Empregado de supermercado até já desmaiou no trabalho
Perdeu as forças no local de trabalho e apagou nos dois dias seguintes: passou-os a dormir. Relato de uma operadora que passou por burnout.
Os clientes não fazem ideia do que é este mundo. Pensam que basta colocar produtos nas prateleiras, passar os códigos de barras dos preços, atender e sorrir. Na realidade é um trabalho de oito horas diárias esgotante: fiquei 11 dias de baixa por exaustão do supermercado. Decidi dar este testemunho depois de ter feito greve no dia 12 de Setembro – quase metade dos colegas da loja também aderiu –, e para dignificar a nossa actividade. Mas prefiro não dizer o meu nome porque temo ser despedida e não arranjar alternativas. Tenho 31 anos e há mais de 10 que sou operadora. Estou efectiva num hipermercado da Margem Sul com cerca de oito mil clientes por dia. Custa-me sair de casa, saber que vou enfrentar as mesmas coisas diariamente. Tenho vontade de chorar, mas não o faço no local de trabalho por vergonha. Folgas aos fins-de-semana são poucas. Quando faço domingos e feriados, recebo, na melhor das hi- póteses, 700 euros líquidos por mês. Raramente vejo o meu marido, que trabalha no mesmo sítio, porque precisamos de ter horários desencontrados para tomarmos conta do nosso filho de 4 anos. Comunicamos por SMS e só funcionamos como família normal 22 dias úteis por ano, nas férias. Aproxima-se o pico do consumo, no Natal, e os chefes repetem até à exaustão que nos próximos dois meses teremos de dar o litro, como se não déssemos no resto do ano.
Pesadelos, insónias e quebra
Há uns dias cheguei com meia hora de atraso porque sonhei que estava a discutir com uma chefe, acordei estremunhada e fui a correr para o supermercado com meia
cara por lavar. Não ouvi um sermão porque às cinco e meia da manhã não estava lá nenhum superior hierárquico.
Entrar tão cedo provoca-me
stress. Quando é suposto dormir, não prego olho. Ando às voltas na cama, vou dormitando e vendo as horas passar. Receio adormecer, chegar atrasada e o material ficar no armazém, sem estar devidamente reposto nas prateleiras. Se isso acontecer é o caos.
Sofro de insónias há dois anos, porque os turnos desregulados mexem com a cabeça de uma pessoa. No mesmo mês tanto posso entrar de tarde como de madrugada. Em Outubro do ano passado, quebrei a meio da manhã de trabalho. Senti-me tonta e a visão ficou desfocada até perder as forças. Encostei-me a uma arca frigorífica para não cair ao chão. Uma colega que passou no corredor levou-me para os balneários. Telefonou ao meu marido para me ir buscar. Tirei a farda, vesti-me, ele chegou entretanto e levou-me no carro dele para casa. O meu ficou estacionado no parque durante dois dias.
Dois dias em cura de sono
Deitei-me no sofá durante duas horas porque não consegui mexer-me. Adormeci. Só acordei para ir ao Centro de Saúde com o meu marido. Fui logo atendida pelo médico de clínica geral, que estava de serviço. Descrevi-lhe os sintomas. Ele mediu-me a tensão arterial, que estava elevada, e deu-me o diagnóstico: esgotamento. Receitou-me um comprimido antidepressivo de manhã, combinado com outro, ansiolítico, para controlar a ansiedade. Quando estou mais stressada ou nas folgas, tomo um soporífero para fazer um reset. Com esta medicação dormi dois dias seguidos. Apaguei. O meu filho ficou com a minha sogra, que tem sido o meu braço-direito.
