HÁ 50 ANOS, CAETANO SUCEDEU A SALAZAR. OS FILHOS RECORDAM
O pai saiu uma vez de casa à noite sem dizer nada e ao regressar contou que tinha havido um golpe. Ana Maria e Miguel lembram os últimos anos de Marcelo Caetano: na política e em família
Aprocuradora-geral da República entrou na terça-feira de manhã bem cedo no gabinete do ministro da Defesa Nacional com toda a operação policial já na rua. Quase à mesma hora que Joana Marques Vidal comunicava a Azeredo Lopes que o director da Polícia Judiciária Militar (PJM), coronel Luís Augusto Vieira, ia ser detido no âmbito de uma investigação, até agora em segredo, à recuperação das armas do paiol de Tancos, os procuradores titulares do processo, Vítor Magalhães e João Melo, entravam no edifício do Estado-Maior General das Forças Armadas, na Rua Gonçalves Zarco, no Restelo, e dirigiram-se ao chefe de gabinete do chefe de Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte. Foi ao major-general Figueiredo Feliciano que coube dar ordem de prisão a Luís Augusto Vieira e entregar-lhe o despacho de indiciação por vários crimes graves. Joana Marques Vidal cumpria a lei, notificando o superior hierárquico do coronel da PJM, no caso o ministro da Defesa, mas acabava, também, de consumar a sua verdadeira despedida do cargo, quatro dias depois de ter sido anunciado o nome da sua sucessora, Lucília Gago – com o desfecho de um inquérito cuja abertura foi determinada por ela própria. Ao mesmo tempo deixou um problema para o Governo resolver: desde que o arsenal de armamento foi furtado do paiol de Tancos que António Costa manteve sempre a confiança no ministro da Defesa, Azeredo Lopes. Este, por sua vez, contra todas as críticas, segurou o chefe do Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte. E o que a investigação da Polícia Judiciária e do Ministério Público veio a concluir é que houve envolvimento de militares em crimes graves, relacionados com o desaparecimento e a posterior recuperação de armamento militar. O director da PJM foi indiciado por crimes de denegação de justiça, prevaricação, favorecimento pessoal praticado por funcionário. Mas entre os crimes imputados aos oito arguidos há verdadeira artilharia penal: associação criminosa, falsificação de documentos, tráfico de influência,
JOANA MARQUES VIDAL INFORMOU O MINISTRO DA DEFESA DA PRISÃO DO DIRECTOR DA PJM
favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder, receptação, detenção de arma proibida e tráfico de armas. Acções cometidas num contexto complexo de guerra entre polícias que envolveu tentativas de influenciar o próprio Presidente da República, alegadas fugas de informação para o presidente do PSD, Rui Rio, e o mais recente pedido do CDS para ser criada uma comissão de inquérito ao caso de Tancos.
Entre os detidos na investigação estão além de Luís Vieira, dois responsáveis da PJM (um deles major, colocado no Porto) e de três militares da GNR de Loulé, um deles que liderava o Núcleo de Investigação Criminal. Além disso, foi ainda pedida a detenção do antigo porta-voz da polícia militar, major Vasco Brazão, actualmente em missão na República Centro-Africana, que liderou a investigação ao caso da morte dos comandos e que participou no inquérito inicial ao furto do armamento de Tancos. Mais do que isso, foi também preso o principal responsável pelo roubo: um algarvio já referenciado pela polícia.
