Word, diz se quer revisão, paginação ou capa, e nós imprimimo-lo ao seu gosto.” Por ali já passaram obras de Pedro Chagas Freitas, antes dos tops de vendas. O último foi de um dono de um café no Sabugal. Em 2005, voltou ao Parlamento pelo PSD. Uma desilusão: “Tinha
“ERA REVOLUCIONÁRIA PROFISSIONAL E NÃO SABIA FAZER MAIS NADA”, RECORDA ZITA SEABRA
O FOGO DE OUTUBRO DE 2017 CHEGOU PERTO DAS TERRAS DE ANTÓNIO CAMPOS. QUEIMOU OS PÉS, MAS SALVOU AS ÁRVORES
muitas saudades, mas percebi rapidamente que não era o que tinha visto anos antes. Os deputados tinham perdido toda a capacidade de intervenção. Por vezes, nem nos apercebíamos do que estávamos a votar”, lamenta. Abandonou de vez em 2009, com pensão vitalícia, rejeitando mesmo o convite de um dos políticos que mais admira: Pedro Passos Coelho. “Em vez de se renovar, o PSD voltou às pessoas do costume e envelheceu. Basta olhar para os partidos europeus do centro para ver que de tanto envelhecerem alguns já morreram”, avisa. Nunca será passiva politicamente, afirma: “Vou a cafés, tertúlias e gosto de falar de política. Conspirar? É o melhor que a política tem.” Continua a ter muitos amigos no meio. Até no PCP, onde foi maldita durante décadas. Dos políticos que editou, Vasco Graça Moura foi o melhor: “Ninguém dominava a língua portuguesa como ele. Traduzia versos de Petrarca no avião entre Bruxelas e Lisboa quando era deputado europeu. Uma vez, em Pádua, ganhou um prémio pela melhor tradução mundial e brindou a assistência com uma oração a Nossa Senhora em italiano antigo. E nas noites eleitorais mandava-me SMS divertidíssimas em rima.”
Zita diz que não vai voltar à política, mas jamais virou as costas à mudança: “Há dois tipos de pessoas pa- radas no tempo: os dinossauros, que rejeitam a evolução, como alguns dirigentes do PCP; e os Peter Pan, que não assimilam as experiências de vida. A mim nunca me vão ouvir dizer que paro aqui. Sempre me senti livre para mudar.”
AntónioCampos FUNDADOR DO PARTIDO SOCIALISTA, EX-SECRETÁRIO DE ESTADO E EURODEPUTADO
Nunca, em 79 anos, António Campos sofreu um susto como a 15 de Outubro de 2017, quando um monstruoso incêndio se acercou da sua propriedade, em Oliveira do Hospital: “Era como se estivéssemos num vácuo e os ventos de todos os quadrantes confluíssem para aqui, arrastando as chamas”, diz. “Estava com o meu filho e com a minha nora e combinámos atirarmo-nos para a piscina se o fogo chegasse. Felizmente, foi parado pelos carvalhos americanos. Não dormi para combater o incêndio. Quando, de manhã, chegou a empregada, pedi-lhe para me tirar as botas. Só então notei que a borracha tinha derretido e que tinha os pés queimados.” Quando se retirou da política, em 2005, Campos regressou à casa de infância, onde tinha crescido com uma fotografia do republicano Afonso Costa – “durante muito tempo julguei que era o meu bisavô” – na mesa-de-cabeceira e com conspirações contra o Estado Novo em redor da lareira. “Mesmo em Lisboa, nunca me desliguei da terra. Sempre fiz passeios para rever penedos, pedras e árvores de que me lembro desde miúdo”, afirma. Para evitar incêndios como os que tinham destruído o concelho em 2003 e 2005, juntou dezenas de jovens qualificados no arranque da BLC3, uma incubadora de startups local que promove a bioeconomia do território através da investigação: aproveitar os matos para biodiesel e potencializar os produtos regionais, como o queijo da serra e a pêra-passa de Viseu, estão entre os projectos em desenvolvimento. “O governo está a apostar
