NUNO ROGEIRO
Amaior falha de segurança dos países da NATO, desde o fim da Guerra Fria, foi a descoberta da rede de espionagem russa nas repúblicas bálticas, o chamado Caso Simm, de 2008, onde participou um agente “português” do SVR, António Graf.
Mas o furto de Tancos terá sido certamente o mais importante desvio de material militar da Aliança de todos os tempos. E em Portugal, se exceptuarmos a “balbúrdia sanguinolenta” da Primeira República, não se vira coisa assim desde 10 de Setembro de 1975, quando 1.200 espingardas G3 foram subtraídas ao DGMG, então em Beirolas. O autor moral do feito, capitão Álvaro Fernandes, disse então que as armas “estavam em boas mãos”. Neste quadro, quando foram “achados” os equipamentos de Tancos, a nação serenou um momento: 44 lança-foguetes anticarro e uma grande quantidade de explosivos plásticos, que antes o MDN dissera poderem estar nas mãos de gangsters e terroristas, voltavam à tutela própria.
Mas esperava-se, na altura, que o capítulo imediato fosse o da captura dos responsáveis e o desmantelamento da eventual rede “muito profissional” (volto a citar o MDN) que levara a cabo o acto.
Antes e depois, três coros suspeitos ajudaram à festa.
Um explicava que não tinha havido furto algum, e que era tudo uma “farsa”. Outro desvalorizava o caso, jurando que o saque consistia em geringonças (que me perdoe a própria) obsoletas, inúteis, até perigosas para os gatunos. Um terceiro sussurrava que o
importante era a “recuperação”, e que o desagradável incidente ficava “encerrado”.
Quando a PJ (Graças a Deus por ela) continuou serenamente o seu trabalho, no cumprimento de um mandado judicial, de uma tarefa essencial de segurança e de um dever deontológico, criou-se um quarto coro: o dos que descobriram na sucessão de eventos “uma guerra de poder entre polícias”. Ora a verdade é que este desenlace provisório desmantela as quatro narrativas convenientes: houve furto de material perigoso, a rede de cumplicidades era complexa e perturbante, por entrar no âmago das tarefas de soberania, e existiu uma tentativa desesperada para que se impedisse a descoberta da verdade.
Em todos os tempos, em todos os países, com todas as polícias e serviços de segurança, existiram pactos diabólicos: infracção de normas e negociações com os delinquentes, para que o bem maior, a segurança colectiva, fosse preservado.
Mas há que fazer duas observações sobre isso: fora dos casos em que os próprios regimes securitários eram os criminosos, em todos os outros os pactos, quando descobertos, foram punidos. “Ossos do ofício”, como se costuma dizer.
Daí que todas as ordens jurídicas tenham passado a integrar figuras como a do “agente infiltrado” e do “arrependido”, de redução de penas por colaboração com as autoridades, até de perdão, para conseguir quebrar, sem ilegalidade flagrante, redes delinquentes especialmente sofisticadas, enraizadas ou persistentes. Mas no caso vertente, só seria desculpável a “irregularidade” que levasse ao desmantelamento e julgamento da rede criminosa, e não apenas à recaptura do material mais mediático. Aquela era a causa, este só a consequência. Dizemos mais “mediático”, para não desvalorizar o facto de as 1.500 munições de 9 mm ainda a monte não se destinarem certamente a armas legais, registadas e autorizadas. É assim lamentável que alguém invoque o “interesse nacional” como cobertura de um delito de lesa-Pátria, de traição às forças armadas e ao povo, Nação e Estado que estas juraram servir. Bem sei que as grandes palavras perderam o valor.
Mas não tratemos este assunto como um pequeno crime entre amigos. P.S. – Os patéticos nostálgicos do franquismo olham no Vale dos Caídos para o repouso natural do seu ídolo e senhor. Os alegados opostos, ex-maoístas, bolcheviques e polpotistas, adoradores de carniceiros disfarçados de ovelhas, querem arrasar o que devia ser um lugar de reconciliação. Mas o apagardas pedras não fecha as feridas.W