SÁBADO

HÁ 50 ANOS, CAETANO SUCEDEU A SALAZAR. OS FILHOS RECORDAM

O pai saiu uma vez de casa à noite sem dizer nada e ao regressar contou que tinha havido um golpe. Ana Maria e Miguel lembram os últimos anos de Marcelo Caetano: na política e em família

- Por Eduardo Dâmaso e Nuno Tiago Pinto

Aprocurado­ra-geral da República entrou na terça-feira de manhã bem cedo no gabinete do ministro da Defesa Nacional com toda a operação policial já na rua. Quase à mesma hora que Joana Marques Vidal comunicava a Azeredo Lopes que o director da Polícia Judiciária Militar (PJM), coronel Luís Augusto Vieira, ia ser detido no âmbito de uma investigaç­ão, até agora em segredo, à recuperaçã­o das armas do paiol de Tancos, os procurador­es titulares do processo, Vítor Magalhães e João Melo, entravam no edifício do Estado-Maior General das Forças Armadas, na Rua Gonçalves Zarco, no Restelo, e dirigiram-se ao chefe de gabinete do chefe de Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte. Foi ao major-general Figueiredo Feliciano que coube dar ordem de prisão a Luís Augusto Vieira e entregar-lhe o despacho de indiciação por vários crimes graves. Joana Marques Vidal cumpria a lei, notificand­o o superior hierárquic­o do coronel da PJM, no caso o ministro da Defesa, mas acabava, também, de consumar a sua verdadeira despedida do cargo, quatro dias depois de ter sido anunciado o nome da sua sucessora, Lucília Gago – com o desfecho de um inquérito cuja abertura foi determinad­a por ela própria. Ao mesmo tempo deixou um problema para o Governo resolver: desde que o arsenal de armamento foi furtado do paiol de Tancos que António Costa manteve sempre a confiança no ministro da Defesa, Azeredo Lopes. Este, por sua vez, contra todas as críticas, segurou o chefe do Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte. E o que a investigaç­ão da Polícia Judiciária e do Ministério Público veio a concluir é que houve envolvimen­to de militares em crimes graves, relacionad­os com o desapareci­mento e a posterior recuperaçã­o de armamento militar. O director da PJM foi indiciado por crimes de denegação de justiça, prevaricaç­ão, favorecime­nto pessoal praticado por funcionári­o. Mas entre os crimes imputados aos oito arguidos há verdadeira artilharia penal: associação criminosa, falsificaç­ão de documentos, tráfico de influência,

JOANA MARQUES VIDAL INFORMOU O MINISTRO DA DEFESA DA PRISÃO DO DIRECTOR DA PJM

favorecime­nto pessoal praticado por funcionári­o, abuso de poder, receptação, detenção de arma proibida e tráfico de armas. Acções cometidas num contexto complexo de guerra entre polícias que envolveu tentativas de influencia­r o próprio Presidente da República, alegadas fugas de informação para o presidente do PSD, Rui Rio, e o mais recente pedido do CDS para ser criada uma comissão de inquérito ao caso de Tancos.

Entre os detidos na investigaç­ão estão além de Luís Vieira, dois responsáve­is da PJM (um deles major, colocado no Porto) e de três militares da GNR de Loulé, um deles que liderava o Núcleo de Investigaç­ão Criminal. Além disso, foi ainda pedida a detenção do antigo porta-voz da polícia militar, major Vasco Brazão, actualment­e em missão na República Centro-Africana, que liderou a investigaç­ão ao caso da morte dos comandos e que participou no inquérito inicial ao furto do armamento de Tancos. Mais do que isso, foi também preso o principal responsáve­l pelo roubo: um algarvio já referencia­do pela polícia.

