Os avanços da Medicina para combater as dores de cabeça
Cerca de milhão e meio de portugueses são massacrados durante dias por dores de cabeça tão intensas que os levam ao desespero. E ao despedimento. E ao divórcio. A enxaqueca é a que causa mais impacto. Com um novo medicamento chega uma nova esperança.
Laura nunca se habituou às dores de cabeça que tem desde os 12 anos. “Sinto como se uma faca estivesse a espetar-me na têmpora.” Aos 55, a engenheira química sofre de enxaqueca crónica e sobrevive com dores que se tornaram quase permanentes. Tem cefaleias, o termo médico para as dores de cabeça, todos os dias. E em pelo menos seis dias por mês sofre crises agudas que a obrigam a fechar-se no quarto, isolada da família. “Às vezes, estou tão cansada de acordar e deitar-me com dores, que choro. Chego a ter pena de mim mesma e encharco-me em comprimidos para aguentar”, conta à SÁBADO.
A enxaqueca é uma doença neurológica sem cura e altamente incapacitante. Entre as doenças neurológicas, como o Alzheimer e o acidente vascular cerebral, é a que tem mais impacto ao longo de toda a vida dos doentes, segundo a Organização Mundial de Saúde. “As pessoas ficam disfuncionais. Além da dor, podem ficar enjoadas, vomitar, não se conseguem concentrar, algumas deixam de ver temporariamente, outras não suportam o ruído”, explica a neurologista Raquel Gil-Gouveia, coordenadora do Centro de Cefaleias do Hospital da Luz. Calcula-se que 12 a 15% dos portugueses sofre de enxaqueca – e as mulheres são três vezes mais afectadas. A maioria responde aos medicamentos disponíveis, grande parte desenvolvidos para outras doenças, como a epilepsia e a depressão. Mas há quem tenha tentado tudo, até um cocktail de vários fármacos, em vão. Agora surgiu uma nova esperança: foi aprovado o primeiro medicamento desenhado para o tratamento preventivo da enxaqueca.
É muito provável que já tenha sentido uma dor de cabeça que tenha tornado o seu dia um pouco mais difícil. A cefaleia tipo tensão, como é chamada pelos médicos, afecta cerca de 80% da população pelo menos uma vez na vida e pode ser provocada por ansiedade, stress ou má postura. Em geral desaparece com uma aspirina ou um analgésico. Não é o caso da enxaqueca. As crises podem durar entre quatro a 72 horas e ocorrem, pelo menos, duas vezes por mês. “As pessoas ficam doentes. É como ter uma grande gripe, dois ou três dias de cada vez, duas ou três vezes por mês”, explica Raquel Gil-Gouveia. E existe também o estigma da doença: “Há a ideia de que a enxaqueca é uma desculpa para não trabalhar. Quando é o contrário: os doentes fazem um esforço para não faltar.” Laura sabe bem o que isso é. “Ninguém acredita que eu tenho dores de cabeça 30 dias por mês. Acham que não estou boa da cabeça. Nem fazem ideia do que é a dor de uma enxaqueca.” A engenheira teve a primeira enxaqueca aos 12 anos, numa festa de baptizado. Mais tarde, quando ficou menstruada, a doença tornou-se recorrente. “Na altura, não sabia que não devia fa-
AS ENXAQUECAS PODEM DURAR ENTRE QUATRO E 72 HORAS, PELO MENOS DUAS VEZES POR MÊS
zer esforços. Uma vez, cheguei a desmaiar”, conta. A dor tornou-se mais aguda na faculdade. “Pensei o pior, que poderia ser um tumor.” Fez um electroencefalograma, TACs e ressonâncias magnéticas para despistar outras doenças e o diagnóstico descansou-a. Mas por pouco tempo. “A médica perguntava-me como classificava a dor numa escala de 0 a 10. Era quase sempre 10. Atingia-me o olho direito, que ficava negro e inchado, como se eu tivesse levado um murro.” A enxaqueca atinge sempre um dos lados da cabeça e pode afectar os dois olhos.
