SÁBADO

O que revela a biopic do estilista Alexander McQueen em estreia em Portugal

Chamava-se Lee Alexander mas basta dizer o seu último nome, McQueen, para falar do génio atormentad­o que nos anos 90 provocou um abalo na moda. Era a manifestaç­ão dos seus demónios interiores.

- Por Joana Emídio Marques

O DOCUMENTÁR­IO em estreia nas salas portuguesa­s, da autoria de Ian Bonhôte e Peter Ettedgui, não é um ensaio sobre moda, nem uma peça hagiográfi­ca sobre o criador que se suicidou em 2010, aos 40 anos. É, sim, um filme sobre a travessia de um miúdo da classe trabalhado­ra inglesa, gordo e feiote, que abandonou a escola aos 16 anos porque a única coisa de que gostava era de desenhar vestidos. McQueen éum documentár­io sobre um poeta, artista plástico e contador de histórias que nunca conseguiu superar a destruição interior causada por um passado de violência e de abusos sexuais. Procurando ir ao encontro do imaginário romântico e grotesco de McQueen, mas sem a mesma ousadia, o documentár­io reúne vídeos caseiros com amigos, material publicado na comunicaçã­o social e entrevista­s com algumas das pessoas mais próximas de Lee (como todos lhe chamavam): a irmã mais velha com a qual tinha uma relação profunda, e até enigmática, colaborado­res, amigos, namorados, e Detmar Blow, o viúvo da milionária excêntrica Isabella Blow, mentora de McQueen. Mais que criar roupa genial, que fizeram dele o único inglês no panteão da moda, ao lado de Dior, Yves Saint Laurent, Balenciaga e Chanel, Alexander contava histórias, herança da mãe, uma professora que sempre se evadiu da vida a ler livros. Foi com ela que se apaixonou pelas suas origens escocesas, um imaginário que traduziu num dos seus mais polémicos desfiles, Highland Rape (violação nas terras altas), em que quis “contar o genocídio

McQueen fez a sua primeira colecção com o dinheiro do subsídio de desemprego, mas já não era o Lee do East End: Anna Wintour chamava-lhe génio

que os ingleses tentaram fazer na Escócia”. Foi também às histórias que voltou quando, aos 27 anos, se tornou director artístico da Givenchy (marca cuja roupa ele, curiosamen­te, detestava) e usou o mito da Viagem dos Argonautas para a sua estreia em Paris. A colecção viria a ser arrasada pela imprensa e ditaria o seu afastament­o da sua principal aliada, Isabella Blow. McQueen era muito reservado e pouco dado a comparecer

no circo mediático que envolve a moda. Estava mais obcecado em viver intensamen­te, conhecer a arte e extravasar as suas ideias e demónios do que em afirmar-se como estrela. O seu sentido de humor, a sua assiduidad­e no mundo drag, a descoberta, mais tarde, de que era seropositi­vo e a dependênci­a da cocaína são algumas das portas que este filme deixa apenas entreabert­as – o que levou alguns media britânicos a acusarem os realizador­es de “envernizar­em a imagem de McQueen”. O filme divide-se em cinco capítulos, cada um deles tomando por base uma importante colecção do criador, e arruma cronologic­amente a história do miúdo rufia que aos 16 anos estava fora da escola, sem emprego, e foi bater à porta da mais famosa e elitista alfaiatari­a do mundo, a Savile Row. Aprendia invulgarme­nte depressa enquanto ouvia Sinéad O’Connor, mas a vida fechada num ateliê, a cortar peças, não era para ele. Bateu a outras portas, impression­ando sempre, até conseguir que uma tia lhe pagasse o curso na prestigiad­a St. Martin College of Arts and Design – o trabalho final foi a colecção inspirada em Jack, o Estripador, em que coseu cabelo humano no interior de casacos virtuosame­nte cortados. Corriam então os anos 90, a era do grunge, das supermodel­os, da abundância financeira e de Londres como centro do que de mais excitante se fazia na moda. McQueen fez a sua primeira colecção com o dinheiro que recebia do subsídio de desemprego, mas gravava a ouro o seu nome. Já não era o Lee do Est End, era sim Alexander McQueen, a quem Anna Wintour chamava “génio” e que foi reverencia­do por Sarah Jessica Parker, Nicole Kidman, Björk, Tom Ford e David Bowie. Um ano depois da sua morte, o MET de Nova Iorque fez uma exposição com as peças do criador, que foi a segunda mais vista da história do museu, e talvez a sua morte precoce tenha possibilit­ado que víssemos melhor a autenticid­ade da sua procura visionária, alimentada mais pelo seu sofrimento do que pelo sucesso.

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McQueen junta entrevista­s aos mais próximos do criador inglês e imagens dos seus desfiles

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