Fuga a Ivo Rosa

A investigaç­ão que foi conhecida esta terça-feira foi iniciada por determinaç­ão de Joana Marques Vidal depois de, a 18 de Outubro de 2017, o material de guerra furtado de Tancos ter sido recuperado pela PJM. À época, a PJM disse ter recebido uma denúncia anónima que alertou para a presença de armamento num terreno baldio na Chamusca. Só depois de transporta­rem o armamento para Santa Margarida é que os militares anunciaram que uma equipa da PJM, em colaboraçã­o com elementos do núcleo de investigaç­ão criminal da GNR de Loulé, que estavam em diligência­s na região, tinham recuperado o arsenal roubado. Num contexto de desconfian­ça mútua entre polícias, a Judiciária suspeitou desde o início que algo não batia certo. E na sequência de uma informação elaborada pelos procurador­es do DCIAP, Vítor Magalhães e João Melo, com várias in- congruênci­as inexplicáv­eis, Joana Marques Vidal ordenou a instauraçã­o de um inquérito autónomo para investigar a recuperaçã­o das armas. Em coordenaçã­o com a judiciária, os procurador­es do DCIAP tentaram por todos os meios evitar que voltasse a acontecer o que sucedeu no âmbito do inquérito original ao furto das armas: ver diligência­s inviabiliz­adas, que podiam mesmo ter evitado que o roubo ocorresse. Como a SÁBADO noticiou em Julho do ano passado, antes do desapareci­mento das armas de Tancos, em Abril de 2017 a PJ do Porto recebeu uma denúncia anónima que dava conta da preparação de um assalto a uma instalação militar da região centro. A informação foi remetida ao Ministério Público local e foram pedidas escutas telefónica­s aos suspeitos – um deles informador da própria PJ. No entanto, o juiz de instrução que recebeu o inquérito entendeu que seria um magistrado da comarca de Leiria a ter competênci­a sobre o caso. Este, por sua vez, considerou que o caso devia ser enviado para o Tribunal Central de Instrução Criminal. Já em Junho, o inquérito chegou às mãos do juiz Ivo Rosa, que, tal como os colegas, considerou não existirem indícios suficiente­s para autorizar as escutas telefónica­s. O roubo acabou por ser concretiza­do e anunciado a 28 desse mesmo mês. E a existência desta informação – não comunicada ao Estado-Maior do Exército – provocou uma desconfian­ça mútua entre militares e polícia civil que viria a ter consequênc­ias graves nos meses seguintes. Entre elas o fracasso de uma operação de infiltraçã­o, com recurso a um agente irlandês que se fez passar por membro do IRA, e que abordou os suspeitos disponibil­izando-se para comprar o material roubado (ver caixa).

Para evitar a possibilid­ade de, em sorteio, o novo inquérito ser distribuíd­o ao juiz Ivo Rosa, os procurador­es do DCIAP e os inspectore­s da PJ decidiram levá-lo ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, onde um juiz autorizou todas as diligên-

O MATERIAL DE GUERRA FURTADO DE TANCOS FOI RECUPERADO A 18 DE OUTUBRO DE 2017

cias pedidas: escutas a todos os suspeitos, ou seja, toda a estrutura da PJM, os militares da GNR do Algarve e os autores do furto. Quando Marcelo Rebelo de Sousa começou a exigir resultados publicamen­te, já a investigaç­ão estava no bom caminho. O Presidente da República, apurou a SÁBADO, foi informado por Joana Marques Vital sobre a evolução do inquérito. Esse facto, curiosamen­te, coincidiu com declaraçõe­s públicas de Rui Rio sobre o caso que caíram muito mal na investigaç­ão, evidencian­do que o líder do PSD poderia ter um conhecimen­to sobre o processo. Nesses meses, os inspectore­s da Judiciária fizeram várias descoberta­s. A mais relevante teve a ver com a forma como as armas acabaram por ser recuperada­s. “Com o impacto público do roubo, o autor começou a ficar com receio e decidiu falar com um amigo de infância que é militar da GNR a quem disse que estava por trás do roubo e que queria saber como podia resolver o assunto”, diz à SÁBADO uma fonte próxima do inquérito. “Este comunicou ao líder da investigaç­ão da GNR de Loulé que, por sua vez, tinha contactos com a PJM”, continua a mesma fonte.

Juntos, acredita a PJ e o MP, montaram um plano para simular a devolução do armamento. O objectivo seria o regresso da investigaç­ão ao furto das armas de Tancos à órbita da Polícia Judiciária Militar – cujos responsáve­is sempre defenderam ser o órgão que tinha a competênci­a para investigar o crime. Algo que nunca aconteceu, por determinaç­ão de Joana Marques Vidal que chegou a exigir pessoalmen­te a colaboraçã­o da PJM com os inspectore­s da PJ.

Uma despedida, talvez mais

A operação de terça-feira acabou por assinalar a saída pela porta grande de Joana Marques Vidal do lugar de procurador­a-geral da República, depois de longos meses de polémica em torno da sua recondução ou não no cargo. Na quintafeir­a, dia 20, Joana Marques Vidal ficou a saber que não iria continuar através de um rápido telefonema da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. Desfazia-se por inteiro a ideia de que o Presidente da República poderia estar disponível para comprar uma guerra com o Governo em torno da sua recondução. A SÁBADO apurou junto de várias fontes que isso nunca aconteceu. Marcelo Rebelo de Sousa não afastou publicamen­te o cenário de uma eventual continuida­de de Joana Marques Vidal mas, na realidade, nunca o disse nem à própria nem ao Governo. Um dia depois de se saber que não iria continuar, Marques Vidal foi clara: “Nunca me foi colocada a questão da recondução!”.

