JOÃO PEREIRA COUTINHO
DIARIAMENTE, lá recebo notícias do inferno. Falo do inferno juvenil, onde vivem os juvenis com as suas depressões e ansiedades. O que se passa com a geração que tem metade da minha idade?
A culpa é da Internet, garantem especialistas vários que não perdoam as vidas de farsa que cada um constrói para enganar os outros e se enganar a si. Admito que sim. Ou, então, talvez a culpa seja da “economia líquida”, como diria o outro, que não garante estabilidade ou retorno. Pela primeira vez no pós-guerra, as meninas e os meninos podem ter um futuro mais precário do que os pais, li algures. Isso não contribui para uma saúde mental vigorosa. Verdade que, entre a depressão e a lamúria, alguns ainda tentam reagir. Mas são reacções neuróticas, psicóticas, desesperadas: exigem “espaços de segurança” nas universidades e não toleram ideias “desconfortáveis”. A raiz do mal é a mesma: uma diminuta tolerância à frustração e à imprevisibilidade. Uma diminuta tolerância à vida como ela é.
Recuo 20 anos para chegar aos meus 20. Havia diferenças. Não apenas a grande diferença de uma adolescência vivida sem Internet. Mas a sensação salvífica de que, hormonas à parte, éramos todos filhos do “fim da história”.
As grandes narrativas ideológicas tinham chegado ao seu termo. Não havia uma ameaça apocalíptica no ar. E, dentro das nossas fronteiras, o cavaquismo tinha trazido uns ares de liberdade material, que normalmente antecedem as outras liberdades. Um amigo meu, mais velho, que ainda conheceu certos horrores do comunismo húngaro, gosta de dizer que a juventude pós-1989 está contida em três séries televisivas: Friends, Frasier e Seinfeld. Três monumentos à vida suave, leviana, burguesa, feita de conversas, alegrias e pilhérias. Concordo com ele. E, normalmente, acrescento um filme ao ramalhete: O Grande Lebowski, claro.
Acabo de escrever o título da obra e sorrio com o mesmo sorriso com que abandonei a sala na época. A culpa é de Jeff “The Dude” Lebowski, uma alma indolente que deseja apenas o que qualquer homem verdadeiramente civilizado deseja: ser deixado em paz. Ele gosta de jogar bowling, de beber White Russians e de fumar material colombiano. Não é um niilista, até porque o niilismo, palavras dele, dá muito trabalho.
Mas uma confusão onomástica vai obrigá-lo a sair do seu ninho e a confrontar-se com uma rocambolesca história de rapto, resgate e trapaça. Apesar de ter visto o filme umas 10 vezes, garanto que não me lembro de todos os pormenores. Nem isso interessa.
O que interessa é o espírito de Lebowski, que a crítica coeva tratou ao pontapé por não entender aquela ética distinta. Para usar as expressões elegantes do elegantíssimo filósofo Byung Chul-Han, Lebowski é um mestre na “negatividade do não fazer”. O problema é que o mundo em volta sofre de “excesso de positividade”. Bush (pai) marchou para o (primeiro) Iraque. O amigo, Walter, combateu no Vietname e, psicologicamente falando, nunca mais de lá saiu. E depois temos o homónimo Lebowski, um self-made man que não tolera a ociosidade dos self-unmade men, e que sofre horrores com o desaparecimento da sua ninfeta. Pelo meio, também há um grupo criminoso de pornógrafos e uma artista que se especializou em “arte vaginal”. É demais. Lebowski quer um pouco menos. Como Thoreau no século XIX, viver livremente é o seu único programa. Não sou médico. Quando muito, hipocondríaco. Mas se tivesse que aconselhar tratamento a esta “geração perdida”, começaria pelo filme dos irmãos Coen que chega agora aos 20 anos. Sim, um excesso de “negatividade” também tem os seus percalços: será preciso lembrar o destino funesto que Herman Melville deu ao seu Bartleby? Mas a minha terapêutica é outra: umas gotas de negatividade na corrida insana que consome os nossos narcisos. Só para que eles saibam que o mundo não começou com eles nem vai acabar depois deles.
Se nem isso resultar, que fique pelo menos a experiência da contemplação estética. Como diz o narrador do filme na sequência final, é importante sabermos que o “Dude” anda por aí. A viver a vida com calma por todos nós, pecadores.