SÁBADO

Inge Feltrinell­i (1930-2018)

Primeiro, como fotógrafa, privou com quase todas as celebridad­es da primeira metade do século XX. Depois, tornou-se uma das mais emblemátic­as editoras mundiais

- W

Inge nasceu e cresceu na pior altura (anos 30) e no pior local (Alemanha) para se ser descendent­e de judeus. No turbilhão da guerra, os pais separaram-se (o pai, judeu “puro”, emigrou para os EUA) e Inge sobreveria para criar, nos anos 50, uma curta mas intensa carreira como fotógrafa.

De facto, Inge será, em pouco mais de uma década, uma minirretra­tista oficial do século XX: no seu portefólio estão Pablo Picasso, John F. Kennedy, Greta Garbo e Winston Churchill, mas também Marc Chagall, Alfred Hitchcock, Henry Miller, Karen Blixen, Bertolt Brecht, Audrey Hepburn, Gary Cooper, Charles Bukowski, Simone de Beauvoir e até Fidel Castro a jogar basquetebo­l em Havana. Em Cuba houve ainda Ernest Hemingway. Numa das suas imagens mais conhecidas, Inge aparece num barco com o escritor, mais o barqueiro deste e um espadarte de 30 quilos acabado de pescar. A estrela da foto é ela – pela energia, sensualida­de e carisma que emana. A imagem é de 1953 e um ano depois Hemingway ganharia o Nobel. Será essa foto a servir de capa para um livro de 2013 que reunia as melhores imagens de Inge. A carreira começara quase por acaso, meros três anos antes dessa foto com Hemingway. Inge, que acabara de chegar aos 20 anos, passeava em Hamburgo – onde ganhava algum dinheiro como modelo e se começara a interessar por fotografia – quando um homem a abordou na rua e, intrigado pela máqui- na, lhe perguntou se era fotógrafa. Era Hans Huffzky, fundador de uma importante revista na altura, a Constanze. Audaz, talentosa, descontraí­da, com muita lata e a sorte de estar muitas vezes no local certo na altura certa (a icónica foto de Greta Garbo, incógnita a assoar-se num semáforo em Nova Iorque é um exemplo) fizeram o resto. Depois da Constanze, chegou à Paris Match eà Life.

NUMA DAS SUAS IMAGENS MAIS ICÓNICAS, APARECE COM HEMINGWAY, MAS É ELA QUEM BRILHA

A grande mudança

Em finais de 50, Inge conheceu aquele que viria a ser o seu marido (até lá assinava Inge Schoenthal). Com este casamento, em 1960, mudaria também a sua vida. Adeus fotografia­s, olá livros. Ele era Giangiacom­o Feltrinell­i, herdeiro de uma imensa fortuna e uma figura peculiar, que congregava em si alguns conceitos que não costumam andar juntos: intelectua­l e extremista político armado (chegou a criar uma organizaçã­o paramilita­r), milionário e esquerdist­a. Giangiacom­o começou na resistênci­a a Mussolini e aderiu ao PC italiano no pós-guerra. Fundou em 1954 uma editora, a Feltrinell­i, que juntava a paixão pelos livros com o combate político – o primeiro livro que lançou foi a autobiogra­fia de Nehru. Em 1957, a Feltrinell­i foi a primeira editora no mundo a lançar

Doutor Jivago, de Boris Pasternak. Por ser um romance pouco socialista, a sua publicação indignou o PC italiano e a URSS (duas entidades com quem Giangiacom­o já estava incompatib­ilzado). Giangiacom­o Feltrinell­i morreu em 1972 num atentado à bomba, ou do seu próprio descuido a fabricar uma bomba (há várias teorias).

Inge herdou a Feltrinell­i por inteiro, ainda que já a governasse na prática, devido às actividade­s e exílios do marido, principalm­ente desde 1967. A ponte que Giangiacom­o faz com a América Latina nunca se vai perder, tendo a editora publicado em Itália os novos valores da língua castelhana nas Américas, a começar por Gabriel García Márquez. Houve ainda os argentinos Che Guevara e Borges e depois, nas décadas seguintes, a nata da literatura mundial. O grupo editorial passa agora para as mãos do filho Carlo (em 1999, contou em livro, Senior Service ,a história do pai), que há muito dividia a gestão da empresa com a mãe. Inge, que morreu a 20 de Setembro, será homenagead­a na próxima Feira do Livro de Frankfurt (10-14 Outubro), onde há muito era uma das estrelas.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal