SÁBADO

Ângela Marques

- ÂNGELA MARQUES

Quaseposso­jurar que a sala de aula tinha um crucifixo pendurado no quadro, uma lareira num canto e carteiras mais velhas que o Salazar por todo o lado. Eu gostava da escola – só tinha dores de barriga na hora da tabuada e pânico das reguadas que separavam a conversa casual com o meu colega do lado de um crime capital. O meu colega de carteira, azar dos azares, era também o meu melhor amigo. E nós não tínhamos culpa de ter tantas coisas para dizer e tão pouco tempo para as discutir no recreio (nós sabíamos que o recreio tinha sido feito para jogar ao lenço, partir óculos graduados, brincar com pistolas de água e abrir os pulsos).Um dia, na hora do almoço, corremos – corremos daquela maneira que rompe sapatos, esfola joelhos mas abre a cabeça e faz o peito para a vida –, corremos tanto que num instante ele se cansou (ou ficou a olhar para um carreiro de formigas) e eu atravessei a estrada como quem cruza a meta. Olhando para o lado, não o vi. Sem olhar, corri de volta. O carro não vinha a grande velocidade e, por isso, esta história seria a partir dali contada como a “do dia em que a Ângela atropelou um carro” e não como a do dia em que “a Ângela foi atropelada mas sobreviveu por ser uma miúda com uma capacidade de sobrevivên­cia acima do normal”. Como é que eu o recordo? Como o dia em que fiquei à frente da turma como um mau exemplo de peão – a professora, claro, não percebeu que a turma me viu como uma heroína com elásticos no lugar de ossos. Nem um arranhão. Esta semana, do conforto de um táxi, vi um homem feito precipitar-se numa passadeira de Sete Rios simulando correr. Ele não corria, andava aos saltinhos, para remediar o facto de se ter atirado para a passadeira sem olhar. Sorri para dentro e pensei que faço igual. Ele era eu no fingimento da pressa, como se atravessar uma passadeira fosse atrapalhar o trânsito e nós não fôssemos essas pessoas. Com isto percebi: estou crescida. Ainda assim, Nuno Filipe, onde quer que tu estejas, quero que saibas: voltava a fazer tudo igual.

ESTA SEMANA VI UM HOMEM FEITO PRECIPITAR-SE NUMA PASSADEIRA SIMULANDO CORRER. ELE NÃO CORRIA, ANDAVA AOS SALTINHOS

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