SÁBADO

Ângela Marques

- ÂNGELA MARQUES

O PÂNICO DUROU POUCO. QUANDO ME SENTEI, ESCUTEI MIL VOZES, NENHUMA EM PORTUGUÊS

Eletinhaes­colhido o restaurant­e – central, com comida do mundo e preço para as nossas carteiras. Eu tinha escolhido ir de táxi – vintage, com cheiro a pinheiro ao quadrado, boa relação custo-benefício, mas sem aquele GPS artesanal que em tempos fazia de um taxista um Google Maps ao cubo. Chegaria atrasada ao nosso almoço – e, no entanto, bem a tempo. É que o almoço tinha um propósito: o de falarmos daqueles temas que dão luta ao cérebro, mas fazem bem ao coração. Quando o vi na esplanada, cotovelo a descansar na mesa do lado, praticamen­te adoptado pelos sexagenári­os que se sentavam em frente, receei: os temas que precisávam­os de tratar tinham de ser bem tratados e isso implicaria que a conversa ficasse entre nós. O pânico durou pouco. Quando me sentei, escutei mil vozes, nenhuma em português. A confidenci­alidade, como o pudor, estaria salvaguard­ada. Então falámos, comemos e só não pagámos a conta em lágrimas porque, já se sabe, a tristeza nunca apagou a dívida. Despedimo-nos e eu parti em busca de outro táxi. Subindo a rua, pensei no que deixara para trás e perguntei-me (juro que perguntei): uma esplanada do mundo vale mais do que uma esplanada no mundo? Subindo a rua, ouvi a resposta das colunas de uma pré-adolescent­e. O funk que ela cantava com sotaque fingido estava a pô-la no mundo real. Com uma letra sobre o ciúme, ela fazia do Campo Mártires da Pátria Rio de Janeiro e não pedia desculpa por mexer com os hemisfério­s. A tentar apanhar a letra e sem conseguir apanhar um táxi, vi mais: um grupo de alemães, felizes, com cara de quem estava a fechar negócio com uma semana de férias, riam com gosto, atravessan­do-se na estrada sem medo. Foi dessa estrada, depois, que surgiu a mensagem mais enigmática do dia – enquanto pensava neste País que agora é do mundo e nesta cidade que ultimament­e parece jogar às escondidas connosco, vi o destino no 760: Cemitério da Ajuda. E perguntei-me (juro que perguntei): será que para nascer para o mundo esta cidade tem de morrer para nós?

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