Atrasar a maternidade
“Quando comecei a trabalhar viajava muito para fora, falei com o ginecologista e decidi tomar a pílula continuamente para não menstruar. Deixei de ter enxaquecas”, conta. As mulheres têm mais probabilidade de ter a doença do que os homens devido ao ciclo menstrual. “Parece haver uma influência directa do estrogénio nesta predisposição das mulheres”, explica Raquel Gil-Gouveia. Para Laura, este foi o período menos doloroso da sua vida adulta e, para o prolongar, chegou a atrasar a maternidade. “Fui mãe há 17 anos. Durante a gravidez, a dor era diferente, parecia umas fisgadas dentro da cabeça.” As crises tornaram-se mais frequentes. Todos os meses tinha duas que duravam seis dias cada e se prolongavam pela noite. Ficava com náuseas e qualquer ruído tornava-se insuportável. Abusou nos medicamentos. “Há comprimidos que só se devem tomar nas crises mais agudas, mas já os estava a tomar todos os dias”, admite. A enxaqueca tornou-se crónica e há dois anos que tem dores de cabeça todos os dias. As cefaleias podem tornar-se crónicas quando os doentes tomam analgésicos 10 a 12 dias por mês, durante três meses. “O medicamento resolve mal a crise e a pessoa aumenta a dose. Muitas vezes, antes de sentir a dor, já está a tomar o comprimido”, explica a neurologista Paula Esperança, do Centro Hospitalar Lisboa Centro.
Efeitos secundários adversos
Há medicamentos, os triptanos, que são eficazes a reduzir a dor. Mas quem tem mais de duas a três crises por mês realiza um tratamento profiláctico, para reduzir a intensidade e a frequência das enxaquecas. O problema é que estes fármacos podem provocar efeitos secundários adversos. “A maioria dos medicamentos não foi desenvolvida para a enxaqueca. Por exemplo, usamos um que é para a epilepsia e outro para a taquicardia”, observa a neurologista Elsa Parreira, presidente da Sociedade Portuguesa de Cefaleias. O topiramato, criado para a epilepsia, pode provocar perda de memória, sonolência, formigueiros nas mãos e pés, falta de apetite, irritabilidade e até comportamentos agressivos. Muitos doentes recusam-se a tomá-lo. Há doentes que reconhecem uma mudança de comportamento e sentem que ficam mais irritáveis e agressivos. “Mas os efeitos secundários não surgem em todos os doentes”, garante Elsa Parreira.
Para quem não suporta os efeitos secundários existe uma alternativa recente: o botox. “A toxina actua nos neurotransmissores e modula a transmissão da dor da parte periférica para a parte central do cérebro”, explica a neurologista Paula Esperan-
ça. A toxina é aplicada em 31 pontos da cabeça e do pescoço, de três em três meses. Laura fez o primeiro tratamento com botox em Junho. “Em Agosto só tive quatro dias com enxaqueca. Parece estar a resultar.” Mas o botox não resolve todos os casos. “Já tentei tudo e no primeiro mês acredito mesmo que estou curada”, conta Ana, de 52 anos. A jornalista sofre de enxaqueca desde a adolescência e há mais de um ano começou a fazer o tratamento com botox no Hospital de Santa Maria. “No primeiro mês fico óptima, mas vai perdendo efeito com o passar das semanas.” Como 15% dos doenA tes com enxaqueca, Ana tem aura, um fenómeno que ocorre minutos antes da dor. “Vejo umas luzinhas a piscar, fico maldisposta e, às vezes, tenho vertigens.” Em Agosto, estava na praia quando começou a sentir os sintomas e ainda teve tempo de conduzir até casa. O pior é quando está a trabalhar. “Trabalho por turnos e uma noite estava a editar o noticiário quando tive uma enxaqueca. Tinha de assegurar a emissão, por isso, ia vomitar entre as notícias.” Nestas ocasiões tem de aguentar a dor, porque os medicamentos não chegam a ser absorvidos no estômago. enxaqueca é uma doença genética e hereditária que parece provocar no cérebro um defeito no processamento da informação, que se chama habituação. “Quando o cérebro recebe um estímulo novo – uma imagem ou um toque – toma atenção e processa esse estímulo. Mas se continuar a receber esse estímulo, a resposta vai diminuindo e o cérebro acaba por ignorá-lo”, explica a neurologista Raquel Gil-Gouveia. “O cérebro das pessoas com enxaqueca não se habitua da mesma forma aos estímulos. Ainda não sabemos porquê.”
