Como o MP recebeu a notícia da não recondução de Joana Marques Vidal
Foi a 27 de Setembro de 1968, há 50 anos. Salazar caíra da cadeira há quase dois meses quando o Presidente da República escolheu o professor universitário Marcello Caetano para o substituir. Os seus filhos recordam os cinco anos e meio em São Bento.
“O pai disse ao Spínola e ao Costa Gomes para tomarem o governo. Ele ainda foi para o Buçaco uns dias”
Os quase seis anos de governo de Marcello Caetano contados pelos filhos têm detalhes diferentes: Ana Maria, 80 anos, tem o olhar de quem vivia e jantava todas as noites com o pai; Miguel, 83, conta o do filho, já então casado e empenhado civicamente. Sempre acreditou que o pai chegara ao lugar 10 anos tarde demais; se fosse em 1958, como se especula que chegou a estar previsto pelo Presidente Craveiro Lopes, poderia ter sido diferente.
Chegou tarde a estas funções?
Ana Maria Caetano (AMC): Não digo que chegou tarde, nunca devia ter chegado.
Miguel Caetano (MC): O meu pai representava, nos anos 50, o que se chamava de “liberais do regime”, pensavam que o desenvolvimento económico ia transformar o País. Depois, em 1958 foi afastado. E a descolonização: defendeu não ser uma coisa a fazer, mas a autonomia devia ser aumentada. Isto opunha-se à visão conservadora.
Como foram os 2.037 dias em que o pai foi Presidente do Conselho?
AMC: Nós almoçávamos e jantávamos e ele conversava imenso sobre tudo. Eu ia sabendo as inquietações que ele tinha. Não é que eu pudesse dar conselhos. Discutia muito com ele a liberdade de as pessoas poderem escrever o que quisessem, da censura. E ele dizia: “Ai, um dia hás-de perceber.” Achava que não se devia escrever sobre a guerra.
MC: Era o problema da subversão outra vez.
AMC: Pois, era estranho os rapazes irem para a guerra e estarmos aqui a discutir que não devia haver guerra.
Era uma inevitabilidade.
AMC: Pois era inevitável, mas discutir nos jornais seria extremamente doloroso, talvez, para quem ia.
MC: Ele achava – e não só ele – que, se uns estavam a combater, os outros não podiam estar aqui sentados a dizer “não faz sentido nenhum”.
AMC: Isso fez-me sempre impressão: haver pessoas que vão para a guerra, os nossos amigos, e nós cá a viver tudo, as festas. Como é que é possível não estarmos todos de luto?
Cá não se notava a guerra?
MC: Houve uma quantidade de pessoas nossas conhecidas que foram chamadas. Eu notava que havia. Mas não sabia como é que se resolvia, porque era evidente que, para resolver aquele problema, um dos grandes países (ou a União Soviética ou os Estados Unidos) tinha de
Q apoiar, juntamente com a ONU, um processo de descolonização fosse ele qual fosse. Penso que em 1958 era possível, em 1968 tenho as maiores dúvidas. Se não tivesse o apoio de nenhum deles, não havia nada a fazer, porque só entregando – e entregando vinha o problema: e os portugueses que lá estão e todos aqueles que acreditaram em Portugal? E agora, deixamos lá tudo? Era o grande problema do meu pai. Vamos abandonar, saindo? Não pode ser.
AMC: Todas as descolonizações foram péssimas. Não tínhamos como exemplo uma boa descolonização.
MC: A Argélia foi das piores que houve. Mas acabou e Portugal ficou sozinho. Contudo, no princípio, os Estados Unidos ofereceram-se para apoiar e o Salazar recusou. E é aí que começa o “orgulhosamente sós”. O meu pai não estava nessa. AMC: Não.
MC: Aquela hipótese desapareceu e depois não foi possível. Talvez com o Nixon: houve aproximações e um encontro nas Lages com o Pompidou. Mas logo a seguir o Nixon tem o
impeachement e acabou-se. [O pai] É apanhado naquele período final. Não é que tenha ficado “orgulhosamente só”, mas ficou só. MC: Ficou só de várias maneiras. Mesmo cá dentro, não só à esquerda como à direita, uns achavam que ele devia acelerar, não sei como.
AMC: O que as pessoas pensavam era que se podia fazer mais depressa entregando o poder aos nativos.