em aviões, bombeiros e maquinetas de jardim do século XX ”, diz. “Mas o fogo é um problema que só pode ser combatido através da reflorestação com espécies autóctones como o carvalho e o castanheiro e o investimento em biotecnologia. Mas nada é feito. A BLC3 espera há dois anos pela aprovação de um projecto-piloto para a refinaria, com que ganhou vários prémios internacionais.” “Nos primeiros dois anos, sou eu que podo as macieiras para lhes dar forma. É como se fizessem parte de mim”, diz. Levanta-se às 9h30m, mantém o hábito de ler os jornais e dedica ao campo o resto do dia. À noite, janta com o filho mais velho, principal razão pela qual decidiu passar a terceira idade em Oliveira do Hospital: “Os meus netos emigraram todos e este é o único dos meus filhos que se interessa pela natureza e pela agricultura”, explica. De resto, é o sofrimento de viver no interior: “Um outro país, sem jovens nem estruturas, longe daquele à beira-mar plantado.” E recorda uma história; em 1975, Mário Soares pediu ao congénere alemão Willy Brandt para lhe enviar um especialista em ordenamento do território. Chegou Henry Walter, que durante um ano traçou uma estratégia e um mapa de estradas para Portugal. “No fim, disse a Soares que o interior de Portugal se devia tornar num destino de luxo para reformados europeus ricos. O Soares zangou-se e recambiou-o para a Alemanha”, recorda. “Mas, se calhar, o Walter tinha razão.” Se voltasse a ter 30 anos, gostaria de fundar um novo partido. Não seria socialista: “Seria o Partido do Interior.”
LuísGomes EX-DEPUTADO E EX-PRESIDENTE DA CÂMARA DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO (2005 – 2017)
No dia em que foi entrevistado pela SÁBADO, Luís Gomes, que há menos de um ano ainda era presidente da Câmara de Vila Real de Santo António, no Algarve, entrara para o 9º lugar do iTunes e preparava-se para cantar na gala da Casa dos Segredos. “Eu sempre gostei de cantar. O meu pai tocava na filarmónica de Castro Marim e eu aprendi música desde os 7 anos. Cantava na igreja, tocava órgão, clarinete e guitarra”, diz. “Finalmente, a vida proporcionou-me ser cantor. O Baby Lores, um artista cubano, ouviu-me a cantar no ensaio dele e convidou-me para tocarmos juntos”. Nasceu a Baby Lores & Luís, dupla emergente no reggaeton/pop latino. Em 2016, o autarca estreou-se num bar chamado 3y8, em Havana, Cuba. Desde então, já deu muitas dezenas de concertos em Portugal, em Cuba e até em Miami. “Mas o melhor concerto foi o primeiro em Vila Real, em 2016, porque nunca um presidente da câmara tinha cantado em público. Tinha de quebrar o estereótipo de que um político não pode ter passatempos e vida própria”, diz. “Muita gente disse-me que ficava mal. Até os meus filhos ficaram reticentes. Mas correu muito bem. Tive tanta gente como nos comícios e até uns adversários políticos na última fila. O povo acarinhou-me. Nessa altura, até toques de telemóvel tinham a minha música.” O single Dime Por Que tornou-se um sucesso: faz parte da banda sonora da telenovela A Herdeira , da TVI, e foi dos temas mais tocado nas rádios cubanas. Algo com que Luís nunca sonhou: “Se alguém me tivesse dito há três anos que iria actuar em Miami, em Cuba ou mesmo que ia gravar uma música, chamar-lhe-ia maluco”, confessa. Pedro Santana Lopes, uma das pessoas a cuja crítica submete todas as faixas que grava, foi um dos primeiros a pressagiar o êxito. Hoje, o algarvio sonha com um Grammy: “Já estive mais longe”, atira, entre risadas.