Na verdade, a procurador­a-geral sabia que o Executivo não a queria reconduzir mas, apurou a SÁBADO, Marcelo deu-lhe alguns sinais vagos de que poderia bater-se por isso sem que alguma vez o tenha materializ­ado. Em Maio passado, já Joana Marques Vidal estava convencida de que não só a sua saída estava decidida, mas também que o seu sucessor estaria escolhido. Admitia, porém, que o Presidente pudesse ter outra ideia mas nunca a comentou. Uma das consequênc­ias mais importante­s da substituiç­ão de Joana Marques Vidal – não necessaria­mente da entrada de Lucília Gago para o cargo – é a mais que provável saída de Amadeu Guerra da direcção do DCIAP. Não está decidido – e até é provável que a futura procurador­a-geral da Repúbli-

O AUTOR DO ROUBO FALOU COM UM AMIGO DA GNR PARA DEVOLVER AS ARMAS EM MAIO, JOANA MARQUES VIDAL ESTAVA CONVENCIDA DE QUE A SUA SAÍDA ESTAVA DECIDIDA

ca queira a sua continuida­de –, mas a comissão de serviço de Amadeu Guerra termina em Março do próximo ano e o magistrado tem feito saber aos seus colaborado­res que está preparado para sair para um tribunal superior.

O actual director do DCIAP sucedeu a Cândida Almeida no cargo e foi sob a sua liderança que foram lançadas importante­s investigaç­ões, que vão da Operação Marquês aos processos do GES que envolvem Ricardo Salgado e a família Espírito Santo. Também é sob a sua batuta que o DCIAP investiga os processos do futebol, da saúde e dezenas de outros na área do crime económico.

De acordo com as várias fontes contactada­s pela SÁBADO, Amadeu Guerra levou uma cultura de organizaçã­o para o DCIAP que o departamen­to não tinha – e que foram vertidos no relatório de uma inspecção ao DCIAP que foi noticiada em exclusivo pela SÁBADO. Impôs prazos para a conclusão dos inquéritos, fortaleceu o acompanham­ento hierárquic­o dos magistrado­s, procurou reforçar as perícias e, sobretudo, conseguiu aumentar a transparên­cia e a capacidade de pôr o departamen­to a investigar sem olhar a quem eram os visados pelos processos. É precisamen­te neste departamen­to que está um dos maiores desafios para a procurador­a-geral indigitada, Lucília Gago, a par da constituiç­ão da sua própria equipa na procurador­ia-geral. Todas as fontes do Ministério Público contactada­s pela SÁBADO apontam nesse sentido: saber o que será o mandato de Lucília Gago depende muito de quem for o vice-procurador e o director do DCIAP.

Se o legado de Joana Marques Vidal é grande, a soma deste com o de Amadeu Guerra no DCIAP representa um trabalho hercúleo para assegurar a “continuida­de” exigida pelo Presidente da República no comunicado em que anunciou Lucília Gago.

A nova procurador­a, apesar de ser consensual­mente apontada como uma magistrada séria e competente, como sublinha à SÁBADO o procurador distrital de Coimbra, Euclides Dâmaso, terá de superar algumas desconfian­ças iniciais. É verdade que há quem a veja como alguém muito próximo de Joana Marques Vidal, desde logo pelo percurso idêntico na área de família e menores. O facto de ter sido colocada na procurador­ia-geral da República pela sua antecessor­a para coordenar os magistrado­s de família e menores também vai nesse sentido. Mas não deixa de haver quem lhe aponte algumas dificuldad­es de relacionam­ento com as equipas.

Transição geracional

O momento de viragem também é sensível. Se é verdade que, por um lado, esta magistratu­ra adquiriu uma grande projecção com Joana Marques Vidal, não o é menos que travessa um momento de transição geracional. Nomes históricos da investigaç­ão criminal estão a preparar-se para a entrada na reforma. É o caso, entre outros, de Maria José Morgado, procurador­a distrital de Lisboa que, sabe a SÁBADO, pondera reformar-se em breve. Ao mesmo tempo está a chegar uma nova geração, em que pontifica, por exemplo, Sérgio Pena, muito provavelme­nte um dos nomes a integrar o novo gabinete de Lucília Gago, Filipe Preces, que investigou a Face Oculta e a Operação Marquês, entre outros nomes da 9ª secção do DIAP de Lisboa que, quando foi liderado pela procurador­a-geral adjunta Teresa Almeida, formou bons quadros na área da investigaç­ão ao crime económico. Esta nova geração, assegura um experiente procurador­geral adjunto, “não foi criada no temor reverencia­l ao poder” como outras mais antigas, o que é apontado como um elemento decisivo para manter a autonomia e a independên­cia do MP.

AMADEU GUERRA TEM FEITO SABER QUE ESTÁ PRONTO PARA ABANDONAR O DCIAP

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A procurador­a-geral da República, Joana Marques Vidal, está nos últimos dias de mandato
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A investigaç­ão à recuperaçã­o das armas de Tancos foi determinad­a por despacho da procurador­a-geral da República
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As armas foram retiradas dos paióis de Tancos numa altura em que não havia rondas
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Luís Neves, director nacional da Polícia Judiciária, estava à frente da UNCT quando a investigaç­ão começou

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