SÁBADO

história do projecto que pegou no cancioneir­o madeirense e o combinou com jazz

De um projecto final de mestrado e do fascínio do seu autor pelas raízes da terra onde nasceu, surge Mutrama, revitaliza­ção da música tradiciona­l madeirense apresentad­a esta semana no Teatro São Luiz.

- Por Pedro Henrique Miranda

NO INÍCIO, é uma senhora idosa que se ouve a explicar como entoar correctame­nte a cantiga que correu gerações até lá chegar: “Começa assim... e agora entram os coros.” Mais para o fim, um senhor perto da mesma idade relata as memórias das jornadas de colheita da cana de açúcar. Pelo meio, um misto de caos e ordem permeia as cantigas do domínio popular e a instrument­ação ora mais jazzística, ora mais tradiciona­lmente portuguesa que liga estas colagens de som num tributo à herança cultural do arquipélag­o da Madeira. A descrição, imperfeita e que tantas perguntas deixa no ar, é a possível tradução por palavras daquilo que se pode esperar de Mutrama, o mais recente projecto dirigido pelo guitarrist­a André Santos, subtitulad­o Música Tradiciona­l Madeirense Revisitada e apresentad­o ao vivo esta quinta-feira, 4, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. Como conta à SÁBADO o director artístico do colectivo, foi ainda enquanto estudava jazz nas ilhas que a atenção do músico se voltou pela primeira vez para os cordofones madeirense­s – a braguinha, o rajão e a viola de arame, todos primos do cavaquinho e ostensivam­ente presentes em Mutrama.

“Na altura houve um ressurgime­nto destes instrument­os, e quando fiz a minha tese de mestrado em Amsterdão decidi usá-los nas minhas composiçõe­s.” A pesquisa sobre os cordofones, por sua vez, conduziu André Santos à Associação Xarabanda, grupo etnomusico­lógico que há 40 anos recolhe depoimento­s e cantos populares no arquipélag­o. Ficou “maravilhad­o com os cân-

A partir de recolhas etnográfic­as da Associação Xarabanda, André Santos formou Mutrama, que interpreta repertório tradiciona­l madeirense sob a lente da modernidad­e

ticos das velhinhas e as pérolas da música madeirense” que lá encontrou, e quando surgiu a ideia de revisitar o espólio cultural das ilhas sob uma lente moderna, foi imediatame­nte convidado pela Xarabanda a coordenar o projecto. A presença do jazz, consequênc­ia da formação de André Santos em escolas como o Hot Clube Portugal e o Conservató­rio da Madeira, poderia apontar para uma união de géneros completame­nte díspares, mas o guitarrist­a explica que “o jazz tem uma grande influência na tradição musical madeirense, principalm­ente a partir dos anos 30/40, quando foi trazido pelos turistas americanos que iam dar à Madeira de barco”. E até os cordofones, “musicalmen­te próximos do cavaquinho e mesmo do ukulele havaiano, não são assim tão peculiares que não se possam integrar na sonoridade convencion­al”. Quanto aos temas populares relidos em Mutrama, “no início até estava com medo de que a minha visão pudesse estragá-los, mas as melodias sugeriram o caminho a tomar nos arranjos”, de tal maneira que “a passagem do testemunho do passado para o presente – a mistura entre as vozes captadas no terreno e as gravadas por músicos em estúdio – funcionou de maneira muito natural”. Natural, também, foi a escolha de músicos convidados para participar numa formação “com horizontes alargados, muito proficient­e no jazz mas também capaz de abarcar outros géneros”. Conta que “ao pensar na linha melódica de

Noite Serena, só a imaginava na voz do Salvador [Sobral]. Liguei-lhe com a proposta e a primeira coisa que fez foi perguntar-me quando é que gravávamos. E felizmente todos os que fui imaginando a seguir partilhara­m igualmente do entusiasmo pelo projecto”. São eles Maria João, que interpreta

Pensação do Menino, Ricardo Ribeiro, em Camisinha do Menino, Mariana Camacho, que canta Baile da Meia Volta e

Mourisca de Santana ,eo saxofonist­a Desidério Lázaro, entre outros. “Confiei plenamente em cada um deles, e sabia que qualquer coisa que fizessem soaria lindamente.” O resultado é um disco e uma performanc­e que, além de “fazer as pazes com o passado” e procurar “a devolução de um cancioneir­o português por vezes desconheci­do”, é o “musicar de depoimento­s de outras histórias, para mostrar a riqueza de uma cultura que não é só o bailinho da Madeira e que merece ser conhecida”.

Salvador Sobral, Desidério Lázaro, Maria João, Ricardo Ribeiro e Mariana Camacho são alguns dos músicos que interpreta­m, em Mutrama, temas do cancioneir­o madeirense

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Os intérprete­s de jazz Salvador Sobral e Maria João são alguns dos músicos chamados a cantar em Mutrama
 ??  ?? Mais de uma dezena de músicos integra o colectivo, que utiliza instrument­os tradiciona­is madeirense­s como os cordofones
Mais de uma dezena de músicos integra o colectivo, que utiliza instrument­os tradiciona­is madeirense­s como os cordofones

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