PLAYGROUND DE LUXO
O crítico de livros da SÁBADO passou cinco dias em Londres. No regresso, trouxe o retrato de uma cidade cheia de contradições e novos hábitos. A Londres pós-11 de Setembro difere da Londres mítica da literatura e das memórias de Eduardo Pitta. Como?
LONDRES: OS NOVOS HÁBITOS Eduardo Pitta, crítico de livros da SÁBADO passou cinco dias em Londres e fez o retrato da cidade
A imponente fachada do Victoria & Albert, um dos museus mais sofisticados do mundo, não deixa ninguém indiferente. Frida Kahlo é a artista do mês, os ingressos esgotaram
O ESPÍRITO da swinging London acabou. A cidade aguentou os anos Thatcher, mas o paroxismo do 11 de Setembro instalou um novo paradigma. A minha geração cresceu a ouvir os Beatles, a ler romancistas e poetas ingleses e a seguir as tendências de Carnaby Street. Na terra onde nasci ainda se conduz pela esquerda. Tudo isso é passado. Regresso após 20 anos de ausência. Tudo mudou. As barreiras de aço em Green Park e no Admiralty Arch sinalizam o tempo novo. Knightsbridge, o elegante bairro onde costumava ficar (Rui Knopfli morava em Lennox Gardens), tornou-se o playground das monarquias do Golfo, atraídas pelo
pedrigree indígena. As classes altas outrora residentes venderam as casas por valores estratosféricos e mudaram-se para outras paragens.
ROLLS E FERRARIS
“Knightsbridge é hoje um Emirado no centro de Londres”, disse-me um diplomata com quem por acaso me cruzei no Wolseley. De facto, com os seus Rolls e Ferraris de todas as cores, Brompton Road ficaria bem em Riade ou Doha. O Harrods, actualmente propriedade de um fundo soberano do Qatar, transformou-se no meeting point dos milionários do Médio Oriente em trânsito europeu. O dress
code é claro — ninguém entra de alpercatas ou calções, as mulheres não podem ter a barriga ao léu. As iguarias francesas e os deslumbrantes azulejos eduardianos ainda trazem turistas ao Food Hall, mas, nos 22 espaços restaurativos espalhados pela loja, só os homens têm a cabeça descoberta: o horizonte de burcas e hijabs Hermès e Chanel corrobora as teses de Huntington.
Nos seventies, escolhiam-se restaurantes indianos e chineses para driblar o custo de vida. Isso acabou
Fui à procura de um colete, não encontrei. Nenhum trapo custa menos de 500 libras. Nas secções masculinas, os pulôveres de caxemira têm falcões bordados com vidrilhos e as fivelas das gabardines estão cravejadas de pedras semipreciosas. O Harrods não é um fait
divers da imprensa cor-de-rosa. É um sintoma eloquente do choque de civilizações. A dois passos, Cromwell Road devolve-nos antigas memórias. A imponente fachada do Victoria & Albert, um dos museus mais sofisticados do mundo, não deixa ninguém indiferente. Frida Kahlo é a artista do mês, os ingressos esgotaram por venda electrónica, mas sobra o vasto e riquíssimo acervo de arte greco-romana, medieval, renascentista, islâmica, japonesa, hindu, britânica, europeia e, claro, as colecções de fotografia, pintura, escultura, design, mobiliário e joalharia. The Future Starts
Here, uma exposição temporária sobre a realidade interactiva, tem a portuguesa Mariana Pestana como curadora. Virada ao Museu da Ciência, Multiply, uma instalação em madeira da Waugh Thistleton Architects, ocupa quase todo o pátio traseiro do museu.
Nos seventies, escolhiam-se restaurantes indianos e chineses para driblar o custo de vida. Isso acabou. Hoje, nenhum restaurante étnico se permite dispensar um chef. Os altos funcionários de Bruxelas e os oligarcas russos gostam de ser vistos no Sketch Lecture Room, de Pierre Gagnaire, morada de Mayfair onde só o dinheiro conta. Os happy few preferem o Ledbury, de Brett Graham. Ambos com as inevitáveis estrelas Michelin, mas o de Notting Hill sempre lembra as tropelias de Hugh Grant no filme homónimo. O all-day
menu mantém os restaurantes abertos das 7h da manhã à 1h da madrugada, servindo de enfiada pequenos-almoços,
brunches, almoços, afternoon tea e jantares. Os japoneses e os tailandeses são mais caros que os franceses, muitos italianos praticam preços de extorsão – caso do River Café, em Hammersmith –, e só a cadeia portuguesa Nando’s (18 restaurantes no centro, outro tanto fora do centro), elogiada por motoristas de táxi polacos e por Jay Rayner, o influente crítico do Guardian, só esta cadeia especializada em frango com piripíri contraria a média de três dígitos por casal. Mesmo nos indianos. Em Kensington, ir ao Dishoom significa tudo menos poupança. Vale a pena por várias razões. Cosmopolita, imenso, frenético, faz-nos perder a noção de espaço e tempo.
Com a maior concentração de bilionários numa única cidade, e profissionais jovens qualificados remunerados como marajás, não admira que, para os europeus do Sul, as refeições principais sejam um problema. Uma consulta ao Harden’s, a bíblia dos restaurantes, e as indispensáveis sugestões de amigos familiarizados com a cidade, permitem encontrar moradas a preços sensatos. Próximo de Oxford Street, a Berners Tavern, no hotel London Edition, é um sítio vibrante para ocasiões especiais, com preços iguais aos da Bica do Sapato. No Soho, a
Brasserie Zédel tem música ao vivo, colunas de mármore e um bar art déco. No coração do West End, o Orrery é um oásis de bom gosto e serviço irrepreensível. Fica num primeiro andar de Marylebone High Street, porventura a rua mais
trendy de Londres.
