história do projecto que pegou no cancioneiro madeirense e o combinou com jazz
De um projecto final de mestrado e do fascínio do seu autor pelas raízes da terra onde nasceu, surge Mutrama, revitalização da música tradicional madeirense apresentada esta semana no Teatro São Luiz.
NO INÍCIO, é uma senhora idosa que se ouve a explicar como entoar correctamente a cantiga que correu gerações até lá chegar: “Começa assim... e agora entram os coros.” Mais para o fim, um senhor perto da mesma idade relata as memórias das jornadas de colheita da cana de açúcar. Pelo meio, um misto de caos e ordem permeia as cantigas do domínio popular e a instrumentação ora mais jazzística, ora mais tradicionalmente portuguesa que liga estas colagens de som num tributo à herança cultural do arquipélago da Madeira. A descrição, imperfeita e que tantas perguntas deixa no ar, é a possível tradução por palavras daquilo que se pode esperar de Mutrama, o mais recente projecto dirigido pelo guitarrista André Santos, subtitulado Música Tradicional Madeirense Revisitada e apresentado ao vivo esta quinta-feira, 4, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. Como conta à SÁBADO o director artístico do colectivo, foi ainda enquanto estudava jazz nas ilhas que a atenção do músico se voltou pela primeira vez para os cordofones madeirenses – a braguinha, o rajão e a viola de arame, todos primos do cavaquinho e ostensivamente presentes em Mutrama.
“Na altura houve um ressurgimento destes instrumentos, e quando fiz a minha tese de mestrado em Amsterdão decidi usá-los nas minhas composições.” A pesquisa sobre os cordofones, por sua vez, conduziu André Santos à Associação Xarabanda, grupo etnomusicológico que há 40 anos recolhe depoimentos e cantos populares no arquipélago. Ficou “maravilhado com os cân-
A partir de recolhas etnográficas da Associação Xarabanda, André Santos formou Mutrama, que interpreta repertório tradicional madeirense sob a lente da modernidade
ticos das velhinhas e as pérolas da música madeirense” que lá encontrou, e quando surgiu a ideia de revisitar o espólio cultural das ilhas sob uma lente moderna, foi imediatamente convidado pela Xarabanda a coordenar o projecto. A presença do jazz, consequência da formação de André Santos em escolas como o Hot Clube Portugal e o Conservatório da Madeira, poderia apontar para uma união de géneros completamente díspares, mas o guitarrista explica que “o jazz tem uma grande influência na tradição musical madeirense, principalmente a partir dos anos 30/40, quando foi trazido pelos turistas americanos que iam dar à Madeira de barco”. E até os cordofones, “musicalmente próximos do cavaquinho e mesmo do ukulele havaiano, não são assim tão peculiares que não se possam integrar na sonoridade convencional”. Quanto aos temas populares relidos em Mutrama, “no início até estava com medo de que a minha visão pudesse estragá-los, mas as melodias sugeriram o caminho a tomar nos arranjos”, de tal maneira que “a passagem do testemunho do passado para o presente – a mistura entre as vozes captadas no terreno e as gravadas por músicos em estúdio – funcionou de maneira muito natural”. Natural, também, foi a escolha de músicos convidados para participar numa formação “com horizontes alargados, muito proficiente no jazz mas também capaz de abarcar outros géneros”. Conta que “ao pensar na linha melódica de
Noite Serena, só a imaginava na voz do Salvador [Sobral]. Liguei-lhe com a proposta e a primeira coisa que fez foi perguntar-me quando é que gravávamos. E felizmente todos os que fui imaginando a seguir partilharam igualmente do entusiasmo pelo projecto”. São eles Maria João, que interpreta
Pensação do Menino, Ricardo Ribeiro, em Camisinha do Menino, Mariana Camacho, que canta Baile da Meia Volta e
Mourisca de Santana ,eo saxofonista Desidério Lázaro, entre outros. “Confiei plenamente em cada um deles, e sabia que qualquer coisa que fizessem soaria lindamente.” O resultado é um disco e uma performance que, além de “fazer as pazes com o passado” e procurar “a devolução de um cancioneiro português por vezes desconhecido”, é o “musicar de depoimentos de outras histórias, para mostrar a riqueza de uma cultura que não é só o bailinho da Madeira e que merece ser conhecida”.
Salvador Sobral, Desidério Lázaro, Maria João, Ricardo Ribeiro e Mariana Camacho são alguns dos músicos que interpretam, em Mutrama, temas do cancioneiro madeirense