“Aprendi o suficiente com a loucura para não ter medo dela”
Tem quatro filhos de três casamentos, seis netos e uma actividade profissional ainda mais preenchida: aos 83 anos faz 50 de carreira, não pensa retirar-se da clínica e quer escrever um livro sobre psicopatia. O psiquiatra conta a sua história num tom sere
Éum revolucionário (aparentemente) suave, que fala baixo, por vezes tão imperceptível que precisa de repetir a ideia. Mas em momentos decisivos, Afonso de Albuquerque mostra-se irredutível: preso duas vezes antes do 25 de Abril, não cedeu à PIDE; nem acusou desgaste profissional ao analisar o outro lado do muro da condição humana. A propósito dos 50 anos de carreira – as bodas de ouro de um casamento com a especialidade de Psiquiatria –, o médico de 83 anos fala à SÁBADO no seu discreto consultório em Lisboa, na Av. da Liberdade. Não pede pausas, nem se distrai com notificações ou toques de telemóvel. Não tem. Mas está contactável, garante.
Em 1968, regressou a Portugal com o título de especialista em Psiquiatria, atribuído pela Royal College of Psychiatrists. É meio século de carreira. Nunca sentiu desgaste profissional?
A condição humana é algo que me surpreende, às vezes pelo bem, outras pelo mal. Mas é uma fonte inesgotável de novas ideias. A sensação que tinha quando estudava Medicina em Coimbra era a de que havia um muro à minha frente e gostaria de o subir para espreitar para o outro lado. A única especialidade que me permitia isso era a Psiquiatria. Ainda hoje penso o mesmo. Em 1964 fui para Inglaterra onde permaneci até 1968 e onde me especializei. Quando regressei a Portugal, fui aprovado como psiquiatra. Concorri ao Hospital Júlio de Matos onde fiz toda a carreira profissional.
Herdou de quem o espírito revolucionário que atravessa o seu percurso?
Tenho um especial carinho por Afonso Costa [figura da Primeira República], que era primo direito do meu avô materno. Eram bastante chegados. A proximidade pessoal e a figura dele, mesmo após a morte em Paris [11 de Maio de 1937], faziase sentir. Não só pela questão do nome, que passou para mim, como pelo espírito republicano. Na altura significava que se era da oposição.
Onde foi criado?
Em casa do meu avô materno, num quarto andar da Rua do Arsenal em Lisboa. Cabíamos lá todos: os meus pais, ambos professores de liceu; e duas tias solteiras, irmãs da minha mãe. As duas trabalhavam em livrarias e traziam-me livros todos os dias. Éramos uma família coesa, que não teve mais crianças além de mim e da minha irmã mais nova.
Quando se mudou para Coimbra foi difícil a adaptação?
Fui aos 11 anos para Coimbra, cidade onde os meus pais foram colocados como professores do liceu. Lá concluí o liceu e Medicina, vivendo sempre em casa dos meus pais.
Como eram as praxes?
Os rituais de passagem eram a praxe académica, que na altura só existia em Coimbra. A fotografia da minha licenciatura é exemplo de um desses rituais: à saída da última aula do curso colocavam-se duas filas de estudantes, entre as quais o neolicenciado tinha de passar. Durante o percurso recebia palmadas nas costas e arrancavam-lhe a roupa – ficava em cuecas. Embrulhava-se na capa segura pelo cinto e passeava pela Baixa!
A rebeldia revelou-se quando?
Estive em Moçambique a cumprir o serviço militar obrigatório, entre 1961 e 1964, como alferes miliciano médico. Não cheguei a entrar na Guerra Colonial. Dentro da companhia fiz três amigos, éramos um grupo conspirativo. Combinámos que
“Tinha a sensação de que havia um muro e gostaria de o subir para espreitar para o outro lado. A única especialidade que me permitia isso era a Psiquiatria” “Tenho um especial carinho por Afonso Costa [figura da primeira República], primo direito do meu avô”
não íamos combater e que íamos passar a fronteira para a Tanzânia. Mas um informador da PIDE ouviu a conversa e denunciou-me.
Que represálias sofreu?