Ali perto, em Manchester Square, a Wallace Collection é uma das moradas mais secretas da cidade. Contudo, as colecções reunidas por Sir Richard Wallace incluem tapeçarias e mobiliário do século XVIII, porcelanas de Sèvres, armaduras e armamento, obras de Ticiano, Rembrandt, Turner, Fragonard, Van Dyck, Gainsborough, Delacroix, Boucher, Hals, Velázquez, Canaletto, Zampieri, Watteau, Rubens, Crivelli, etc., bem como esculturas de Houdon, Roubiliac, Prieur e outros. A escala humana do museu — Hertford House é uma mansão — faz dele um lugar de excepção. Como sucede em todos os museus públicos, os ingressos são gratuitos. O chairman éo banqueiro português António Horta Osório.
Em matéria de museus, Londres só tem paralelo com Nova Iorque. A National Portrait Gallery é um dos meus preferidos. Dos Tudor a David Beckham, expõe retratos de toda a gente que conta. Germaine Greer, a australiana que afrontou o feminismo anglo-americano com The
Female Eunuch (1970), surge retratada por Paula Rego, “one of Britain’s figurative artists”. Como gostei de descobrir
Broken Bodies, de Jamie Coreth. Para assinalar os 60 anos do nascimento de Michael Jackson, Nicholas Cullinan, director do museu, organizou
On The Wall, uma exposição sobre a influência de Jackson na música contemporânea, na arte, na dança e na moda. Na outra margem do Tamisa, a Tate Modern e The Shard mudaram o perfil de Soutwark. A Tate Modern é um prolongamento da velha Tate Britain (em Westminster) onde todos aprendemos a ver Turner. Na antiga central eléctrica de Bankside, a Tate Modern exibe arte moderna e contemporânea. Helena Almeida faz parte do espólio, ao lado de Cindy Sherman, Bacon, Duchamp, Kentridge, Magritte, Rothko e dezenas de outros, novíssimos incluídos.
O HOT SPOT DO VERÃO
Uma grande retrospectiva de arte da República de Weimar foi um dos hot spots do Verão. Saídos da Tate Modern, não há como escapar ao Shard, o arranha-céus de Renzo Piano que domina a paisagem. Do topo dos seus 95 andares, a vista de Londres e arredores esmaga o visitante mais abúlico. Como, além de escritórios e apartamentos, o edifício tem dentro um hotel, o moderníssimo Shangri-La, vem muito a propósito subir ao 52º andar para tomar um copo no Gong, o bar que proporciona uma vista de tirar o fôlego. Se quiser ter a ilusão de estar em Calcutá, o Borough Market (século XII) fica muito perto. De regresso à outra margem, Covent Garden e o Strand valem uma manhã. Só ali existem lojas alternativas que não encontramos nas ruas elegantes em redor de Piccadilly e Regent Street, área onde se concentra o comércio de luxo, ou na vertigem de griffes internacionais de Oxford Street. Fui a Covent Garden por causa do Stanfords, que é, dizem os especialistas, a melhor loja de mapas desde 1852. Cidade de contrastes, temos de escolher entre a Abadia de Westminster e o pepino de Norman Foster, um dos edifícios mais belos do mundo. Não só: o Gherkin é uma das obras
Covent Garden e o Strand valem bem uma manhã. Só ali existe o tipo de lojinhas alternativas que não se encontranas ruaselegantes
de arquitectura mais admiradas e premiadas. A abadia tem filas de espera superiores a duas horas. Altura de apanhar um dos barcos que ligam o cais de Westminster a Greenwich. Sair na Torre de Londres permite dar um salto a Canary Wharf, a extensão do distrito financeiro em versão nova-iorquina. O nº 8 de Canada Square, sede mundial do HSBC, obra de César Pelli, provoca bocejos. Antes ir a Greenwhich ver o Observatório Real, o National Maritime Museum e a Junk Shop, loja de antiguidades bizarras para os amantes de bric-à-brac .De regresso ao centro, impõe-se uma visita ao Museu Britânico (o equivalente do Louvre), mais não seja por causa dos frisos do Partenon. Por razões de segurança, o ingresso obedece a uma complicada gincana. Foi também Foster quem fez a nova Sala de Leitura e o luminoso Great Court, mas o museu continua confuso. Aos que vêem Londres à luz de séries como Downton
Abbey, aconselho compras no Liberty, passeios em Hampstead e Belgravia e afternoon tea no Claridge’s. A rapaziada hipster deve procurar os bares e galerias de Shoreditch. É imperativo conhecer a Saatchi, em King’s Road (Chelsea). Para livros, a escolha óbvia continua a ser a Waterstones. Do outro lado do rio, em frente ao Parlamento, a London Eye garante observação num raio de 40 quilómetros. Se sofre de claustrofobia, desista: são 25 pessoas por cápsula. Despesa por despesa, opte por uma corrida de táxi entre a Catedral de São Paulo, na City, e o mercado de Portobello Road, em Notting Hill, atravessando Hyde Park e Kensington Gardens: o passeio permite ver Londres em grande angular.
Por último, o breakfast: nos hotéis de luxo custa entre 60 e 70 libras por pessoa, nos outros (e nos restaurantes) custa metade. Sem reserva prévia ninguém entra. As cadeias de cafés servem fórmulas que nada têm a ver com o tradicional pequeno-almoço inglês. Por exemplo, porridge e sumo de laranja só em sítios muito bons. E um café expresso não significa o mesmo em toda a parte. O mundo está perigoso, mas Londres vale bem uma missa.
Teatro, ópera e bailado animam a cidade e, para quem gosta e pode, a vida nocturna oferece toda a gama de vício e entretenimento