Após a cura de sono, acordei torta e com o corpo dorido por ter estado tanto tempo na cama. Estive depois 11 dias de baixa. Quando regressei ao trabalho, a dirigente sindical falou-me em burnout e fui pesquisar sobre o tema. Não sou a única, acho que 20% dos meus colegas já pediram baixas psiquiátricas – mas evitam dizer o motivo. Temem que os achem malucos. Há imensas pessoas medicadas, como uma colega que toma antidepressivos e está farta de pedir transferência de secção porque não consegue lidar com a chefe. Treme por todo o lado, fica branca, chora convulsivamente. A depressão agravou-se por causa deste conflito, mas os recursos humanos disseram-lhe que não vão transferi-la “só” por causa disto. Tão depressa expomos as nossas dificuldades e somos bem atendidos pelos recursos humanos, como nos respondem que não são a Santa Casa e não podem fazer nada. Agora dizem que temos de ser mais participativos na tomada de decisões. Estão a atribuir-nos mais
tarefas sem sermos valorizados. Num dia normal, tenho de repor e arrumar as prateleiras, limpar o chão e os móveis, atender os clientes, verificar os stocks, a validade e os preços de milhares artigos.
Esforço físico ou clientes difíceis
Nem sempre foi assim. Antes tínhamos três equipas, com cinco pessoas cada, só na minha secção, para assegurarem os turnos. Ao todo éramos 15; hoje em dia somos três. A redução de pessoal piorou com a crise de 2008, pela não renovação de contratos. Os funcionários mais antigos reformaram-se, outros saíram e emigraram. Os responsáveis de loja continuam a dizer que não podem aumentar os custos com pessoal, porque o volume de vendas é muito inferior face aos lucros estipulados. Foram os argumentos usados numa conversa connosco há um mês, quando manifestámos o nosso descontentamento. Gostaríamos que todos os funcionários fossem aumentados 3%, que as equipas fossem reforçadas, que os equipamentos estivessem em melhores condições. Parecemos crianças a disputar brinquedos: é ver quem consegue chegar primeiro ao carrinho para repor o material das prateleiras, ou quem descobre a bateria para o scanner funcionar. O esforço físico é imenso. Carrego porta-paletes manuais com mais de 100 quilos de mercadoria de alimentos. Levo-os do armazém para as prateleiras. Tenho dores musculares e por vezes problemas intestinais quando fico mais ansiosa. O mais difícil é o atendimento ao público. Se há um funcionário ao balcão e uma fila de meia hora, os clientes perdem a paciência. Enervado com a espera, há um ano um cliente tratou-me mal. “Andei a estudar para ser advogado. Não estou para aturá-la”, disse-me quando lhe sorri em modo de simpatia. “Nem para lavar o chão serves!”, exclamou outro à colega. Quis um produto esgotado e desconfiou que ela o tivesse escondido no armazém. Há comen- tários racistas, quando alguém diz a uma funcionária negra que tem as mãos sujas e não deve mexer em alimentos. Também há situações de assédio. Um grupo de quatro homens das obras que disse-me queria dar uma voltinha comigo. A dada altura, fugi para o armazém. Houve um homem que se virou para uma colega e teve o descaramento de comentar que a imaginava em lingerie e logo a seguir nua. Ela ignorou-o. Há supervisores que fingem não ver, só actuam quando há muita confusão. O meu chefe tem sido bastante compreensivo, tanto que já lhe disse que não iria aguentar muito tempo na empresa. É jovem, com visões novas e ainda não está formatado. Tem sentido bastante pressão por parte dos superiores para obter os resultados estipulados e ser mais exigente connosco. Neste momento, temos duas versões de chefes: os novos com ideias inovadoras e os velhos intransigentes que ganham mais de 3.000 euros líquidos por mês. Porque não me vou embora? Não tenho saídas, para já. Há colegas licenciados em Marketing, Engenharia, Enfermagem. Eu tenho o 12.º ano. Entrei para o supermercado para substituir uma colega grávida. Fui ficando e não consegui conciliar com o curso de Ciências Sociais. Desisti no primeiro ano, mas tenciono retomá-lo quando o meu filho for para escola pública. Gostava de ser gestora de Recursos Humanos, incutir novas ideias, mais dignas. É isso que faz falta no nosso país.