Meteram-me num avião militar para Lourenço Marques. Quando lá cheguei, fui punido com 30 dias de prisão disciplinar agravada. Calei-me, não sabia quais seriam as outras consequências. Havia a hipótese de ser mandado para a Índia, que estava prestes a cair e ninguém queria ir para lá; ou para Timor. Fui para o presídio militar de Lourenço Marques, onde era o único oficial detido e tinha um andar só para mim. Nos outros pisos estavam soldados e sargentos, por causa de roubos e abusos de raparigas jovens. Conheci alguns psicopatas curiosos, muito inteligentes, sem qualquer noção de culpa, nem necessidade de seguirem regras. Viam em mim um tipo estranho que conversava com eles.
Então a sua estreia no cárcere até foi simpática?
Foi. Depois fui transferido para o quartel-general em Lourenço Marques, onde estive quase um ano. Tornei-me amigo do pintor moçambicano Malangatana Valente. Quando cheguei a Portugal, em 1964, embarquei logo para Inglaterra para fazer a especialização em Psiquiatria.
Como correram os quatro anos no Reino Unido?
Tive o privilégio de trabalhar com John Bancroft, médico psiquiatra de formação, doutorado e dos mais importantes sexólogos do mundo. Passou a ser o apoiante número um dos sexólogos portugueses, a tal ponto que quando foi criada a Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica [1985] demos-lhe o título de sócio honorário vitalício. O professor Bancroft também proporcionou treino clínico em Oxford e Edimburgo a elementos da minha equipa e foi orientador de doutoramento de uma psicóloga do meu serviço.
Foi militante de esquerda?
Fui abordado pelo Partido Comunista antes do 25 de Abril, mas declinei o convite. Fui simpatizante do MRPP, ingressando em algumas listas para a Assembleia da República e para as eleições autárquicas, mas sempre como candidato independente. A partir de determinada altura, deixei de me candidatar por entender não haver condições para continuar com esse tipo de trabalho.
A 17 de Maio de 1972 foi preso pela PIDE. Porquê?
Encontraram o meu nome na agenda de Palma Inácio [revolucionário que desviou um voo comercial em 1961 para lançar 100 mil folhetos contra a ditadura], que foi preso muitas vezes. Pertenci à Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, composta por 60 membros, entre padres, professores universitários, militares, médicos como eu. Tentámos ajudar uma classe da população – neste caso, presos políticos –, publicando a lista de torturas a que eram sujeitos. A mais comum era a privação de sono. Mas houve um preso que esteve 21 dias sem dormir e não falou.
Conheceu-o?
Entrevistei-o enquanto médico e membro da Comissão. Era um homem com cerca de 30 anos, engenheiro, e pertencia ao Partido Comunista. Fiquei com a certeza de que ele tinha uma resistência excepcional à privação do sono, às ameaças e aos maus tratos sofridos. Fiquei convencido de que recuperou em pleno a sua saúde. Habitualmente, a pessoa começava a perder controlo a partir da terceira noite. Os bons profissionais da PIDE faziam pequenos truques. Houve um deles que descobriu que bastava bater com uma caneta para acordar o preso. O tampo da mesa era revestido por um material específico que ampliava o som dos objectos e ecoava pela sala de tortura.
Que memórias guarda da prisão de Caxias?
O pior era estar sozinho numa cela 24 horas por dia. Só um PIDE ia lá, sempre com o mesmo comportamento. Abria a porta subitamente, a qualquer hora do dia. Entrava, ia até ao fundo da cela, mexia-me na roupa da cama, aparentemente à procura de qualquer coisa escondida. Penso que era mais para mostrar que estava a fazer alguma coisa. Saía dois ou três minutos depois. Não dizia uma palavra.
Quanto tempo esteve preso?
Não passou de três semanas. Porque fui convidado para participar num congresso da NATO, na Dinamarca, sobre o funcionamento do cérebro. Iria falar sobre situações de tortura, como a privação de sono. A minha mulher enviou um telegrama a informar que tinha sido preso e não podia ir. Então o presidente do congresso enviou um telegrama para a PIDE, em nome de todos os congressistas, a reclamar a minha presença – o que certamente apressou a minha libertação e permitiu a comparência ainda no fim do primeiro dia de trabalhos.
Recorda-se dessa saída-relâmpago de Caxias?
