O homem que fugiu de Gomorra
Roberto Saviano abalou Itália com a sua obra. O livro, o filme e a série televisiva são um retrato fiel do crime organizado.
Nunca tinha conhecido ninguém que quisesse fugir de Itália ou mesmo de Nápoles, que naqueles idos anos 80 era o território de toda a fantasia que acompanhava Diego Armando Maradona dentro e fora de um campo de futebol. Fugir de Itália ou de Nápoles era quase uma blasfémia. Mas Francesco Giugliano, nascido a 4 de Junho de 1956, em Boscotrecase, no coração do golfo de Nápoles, napolitano dos pés à cabeça, estava já a fugir de Gomorra, tal como a conhecemos 20 anos depois, a partir do livro de Roberto Saviano, do filme e da série magistral com o mesmo título. Francesco Giugliano, nativo do coração da baía napolitana, apareceu em Coimbra aí por 1985 a bater à porta de uma república de estudantes que conhecera em passagem anterior por Portugal e, basicamente, pedia para se refugiar da vida que lhe era dada nas longínquas paragens de Boscotrecase, Trecase, Torre Del Greco, Torre Annunziata, Vico Equense, Castellamare de Stabia, terras que, vistas do mapa, pareciam ser pequenos paraísos de uma Itália sonhada e quimérica: aldeias de pescadores com o Vesúvio nas costas e o mar azul napolitano a molhar-lhes os pés. Daquele velho mapa onde procurámos a terra de Francesco, Franco para os amigos, só se viam todos as imagens míticas do neo-realismo italiano, de terraços cheios de estendais de roupa com Sofia Loren e Marcelo Mastroiani a namoriscarem ou a emergente Monica Bellucci transformada em sereia. E Pompeia ali ao lado. O mapa dava-nos as coordenadas da antecipação de um grande prazer na bella
Itália, algures entre a misteriosa Nápoles, apenas a meia dúzia de quilómetros, e a sedução de Sorrento, das ilhas de Capri, Prócida, Ischia e todo o fulgor cinematográfico das estradas serpenteantes pela costa de Amalfi. Como se podia fugir de um sítio destes e escolher Portugal, ainda tristonho, atrasado e periférico, para viver?
Férias em casa dos Giugliano
Nesse verão de 1985 , porém, percebi porque se poderia querer fugir de Itália e de Nápoles. De férias em casa dos Giugliano, percebi como era velha de um século a ideia de paraíso que todos os lugares-comuns turísticos, mesmo os mais sofisticados, de Goethe a Stendhal, ou Josep Pla, alimentavam. Depressa conclui que o paraíso estava na hospitalidade napolitana dos
Giugliano, nas pessoas que conheci, na experiência humana que nos era mostrada por um quotidiano de gente que não desistia de viver à superfície da cidade e da decência. Tudo o resto, a organização política, social e económica, a paisagem urbana eram próprias da guerra civil que corria pelo sangue da imperial e evidente economia paralela, pelos territórios de antigos e modernos tráficos, do tabaco à heroína, pela sombra da extorsão do chamado “imposto de protecção”, pela violência que espreitava em cada rua, onde já rareavam os bancos e os poucos que havia tinham pelo menos dois controlos de metais à entrada. Nessa altura, já muitos dos jovens protegidos pela Camorra e transformados em assassinos a soldo não passavam dos 21 ou 22 anos, em média. Nápoles dos anos 80 e 90 acompanhava em dobro o pesadelo que se abatia por toda a Itália. Os anos de chumbo tinham trazido o terrorismo das Brigadas Vermelhas e de uma miríade infindável de grupúsculos da extrema-esquerda, a proliferação do crime organizado por todo o território, o pântano político do pentapartido, os atentados dos serviços secretos que criaram a estratégia da tensão contra o crescimento do poderoso partido comunista de Enrico Berlinguer, a corrupção generalizada e as sombras golpistas da extrema-direita, um Vaticano corrompido pelo dinheiro e pelas ligações à Mafia siciliana, através da lavagem do dinheiro desta nas suas instituições financeiras. Para quem queria uma vida simples, pacífica, previsível, de emprego seguro, Itália era o destino impossível. E Nápoles um dos seus piores portos de arribação. Toda uma economia assente em indústrias pesadas de construção naval, automóvel e metalomecânica afundava-se na crise gerada pelo choque petrolífero de 1973, mas também pela explosiva situação social e criminal nos mais de 100 quilómetros que fazem a chamada Grande Nápoles e que integram o território urbanizado entre Avellino, Caserta e Salerno.
Esse foi um momento que a Camorra aproveitou para crescer até dimensões nunca antes atingidas. O desemprego atingia quase um milhão de pessoas numa população de quatro milhões. O número de empregos criados pela economia paralela era estimado, em 1986, na ordem do milhão e meio. Daí para cá triplicou. Não se conseguia comprar cigarros em lojas mas comprava-se em qualquer ponto da rua, incluindo nas portagens à saída das auto-estradas. Tudo aparecia na rua: bebidas alcoólicas, medicamentos, a célebre pasta das pizzas, baterias, volantes, óculos, roupa. Os comerciantes de loja aberta eram duplamente penalizados: tinham de pagar o pizzo (imposto de protecção) e de enfrentar a concorrência gerada pelos seus “protectores”.
Muitos escreveram sobre essa Itália negra mas Saviano fê-lo como ninguém. Foi um grande repórter que arranjou trabalho nesse monstro aparentemente adormecido que é o porto de Nápoles (11 km de extensão), para ver com os seus próprios olhos como a Camorra domina os muitos trânsitos de pessoas e mercadorias, dinheiro e droga, que por ali transitam entre Europa, Oriente e América. O repórter deu lugar a um grande escritor que saiu de lá, com o livro-choque que lhe custou a vida. Uma espécie de morte-em-vida, criada pela ameaça do clã Casalesi.