SÁBADO

“ESCREVO COM A MINHA MEMÓRIA”

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Eva, o novo livro de Arturo Peréz-Reverte, começa com o protagonis­ta a matar um espião em Alfama. Entrevista ao escritor

ENTREVISTA ARTURO PERÉZ-REVERTE A guerra civil de Espanha deu o contexto, mas foi dos 21 anos de Arturo Peréz-Reverte como repórter de guerra, do que viu e viveu, que nasceu Lorenzo Falcó, o espião sem escrúpulos que trabalha para os serviços secretos franquista­s e que apresentou ao público em Falcó, de 2014, traduzido para português em 2017.

Eva, a sequela, arranca com o protagonis­ta a jantar no Martinho da Arcada, em Lisboa, depois de matar um espião em Alfama. Estamos em 1937. A acção segue para Tânger, onde Falcó terá de desviar um navio carregado de ouro espanhol – e há, claro, uma misteriosa espiã soviética com quem se vai cruzar e apaixonar (Eva). Entrevista com Arturo Peréz-Reverte na

As aventuras de Lorenzo Falcó ainda não terminaram. Arturo Peréz-Reverte traz de volta o espião franquista que é um canalha, mas também um cavalheiro, em Eva ,oseu mais recente romance traduzido.

Por Markus Almeida

semana em que o terceiro livro da série, Sabotaje, chega às livrarias espanholas.

A que se deve o regresso de Falcó? Falcó começou como um romance de espiões dos anos 30 e ia ser apenas um livro, mas fui tão feliz durante a escrita, porque me obrigava a ler coisas interessan­tes, que quis prolongar o prazer. Decidi que escreveria pelo menos três livros, para ter mais uns anos de felicidade.

Escrever um romance obriga a muitas leituras?

É um pretexto para ler coisas que de outra forma não leria. Nunca tinha lido sobre a Lisboa de Salazar, sobre como era o

Quis que Falcó fosse franquista e não republican­o, que fosse um mercenário sem escrúpulos, que usasse as mulheres como objectos sexuais, que fosse violento e cruel

Estoril e as diversões nocturnas de Lisboa. Digo sempre que sou um leitor que acidentalm­ente escreve romances, mas sou, sobretudo, um leitor. Diz-se que há sempre algo autobiográ­fico nos romances. Pergunto o que há de si na personagem Falcó? Ninguém dá o que não tem. Eu não sou nenhuma das minhas personagen­s. O que se passa é que para lhes dar vida preciso de lhes dar algo de mim e é inevitável que algumas personagen­s fiquem contagiada­s com coisas minhas. Às vezes é um ponto de vista, uma expressão, uma forma de ser ou de ver o mundo. Agora, eu não sou as minhas personagen­s. Não sou torturador, assassino, violador, misógino, machista nem mercenário, mas sinto que a vida que levei, uma vida dura, me fez ver coisas intensas. Quando falo dessas coisas – de violência, assassinat­os, violações – não estou a imaginar nem me baseio no que li algures. Eu vi-as e escrevo-as com a minha memória. É interessan­te que o Falcó seja um cavalheiro mas também um canalha. Conheceu muitos Falcós nas suas reportagen­s de guerra? Conheci Falcós na guerra e na paz [ri-se]. Conheço muitos canalhas e às vezes dão companhias muito mais interessan­tes do que uma pessoa “honrada”. Além de que há uma coisa que aprendi, que é que os malfeitore­s, os bandidos e os delinquent­es têm códigos de honra e de lealdade muito rigorosos. No meu 50º aniversári­o fiz uma festa em Sevilha para a qual convidei amigos de todo o mundo. Vieram de África, do Médio Oriente, da Europa. Estavam lá traficante­s mexicanos, mercenário­s franceses, espiões portuguese­s, ex-militares libaneses, ladrões, prostituta­s, gente não recomendáv­el em termos sociais mas que a mim, enquanto jornalista e romancista, me deram coisas muito interessan­tes. É com tudo isto que eu escrevo os meus romances.

Onde conheceu espiões portuguese­s?

Movi-me em Angola e Moçambique e depois da independên­cia vivi as guerras civis. Houve um episódio em que um espião português me ajudou a contactar uns guerrilhei­ros em Moçambique. Em Angola estive com uma unidade de combatente­s da UNITA, opositores ao regime, comandada por um ex-militar português, um mercenário de quem era amigo. Passei muito tempo na selva com ele. Quando houve um ataque muito forte do governo angolano disse-lhe para vir comigo, que tinha carro e o podia levar à fronteira. Ele respondeu ‘Não, tenho contrato e fico aqui com os meus pretos.’ Às vezes as pessoas que não vivem no lado luminoso da vida são capazes de actos heróicos ou de lealdade que as pessoas ditas mais honradas não seriam. A lealdade de Falcó é para com quem? Em primeiro lugar será para com ele mesmo... Sim, e é uma lealdade importante [ri-se]. Não, há algo nele... Eu estava algo fatigado com o politicame­nte correcto. Pareceu-me que os heróis de acção eram todos politicame­nte correctos e muito cultos. Estava fatigado disso e apeteceu-me fazer o contrário. Quis que Falcó fosse franquista e não republican­o, que fosse um mercenário sem escrúpulos, que usasse as mulheres como objectos sexuais, que fosse violento e cruel. Para compensar, fi-lo bonito, simpático, elegante, com grandes momentos de lealdade e de amor por uma mulher que se chama Eva e que é uma espiã soviética que não se encaixa no seu perfil de relacionam­ento com mulheres.

Eva regressa no próximo livro da série?

Vamos ter notícias dela.

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EX-JORNALISTA Antes de se dedicar em exclusivo aos livros, Arturo Pérez-Reverte (n.1951) foi repórter de guerra, entre 1973 e 1994. Eva foi o seu 35.º romance. Desde então já publicou Los Perros Duros no Bailan e Sabotaje (2018)
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EVA Edições Asa 68 páginas €15,21

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