Sono e stress influenciam
A doença surge de forma imprevisível, mas há factores como o ciclo menstrual, alterações do sono e o stress que podem desencadear mais crises. “As enxaquecas parecem surgir em momentos de oscilação do nosso estado normal”, diz a neurologista. “Há doentes que têm enxaquecas quando dormem pouco e quando dormem muito. O ideal é dormir sempre o mesmo número de horas. E há doentes que têm uma enxaqueca sempre no primeiro dia de férias, quando se libertam do stress acumulado da última semana de trabalho.” Mesmo quando aguentam e vão trabalhar, os doentes notam que não estão bem. “O meu cérebro não fica a 100%. Já aconteceu ter dificuldade em articular as palavras para falar”, conta Liliana, psicóloga de 59 anos. A disfunção cognitiva é, depois da dor, o que mais perturba os doentes. A conclusão é de um estudo que foi a tese de doutoramento de Raquel Gil-Gouveia. “Hoje o local de trabalho é muito intelectual e é difícil não estar a
O BOTOXÉ APLICADO DE TRÊS EM TRÊS MESES E REDUZ A INTENSIDADE E FREQUÊNCIA DA ENXAQUECA
funcionar.” A especialista participou noutro estudo que analisou a forma como o cérebro dos doentes trabalha durante e depois das crises. “Através da ressonância magnética funcional percebemos que as pessoas ficam mais lentas a realizar tarefas, parece que precisam de mais área cerebral para funcionarem.” O estudo, realizado pelo Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, o Instituto Superior Técnico e a Luz Saúde, ganhou uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e vai ser aprofundado. Liliana começou por se automedicar em adolescente. Mais tarde, tomava os medicamentos prescritos pelo médico de família, mas sem efeito. “Sinto uma dor muito fina, como se estivessem a espetar-me um alfinete”, conta. No último mês já teve 10 enxaquecas. Evita o vinho branco e a cebola, que lhe desencadeiam novas crises. Algumas durante a noite. “Acordo com a dor, tomo o medicamento e fico sentada à espera que passe. Alivia a dor, mas sinto-me como se tivesse levado uma sova.” A causa da enxaqueca é ainda desconhecida. O que se sabe é que, durante a crise, o hipotálamo, a zona do cérebro que regula o equilíbrio do organismo, fica mais activo. “É como se ele estivesse a monitorizar algo, detecta um problema e activa o sistema de alarme do organismo, que é a dor.” Então, o trigémio, o nervo que transmite a sensibilidade da cabeça, liberta uma substância, chamada CGRP (peptídeo relacionado com o gene da calcitonina) que faz dilatar e inchar a parede das artérias da cabeça e permite a percepção da dor. “Neste processo são activadas outras áreas, que provocam as náuseas e o vómito, a intolerância à luz, ao ruído e a dificuldade de concentração. Ao fim de dois a três dias o processo desliga-se sozinho”, explica Raquel Gil-Gouveia.
Novo medicamento aprovado
Várias farmacêuticas concentraram a investigação no CGRP e, este ano, foi aprovado pela Agência Europeia do Medicamento o primeiro fármaco desenvolvido para prevenir as enxaquecas. O Aimovig, da Novartis, é um anticorpo monoclonal, que são proteínas usadas pelo sistema imunológico para identificar e neutralizar corpos estranhos. É administrado por via endovenosa e bloqueia os receptores do CGRP. Segundo os ensaios clínicos, realizados em 2.600 doentes, o medicamento reduz a intensidade das enxaquecas e o número de dias de crise. Em Portugal, participaram 20 doentes do Hospital Amadora-Sintra, do Hospital de Santa Maria, do Hospital da Luz e do Campus Neurológico Sénior, em Torres Vedras. “Os resultados foram positivos e o medicamento foi bem tolerado”, garante Elsa Parreira.
A eficácia não difere muito de alguns dos medicamentos já usados na profilaxia, mas tem a vantagem de ter poucos efeitos secundários. “Para mim esse é o aspecto mais positivo. Significa que não vou passar parte da consulta a explicar porque vou dar a uma pessoa sem epilepsia um medicamento para a epilepsia”, diz Elsa Parreira. O problema é o preço. Nos Estados Unidos, uma dose mensal custa cerca de 575 euros. A Novartis fez o pedido de comparticipação em Agosto ao Infarmed, que tem seis meses para dar uma resposta. Mas o medicamento pode estar disponível ainda este ano. “A partir de Novembro, a Novartis poderá estar em condições de fornecer o medicamento aos hospitais privados”, disse à SÁBADO Luís Rocha, director de Acesso ao Medicamento da Novartis.
Mas há outros tratamentos alternativos. Vanda Apresentação, de 60 anos, usa um neuro-estimulador para atenuar o número de