Fuga a Ivo Rosa
A investigação que foi conhecida esta terça-feira foi iniciada por determinação de Joana Marques Vidal depois de, a 18 de Outubro de 2017, o material de guerra furtado de Tancos ter sido recuperado pela PJM. À época, a PJM disse ter recebido uma denúncia anónima que alertou para a presença de armamento num terreno baldio na Chamusca. Só depois de transportarem o armamento para Santa Margarida é que os militares anunciaram que uma equipa da PJM, em colaboração com elementos do núcleo de investigação criminal da GNR de Loulé, que estavam em diligências na região, tinham recuperado o arsenal roubado. Num contexto de desconfiança mútua entre polícias, a Judiciária suspeitou desde o início que algo não batia certo. E na sequência de uma informação elaborada pelos procuradores do DCIAP, Vítor Magalhães e João Melo, com várias in- congruências inexplicáveis, Joana Marques Vidal ordenou a instauração de um inquérito autónomo para investigar a recuperação das armas. Em coordenação com a judiciária, os procuradores do DCIAP tentaram por todos os meios evitar que voltasse a acontecer o que sucedeu no âmbito do inquérito original ao furto das armas: ver diligências inviabilizadas, que podiam mesmo ter evitado que o roubo ocorresse. Como a SÁBADO noticiou em Julho do ano passado, antes do desaparecimento das armas de Tancos, em Abril de 2017 a PJ do Porto recebeu uma denúncia anónima que dava conta da preparação de um assalto a uma instalação militar da região centro. A informação foi remetida ao Ministério Público local e foram pedidas escutas telefónicas aos suspeitos – um deles informador da própria PJ. No entanto, o juiz de instrução que recebeu o inquérito entendeu que seria um magistrado da comarca de Leiria a ter competência sobre o caso. Este, por sua vez, considerou que o caso devia ser enviado para o Tribunal Central de Instrução Criminal. Já em Junho, o inquérito chegou às mãos do juiz Ivo Rosa, que, tal como os colegas, considerou não existirem indícios suficientes para autorizar as escutas telefónicas. O roubo acabou por ser concretizado e anunciado a 28 desse mesmo mês. E a existência desta informação – não comunicada ao Estado-Maior do Exército – provocou uma desconfiança mútua entre militares e polícia civil que viria a ter consequências graves nos meses seguintes. Entre elas o fracasso de uma operação de infiltração, com recurso a um agente irlandês que se fez passar por membro do IRA, e que abordou os suspeitos disponibilizando-se para comprar o material roubado (ver caixa).
Para evitar a possibilidade de, em sorteio, o novo inquérito ser distribuído ao juiz Ivo Rosa, os procuradores do DCIAP e os inspectores da PJ decidiram levá-lo ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, onde um juiz autorizou todas as diligên-
O MATERIAL DE GUERRA FURTADO DE TANCOS FOI RECUPERADO A 18 DE OUTUBRO DE 2017
cias pedidas: escutas a todos os suspeitos, ou seja, toda a estrutura da PJM, os militares da GNR do Algarve e os autores do furto. Quando Marcelo Rebelo de Sousa começou a exigir resultados publicamente, já a investigação estava no bom caminho. O Presidente da República, apurou a SÁBADO, foi informado por Joana Marques Vital sobre a evolução do inquérito. Esse facto, curiosamente, coincidiu com declarações públicas de Rui Rio sobre o caso que caíram muito mal na investigação, evidenciando que o líder do PSD poderia ter um conhecimento sobre o processo. Nesses meses, os inspectores da Judiciária fizeram várias descobertas. A mais relevante teve a ver com a forma como as armas acabaram por ser recuperadas. “Com o impacto público do roubo, o autor começou a ficar com receio e decidiu falar com um amigo de infância que é militar da GNR a quem disse que estava por trás do roubo e que queria saber como podia resolver o assunto”, diz à SÁBADO uma fonte próxima do inquérito. “Este comunicou ao líder da investigação da GNR de Loulé que, por sua vez, tinha contactos com a PJM”, continua a mesma fonte.
Juntos, acredita a PJ e o MP, montaram um plano para simular a devolução do armamento. O objectivo seria o regresso da investigação ao furto das armas de Tancos à órbita da Polícia Judiciária Militar – cujos responsáveis sempre defenderam ser o órgão que tinha a competência para investigar o crime. Algo que nunca aconteceu, por determinação de Joana Marques Vidal que chegou a exigir pessoalmente a colaboração da PJM com os inspectores da PJ.
Uma despedida, talvez mais
A operação de terça-feira acabou por assinalar a saída pela porta grande de Joana Marques Vidal do lugar de procuradora-geral da República, depois de longos meses de polémica em torno da sua recondução ou não no cargo. Na quintafeira, dia 20, Joana Marques Vidal ficou a saber que não iria continuar através de um rápido telefonema da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. Desfazia-se por inteiro a ideia de que o Presidente da República poderia estar disponível para comprar uma guerra com o Governo em torno da sua recondução. A SÁBADO apurou junto de várias fontes que isso nunca aconteceu. Marcelo Rebelo de Sousa não afastou publicamente o cenário de uma eventual continuidade de Joana Marques Vidal mas, na realidade, nunca o disse nem à própria nem ao Governo. Um dia depois de se saber que não iria continuar, Marques Vidal foi clara: “Nunca me foi colocada a questão da recondução!”.