MC: Isso estava na Constituição, atenção. Na última revisão constitucional é proposto pelo nosso pai o aumento da autonomia. Houve imediatamente um movimento dos conservadores contra. Ele viu-se envolvido nessa guerra, que também perdeu. Depois, parece, pensou que poderia tomar a iniciativa e até diziam que estava para ir a Angola para declarar um processo de autonomização mais rápida. Mas o facto é que as Forças Armadas já não estavam interessadas nisso e cá o grupo que estava perto do almirante Thomaz também não. Acho que o último ano do pai é um ano muito triste, não é?
AMC: Eu acho.
Foi vendo que, desde 1968 até 1974, ele foi-se sentindo cada vez mais... MC: Isolado. AMC: Estava completamente isolado. Como o Miguel estava a dizer, do lado do Thomaz, que são os conservadores, não concordavam com ele de maneira nenhuma, depois a esquerda também não concordava. Como é que ele, em casa, manifestava essa solidão? Vinha jantar? AMC: Sempre. Enquanto a minha mãe estava doente, ele vinha sempre ao serão. No último ano [dela], chegou a trabalhar as manhãs em casa, não ia para São Bento, a secretária vinha a nossa casa. E ela às vezes chamava-o. Eu dizia-lhe: “Não pode chamar, o pai está a trabalhar.” “É só para o ouvir um bocadinho.” [riso] Uma história de amor. Ela morreu em 1970. Nos últimos quatro anos já estávamos só os dois. Sentiu esse isolamento em manifestações concretas?
AMC: Ele ia-me dizendo. Eu sabia estas histórias, não é? E realmente, politicamente, ele estava muito só.
MC: Mesmo a tentativa de liberalização, a que chamaram de Ala Liberal, correu mal. Houve um desentendimento. É quando ele resolve, depois da reeleição do almirante Thomaz, substituir os deputados e na Acção Nacional Popular por pessoas mais conservadoras. Ele dizia “preciso de gente que me seja fiel”. No meio disso tudo, todas as semanas um filho, com os netos, ia lá jantar.
AMC: A vida familiar manteve-se sempre.
MC: Fez questão toda a vida. Quando foi ministro das Colónias, em 1940,
e depois da Presidência, uma condição que pôs ao Salazar – que não tinha horas, não tinha família – é que lá em casa se jantava às oito e meia. E conversavam ao jantar?
AMC: Comigo havia muita conversa, se estava sozinha. Com vocês, falava um de cada vez. Depois, iam para o escritório e então conversavam.
MC: À mesa, os temas eram todos levantados, mas nós éramos rapazes – estou a falar antes de casarmos. Podíamos fazer todas as perguntas que quiséssemos, o problema é que ele tinha mais respostas.
AMC: Sempre uma resposta superior às nossas inquietações [gargalhada].
MC: Quando ele saiu do governo e foi para a reitoria, deixou de ter actividade política, a relação com os filhos foi muito mais aberta do que no período anterior. E ele aí estava interessadíssimo: “O que é que sabes sobre isto? Porque não assim?” Tinha expectativas diferentes para os três rapazes e para a rapariga? AMC: Sim, eles tinham de fazer um curso superior. E com a rapariga ele já não se interessava tanto.
MC: Não fez porque não quis [riso]. AMC: É evidente. Mas depois, com a doença da mãe, não saí de casa durante três anos, foi mais difícil. Eu disse: “Vou para Direito.” Nem pensar [gargalhada]. Mulheres em Direito? Ele ainda achava que isso era [para] “arranjar namorados”. Depois esse pensamento evoluiu?
AMC: Ah, sim! Só mais tarde, já a minha mãe tinha passado a fase mais grave da doença, lhe disse que ia fazer um curso, que fiz, de terapia da fala. E ele interessou-se imenso e eu tinha de estudar Medicina: “Aí eu
“Sabes que eu saíde noite porque houve um golpe. Mas acalmou-se tudo e já vim”
ajudo-te”. Porque ele achava que sabia medicina [risos].
MC: Tinha uma cultura geral superior. Era muito formal? AMC: Era, era formal. MC: Até certa idade, a diferença era grande: ela podia dizer coisas que nós nem sonhar. Podia contrariá-lo, criticá-lo, dizer algum disparate.
AMC: “O pai ‘tá a dizer um disparate.” Eu podia dizer, eles não. O Miguel surpreendeu-se ao vê-lo brincar com os netos no chão. MC: Então com a Gigi, a mais velha, andava de gatas.
