A lanterna mágica
ENTRE AS PESSOAS que nunca conheci, João Bénard da Costa é a mais importante da minha vida. Sou amigo de muitos que privaram com ele. Escrevemos durante anos no mesmo jornal (O Independente). E, entre os 15 e os 23 anos, viajei sozinho ou com amigos do Porto até Lisboa apenas para assistir a um par de sessões na Cinemateca que me obcecavam. Mas jamais tive a sorte de o encontrar. Um dos seus mais célebres livros de crónicas, Muito Lá de Casa , resumia no título não só o laço intimista com que o autor nos envolvia a ânsia de narrativa e o desejo de imagens como o papel íntimo da prosa/vida de Bénard na vida prosaica dos leitores. Este último sábado, desloquei-me religiosamente – naquela profana espiritualidade que ele tanto cultivou em tantos – à Barata Salgueiro para comprar o primeiro tomo do primeiro volume de João Bénard da Costa: Escritos Sobre Cinema, estreia na gigantesca tarefa de reunir e compilar tudo o que o antigo director da Cinemateca escreveu sobre o território das sombras desde os primeiros ciclos para a Gulbenkian. São, por ora, autores/realizadores distribuídos por 1.175 páginas mais índice onomástico, cuja metade devorei enquanto o diabo esfrega um olho.
Com precursores vários e inspirações avulsas, entre as quais David Thomson e o seu Biographical Dictionary of Film (assumida pelo próprio, que leu a 1ª edição do dicionário em 1979), a escrita de Bénard é, na sua culta ternura, na limpidez poética do estilo, na criativa delicadeza alternando com rasgos de um humor abrasivo, superior aos historiadores/programadores Langlois, Bazin ou Iris Barry e equiparável apenas ao Olimpo dos críticos (Truffaut, Godard, Tavernier, Pauline Kael e Jonathan Rosenbaum). Solitário nesse país inóspito e cheio de monstros que é a passagem da adolescência para a idade adulta, tive nos seus textos uma lanterna por vale imerso na escuridão. Bénard guiou duas gerações de cine-filhos (“cinefilia” é coisa de mortos, e no cinema vive-se mais do que na vida) sem nunca deixar de ser absolutamente pessoal. Os filmes da vida e a vida dos filmes de Bénard tornaram-se os meus. Mesmo – ou por causa – das diferenças: nunca partilhei o seu entusiasmo pelo David Lynch anterior a Blue Velvet; discordei e discordo da sua interpretação quase mística da “política dos autores” (“um grande cineasta não tem filmes pequenos”); não entendo a aversão por toda a obra “séria” de Woody Allen, de Another Woman a Match Point ,ea sacralização de Oliveira ultrapassame. Mas os seus belos absolutos, as suas rimas, as repetições, a cadência marítima das frases, o cruzamento ad infinitum de referências que jamais perdiam significado e a paixão, a pasmada paixão, eram contagiantes. Dava vontade de percorrermos com ele um deserto para se desaguar num oásis com projector de 16 mm e uma tela branca entre tamareiras, e sentir Mankiewickz, Lang, Nicholas Ray, M. Night Shyamalan (só ele me entendia, só ele me entenderá), Preston Sturges, Visconti, John Carpenter. João Bénard da Costa ensinou-me tudo, mesmo que tudo tenha sido apenas o início.