Na verdade, a procuradora-geral sabia que o Executivo não a queria reconduzir mas, apurou a SÁBADO, Marcelo deu-lhe alguns sinais vagos de que poderia bater-se por isso sem que alguma vez o tenha materializado. Em Maio passado, já Joana Marques Vidal estava convencida de que não só a sua saída estava decidida, mas também que o seu sucessor estaria escolhido. Admitia, porém, que o Presidente pudesse ter outra ideia mas nunca a comentou. Uma das consequências mais importantes da substituição de Joana Marques Vidal – não necessariamente da entrada de Lucília Gago para o cargo – é a mais que provável saída de Amadeu Guerra da direcção do DCIAP. Não está decidido – e até é provável que a futura procuradora-geral da Repúbli-
O AUTOR DO ROUBO FALOU COM UM AMIGO DA GNR PARA DEVOLVER AS ARMAS EM MAIO, JOANA MARQUES VIDAL ESTAVA CONVENCIDA DE QUE A SUA SAÍDA ESTAVA DECIDIDA
ca queira a sua continuidade –, mas a comissão de serviço de Amadeu Guerra termina em Março do próximo ano e o magistrado tem feito saber aos seus colaboradores que está preparado para sair para um tribunal superior.
O actual director do DCIAP sucedeu a Cândida Almeida no cargo e foi sob a sua liderança que foram lançadas importantes investigações, que vão da Operação Marquês aos processos do GES que envolvem Ricardo Salgado e a família Espírito Santo. Também é sob a sua batuta que o DCIAP investiga os processos do futebol, da saúde e dezenas de outros na área do crime económico.
De acordo com as várias fontes contactadas pela SÁBADO, Amadeu Guerra levou uma cultura de organização para o DCIAP que o departamento não tinha – e que foram vertidos no relatório de uma inspecção ao DCIAP que foi noticiada em exclusivo pela SÁBADO. Impôs prazos para a conclusão dos inquéritos, fortaleceu o acompanhamento hierárquico dos magistrados, procurou reforçar as perícias e, sobretudo, conseguiu aumentar a transparência e a capacidade de pôr o departamento a investigar sem olhar a quem eram os visados pelos processos. É precisamente neste departamento que está um dos maiores desafios para a procuradora-geral indigitada, Lucília Gago, a par da constituição da sua própria equipa na procuradoria-geral. Todas as fontes do Ministério Público contactadas pela SÁBADO apontam nesse sentido: saber o que será o mandato de Lucília Gago depende muito de quem for o vice-procurador e o director do DCIAP.
Se o legado de Joana Marques Vidal é grande, a soma deste com o de Amadeu Guerra no DCIAP representa um trabalho hercúleo para assegurar a “continuidade” exigida pelo Presidente da República no comunicado em que anunciou Lucília Gago.
A nova procuradora, apesar de ser consensualmente apontada como uma magistrada séria e competente, como sublinha à SÁBADO o procurador distrital de Coimbra, Euclides Dâmaso, terá de superar algumas desconfianças iniciais. É verdade que há quem a veja como alguém muito próximo de Joana Marques Vidal, desde logo pelo percurso idêntico na área de família e menores. O facto de ter sido colocada na procuradoria-geral da República pela sua antecessora para coordenar os magistrados de família e menores também vai nesse sentido. Mas não deixa de haver quem lhe aponte algumas dificuldades de relacionamento com as equipas.
Transição geracional
O momento de viragem também é sensível. Se é verdade que, por um lado, esta magistratura adquiriu uma grande projecção com Joana Marques Vidal, não o é menos que travessa um momento de transição geracional. Nomes históricos da investigação criminal estão a preparar-se para a entrada na reforma. É o caso, entre outros, de Maria José Morgado, procuradora distrital de Lisboa que, sabe a SÁBADO, pondera reformar-se em breve. Ao mesmo tempo está a chegar uma nova geração, em que pontifica, por exemplo, Sérgio Pena, muito provavelmente um dos nomes a integrar o novo gabinete de Lucília Gago, Filipe Preces, que investigou a Face Oculta e a Operação Marquês, entre outros nomes da 9ª secção do DIAP de Lisboa que, quando foi liderado pela procuradora-geral adjunta Teresa Almeida, formou bons quadros na área da investigação ao crime económico. Esta nova geração, assegura um experiente procuradorgeral adjunto, “não foi criada no temor reverencial ao poder” como outras mais antigas, o que é apontado como um elemento decisivo para manter a autonomia e a independência do MP.
AMADEU GUERRA TEM FEITO SABER QUE ESTÁ PRONTO PARA ABANDONAR O DCIAP