AMC: Ele com a Maria, a neta…
MC: ... que foi para o Brasil.
AMC: … jogava ao Lobo Mau e ao Capuchinho Vermelho. Aí, sim, foi mais aberto. Mesmo quando estava como Presidente do Conselho tinha essa disponibilidade para os netos?
MC: Não, mas tinha uma atitude diferente com os miúdos. AMC: Conversava com eles.
MC: E uma vez, em que um dos meus filhos se estava a portar mal, fui um pai autoritário…
AMC: Foi mais autoritário que o pai. MC: Talvez. Mas também tinha oito filhos rapazes. O pai estava por trás,
viu que me ia zangar a sério e fez assim [indicou que não] com o dedo. E depois disse-me: “Cá em casa, não.” Como o definiriam?
AMC: Para mim foi um pai único, tive uma relação com ele especialíssima. Cultíssimo. Interessantíssimo. Politicamente, não falo. [Gargalhada]
MC: Subscrevo o que a Ana Maria acaba de dizer. E posso juntar: o pai tinha uma coerência extraordinária. Se a gente quisesse saber como ele ia reagir a determinadas situações, sabia, porque nunca deixou de dizer quais os seus valores de base e os seus limites na aceitação. Foi por estarem a ser ultrapassados os seus limites que apresentou a demissão por duas vezes? MC: O grande erro foi não ter mantido o pedido de demissão. Uma delas foi depois do Golpe das Caldas [a 16 de Março de 1974]. MC: Sim, essa era mais clara. Acho que já tinha havido uma anterior, depois do livro do Spínola. O livro
[Portugal e o Futuro] sai, o Costa Gomes tinha aprovado o livro. Acho que houve duas ou três [demissões].
AMC: A última, lembro-me: lá a casa foram o Spínola e o Costa Gomes. E o pai disse para eles tomarem o governo.
Eles disseram que não. Mas ele ainda foi para o Buçaco uns dias.
MC: Ele não disse para tomarem o governo assim, não é? O Spínola publicou o livro com uma opinião favorável do Costa Gomes, que era o chefe do Estado-Maior. O livro era uma solução para o problema colonial em que o meu pai não acreditava. E uma vez que as Forças Armadas não estavam com ele, chamou-os: “Vocês têm uma solução, a vossa obrigação é irem falar com o Presidente da República. Estou disposto a pôr o lugar já à disposição.” E [disse] que ia para o Buçaco e eles: “Mas nós não queremos o poder.”
AMC: Mas quiseram. [gargalhada] MC: E aconteceu o 25 de Abril. Como é que ele viveu esse dia?
AMC: O pai era muito tranquilo. Não percebíamos se ele estava aflitíssimo. Houve o golpe das Caldas, eu ouvi barulho, mas a minha preocupação era dormir, tinha de ir trabalhar no dia seguinte. Quando cheguei a casa, já à hora de almoço, ele disse: “Sabes que eu saí de noite porque houve um golpe. Mas acalmou-se tudo e já vim.” E eu perguntei-lhe: “E se o golpe tivesse resultado, como é que era?” [Ele:] “Podia morrer, podia ir para o exílio.” E eu disse: “E como é que nós, filhos, sabemos?” E ele respondeu: “Pelos jornais.” E foi o que aconteceu depois do 25 de Abril. Como foi esse dia para vocês? AMC: Ele também saiu de noite, só que já não voltou. Telefonaram-me a perguntar por ele e eu levantei-me, não o encontrei. Mas o que é que aconteceu, perguntei. “Oiça a telefonia.” Só soubemos dele às 16h.
MC: No fim do dia, depois de ele ter ido para a Pontinha.
AMC: Não, ele ainda estava… MC: No Carmo? Não me telefonou. AMC: Telefonou lá para casa. MC: Estávamos lá todos [em casa] e o pai já estava na Pontinha. Foi um dia aflitivo?
MC: Com certeza que foi, em todos os aspectos. Telefonou-me um amigo: “Estás a ouvir a telefonia?” AMC: Telefonia, como a gente dizia. MC: Liguei aquilo. É evidente que, por qualquer que fosse a minha posição política, o meu pai fechado no Carmo é uma situação sem so-
“Enquanto a minha mãe estava doente, ele vinha ao serão. Chegou a trabalhar as manhãs em casa”