Após 12 anos à frente dos destinos da câmara, Luís sabia que a retirada não ia ser simples. “Estamos habituados a mandar e, de repente, tudo acaba. No dia seguinte, o motorista já não te vem buscar e deixas de poder decidir”, diz. “Há muitos ex-presidentes que não conseguem digerir isso e zangam-se com os sucessores, tentam continuar a mandar. É ridículo. Eu procurei preparar-me muito
DEU CONCERTOS EM MIAMI E A SUA MÚSICA ESTÁ NA BANDA SONORA DA NOVELA A HERDEIRA
antes e fiz o desmame aos poucos.” Ainda assim, há eleitores que o continuam a abordar na rua como presidente da autarquia. Porém, o seu gabinete é agora no estúdio que montou no sótão de casa, onde gravou a maioria das canções. A um canto, um quadro de Fidel Castro (embora de centro-direita, celebrou um convénio com Cuba na área da saúde) e no outro, um maior, em que aparece retratado enquanto político, mais gordo, de camisa enfiada dentro das calças e um relógio clássico. Hoje usa uma camisa cintada e um smartwatch. Uma vez cantor latino, é possível regressar à política? “Porque não? Gostava de fazer parte de um governo com a pasta de administração e ordenamento do território”, diz.
DanielFangueiro EX-LÍDER DA JSD
A lista de ex-presidentes da Juventude Social Democrata (JSD) está cheia de ilustres: Duarte Marques é deputado, Jorge Moreira da Silva foi ministro do Ambiente e Pedro Passos Coelho chegou a primeiro-ministro. Daniel Fangueiro nem na política está: “Apanhei um momento muito tumultuoso”, lamenta o empresário, de 38 anos, que assumiu a liderança quando o PSD perdeu o poder para José Sócrates. Fangueiro, que entrara no universo social-democrata fascinado pelos debates e pela elaboração de propostas para a sua freguesia em Matosinhos, não gostou de conhecer a faceta menos genuína da política. “Quando atingimos cargos que dão acesso a lugares de vereador, de candidato a deputado, mediatismo e ordenados simpáticos, começamos a perder muito tempo a gerir a estrutura e as sensibilidades. E apercebemo-nos de que há pessoas que estão lá por objectivos pessoais. Tudo isso é desgastante e não guardo saudades”, afirma. “O único sítio em que perdi amigos foi na política.” Guarda, não obstante, boas recordações dos encontros com Marques Mendes, dos jantares com Marcelo Rebelo de Sousa e do congresso na Madeira em que ensinou anedotas a Alberto João Jardim. Mas em 2007 não se recandidatou: “Não me apetecia – nem me apetece – fazer no partido todo o percurso que já tinha feito na Juventude. Para mais, com uma situação que me parece ainda mais agitada do que na minha época”, justifica. Terminou o curso de Gestão, completou o mestrado e começou a trabalhar – primeiro em conteúdos multimédia para televisão e depois em consultoria financeira. Especializou-se na área tecnológica, na qual acabou por fundar e tornar-se um dos sócios da VisionTechLab, uma promissora startup na área da cibersegurança: “Estamos a desenvolver um software que detecta ataques informáticos e que, com recurso a inteligência artificial, trabalha os dados para identificar os padrões de comportamento dos hackers de modo a gerar mecanismos de segurança para a rede de uma empresa”, explica. Foi uma das 12 companhias seleccionadas entre 600 para um programa de inovação na Holanda, onde Daniel esteve três meses a receber formação, a apresentar o projecto e a angariar parceiros e financiadores. Além disso, são os representantes ibéricos de uma startup israelita vocacionada para o aperfeiçoamento dos motores de busca e para o despiste tecnológico de branqueamento de capitais. “Nesta área, os profissionais não se interessam muito por política.”
CHEGOU A CONTAR ANEDOTAS A ALBERTO JOÃO JARDIM E TEM BOAS MEMÓRIAS DOS JANTARES COM MARCELO