Saí de Caxias na tarde anterior ao congresso. A minha mulher estava à espera. Viajei de avião até Copenhaga e depois de comboio até à localidade onde decorria o congresso, nos arredores da capital. O presidente e restantes congressistas receberam-me com muita simpatia. Disse-lhes que queria agradecer muito os telegramas deles. Depois apresentei o meu trabalho.
Após o 25 de Abril, foi delegado da Ordem dos Médicos na Comissão de Extinção da PIDE. O que descobriu?
Houve médicos chamados pela PIDE para tratarem os estragos feitos pela tortura e permitirem, ou não, a sua continuação. Também li um relatório de um dos PIDES mais qualificados que tinha sido convidado, juntamente com alguns colegas, para visitar as instalações da CIA nos Estados Unidos. Quando chegaram, fizeram um relatório aos chefes. Disseram que podiam dar lições à CIA de como obter informações pessoais. Tinham uma longa prática de tortura, com métodos próprios. Os agentes mais novos aprendiam com os mais velhos.
A propósito de “mais velhos”, teme a perda de capacidades físicas ou intelectuais?
Aprendi o suficiente sobre a loucura para não ter medo dela. Se tivesse esse azar, esquizofrenia por exemplo, o meu sofrimento seria menor do que um cancro ou outra doença dolorosa. Sou diabético. Tenho uma doença crónica, provavelmente vai matar-me mais cedo do que se não tivesse. Mas não me altera a capacidade de avaliação do mundo e de mim.
Trabalhou 42 anos no Hospital Júlio de Matos, onde se manteve até à reforma em 1997. Quais eram as situações hospitalares mais frequentes?
A mais comum é a esquizofrenia. Tenho pena se morrer sem se ter descoberto a cura, porque é uma doença devastadora. Há doentes que vêm aqui e ao fim de muitos anos vão fazendo uma vida razoável, mas não estão curados.
Confirma se a instituição aplicou choques eléctricos a homossexuais – porque até meados dos anos 70 esta orientação sexual era considerada doença?
É mito. Nunca aconteceu. Mas havia quem quisesse ser tratado. Os homossexuais não podiam ser afirmativos nem integrados em organizações, como agora. À época, levavam pancada se alguém descobrisse ou eram expulsos pelas famílias. Recordo-me de um caso de um homossexual dos confins do Algarve que foi encontrado morto em cima da campa do pai, no cemitério da aldeia. Porque não era capaz de enfrentar a aldeia dele. Impressionou-me o suicídio dele, acho que tomou um frasco de comprimidos. Eram situações que não eram tão raras quanto isso. Este caso foi antes do 25 de Abril.
Os guetos e lóbis gay começaram a ganhar expressão à época. Conheceu esses ambientes?
Conheci uma senhora solteira com mais de 200 quilos, que era uma espécie de matriarca deles. No início dos anos 70, organizava festas em casa perto do Aqueduto das Águas Livres. Alguns dos meus pacientes homossexuais levaram-me lá para a conhecer. Era querida por todos. Não tinha nada a ver com sexo.
Hoje há aplicações de telemóvel para engates homossexuais num raio de poucos quilómetros. Não se perde o flirt?
Não acredito que se perca. Tem outras formas de se expressar. Sou do tempo em que as pessoas tinham de viajar para outros países para encontrar homossexuais. Não é tão fácil como antigamente fazer calar as pessoas ou mantê-las afastadas umas das outras. O avanço é melhor em termos de se conseguir que as pessoas falem da sua sexualidade. Vai diminuir a angústia, o ostracismo, o medo até das possíveis chantagens que existiam tantas vezes. Deixam de fazer muita mossa.
Vindo de alguém sem telemóvel é um comentário, no mínimo, curioso. A resistência ao uso é uma defesa do seu espaço?
[Risos] Sim, funciona um pouco como defesa. Não conheço ninguém que não o tenha. Mas estou contactável: há pessoas que atendem o telefone do consultório. Tenho email e, se às vezes preci-
“Um preso esteve 21 dias sem dormir. Entrevistei-o enquanto médico e membro da Comissão [Nacional de Socorro aos Presos Políticos]” “Tenho pena se morrer sem se ter descoberto a cura [da esquizofrenia], porque é uma doença devastadora”