SÁBADO

Maria João Lopo de Carvalho desvenda a história da Severa

Seria aciganada, dona de uma voz especial e uma dançarina extraordin­ária. Mas a fadista da Mouraria, imortaliza­da em 1901 por Júlio Dantas, ainda é um mistério e um mito.

- Por Sónia Bento

Os cabelos eram fios negros em ondas largas, feitas de veludo. Tinha a pele morena e uns grandes olhos escuros rasgados e dançava. A forma como se movia, ondulando o corpo, todo ele requebros e curvas e voltas, parecia capaz de transforma­r uma taberna sombria e bafienta num céu de estrelas incandesce­ntes.” É assim que Maria João Lopo de Carvalho descreve a Severa, famosa fadista e prostituta da Mouraria, que viveu no século XIX e se tornou um mito – ela é a protagonis­ta do seu novo romance, que vai ser lançado a 2 de Outubro.

Os palácios e as tabernas

Habituada a escrever sobre a Lisboa aristocrát­ica, a autora retrata agora, em O Fado da Severa, uma Lisboa popular, um contraste entre os palácios do Campo Grande e das Laranjeira­s e as ruas sujas da Mouraria, o bairro onde o fado se batia nas tabernas. Ali juntavam-se marujos, rufiões, as mulheres da vida e os aristocrat­as em busca de ambientes decadentes. “Depois da marquesa de Alorna e da padeira de Aljubarrot­a, quis escrever sobre outra mulher de relevo. Além disso, sou uma admiradora do fado, que tem prestado um excelente serviço à poesia e aos poetas portuguese­s. Juntei assim duas vertentes: a poesia e uma mulher do século XIX, de uma classe social diferente, que se apaixona por D. Francisco de Paula, conde de Vimioso, e ele por ela, vivendo um amor impossível”, conta. Entre a pesquisa e a escrita, o livro ocupou-lhe dois anos e meio. “Para me situar no século XIX, li os jornais da altura e os relatos da Lisboa popular. Tive de me intei-

“ESTA É A MINHA VISÃO DA SEVERA COMO SE ELA ME TIVESSE CANTADO, AO OUVIDO, UM DOS SEUS FADOS”

rar de tudo o que se passou na época. Toda a bibliograf­ia foi passada a pente fino. Foi um prazer enorme.”

O conde que queimava notas

Neste romance, todas as personagen­s são reais e as descrições fiéis à época, desde as ruas da Baixa, da Mouraria ou do Campo Grande ao Teatro São Carlos, passando pelo Palácio das Laranjeira­s – propriedad­e do conde de Farrobo, capaz de queimar notas de mil réis para procurar uma chave caída para debaixo de um móvel (vem do seu título e da sua extravagân­cia o termo “farrobodó”). “Além dos factos, o resto é a minha visão da Severa, como se ela me tivesse cantado, ao ouvido, um dos seus fados. Esta é a minha Severa”, diz a autora. E acrescenta: “Ela foi uma espécie de Cinderela, uma Dama das Camélias, de Alexandre Dumas. Uma rapariga pobre que se apaixona por um fidalgo que a levou a cantar aos salões, fazendo o fado subir de tom. Foi uma mulher que teve tudo a seus pés, mas só quis a Mouraria, onde se sentia bem, e que morreu aos 26 anos. Esta história comoveu a sociedade do início do século XX”. Sobre Maria Severa Onofriana, filha de um cigano e de uma prostituta, existe uma certidão de nascimento, um registo biográfico e sobretudo a obra de Júlio Dantas, que a “descobriu” em 1901. Em 1931, Leitão de Barros levou A Severa ao cinema e, em 1936, Júlio de Sousa e Costa escreveu outro livro sobre ela.

A única imagem que existe associada à fadista é um esboço a tinta-da-china atribuído ao pintor Francisco Metrass. A imagem da capa do livro é O Fado (1910), o famoso quadro de Malhoa, que retrata o fadista Amâncio e Adelaide da Facada numa casa de vinho e de guitarrada­s. “Imagina-se que a Severa fosse uma mulher bem portuguesa, aciganada e com uma voz especial, que ninguém sabe descrever porque não há nenhum registo. Perguntei a vários fadistas, desde o Camané à Carminho, como imaginavam a voz da Severa, e cada um diz a sua coisa. Para mim, era uma voz rouca, provocada pelo tabaco e pelo vinho”, diz a escritora. Além de cantar, a Severa dançava como nenhuma das outras fadistas e com isso encantava os homens. “Não se fazia silêncio para se cantar o fado, era tudo a dançar com movimentos sensuais. Aos poucos, foi-se perdendo a dança porque as fadistas tinham de pegar na guitarra. Por outro lado, à medida que foi chegando aos palácios, onde o ambiente era mais formal, o fado convidava menos à dança. Mas ninguém sabe explicar porque foi perdendo este carácter”, observa Maria João Lopo de Carvalho.

NÃO SE FAZIA SILÊNCIO PARA CANTAR O FADO, ERA TUDO A DANÇAR NINGUÉM SABE DESCREVER COMO ERA A VOZ DA SEVERA PORQUE NÃO HÁ NENHUM REGISTO

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Maria João Lopo de Carvalho fotografad­a junto à casa da Severa, na Rua do Capelão, em Lisboa
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