JOÃO PEDRO GEORGE
Passemos a assuntos mais sérios. Qual é a parte mais importante de uma casa de banho? A pergunta é bem feita, e é sem dúvida muito oportuna: é aquele objecto sanitário com o formato de uma bacia oblonga, ao lado da retrete e da banheira, mais correctamente chamado bidé. Enquanto a retrete, desculpem, é uma merda, o bidé é original, complexo e elegante. A retrete é uma grandessíssima chatice, faz-nos lembrar que somos uma desgraça completa, insignificantes, iguais aos outros todos, o bidé não. O bidé é como um animal doméstico que priva muito de perto com os seres humanos, sabe tudo sobre eles, possui um íntimo conhecimento sobre os seus podres ocultos, mas adopta a atitude de quem não sabe nem quer saber. A retrete dá-nos uma satisfação imediata, capta a pocilga da condição humana – não somos as nossas ideias, crenças e convicções, somos apenas os nossos cheiros e a prisão das nossas necessidades urgentes –, o bidé, pelo contrário, é um sopro de ar fresco que nos permite respirar melhor e ver o futuro com mais confiança. A retrete só quer ser o que parece ser, o bidé sabe que ninguém é o que quer ser. A retrete é cabotina e grotesca, recorda-nos que somos reais precisamente na medida em que somos feitos de fluidos e sólidos, de humores e de odores corporais desagradáveis, que nos expõem à putrefacção. O bidé é uma coisa muito mais profunda, não possui a pretensão vaidosa de influenciar a nossa consciência, por isso nunca perde a dignidade do seu silêncio, é muito discreta a seu próprio respeito, mostra-nos que é mais interessante aquilo que se cala que aquilo que se diz. Não é difícil justificar a utilidade e a função social do bidé. Na realidade, há várias situações que pedem um bidé. Porque, tal como a cabeça não serve só para pousar o chapéu, o bidé também não serve apenas para o meritório hábito de lavar os pés, a genitália, o períneo e a região situada entre as nádegas. Sobre as outras funções do bidé, como toda a gente sabe, muitas variantes podem ser enunciadas: pôr as garrafas de champanhe ou de cerveja em gelo; colocar a roupa de molho; lavar as mãos das crianças; pousar revistas, livros, jornais; cortar as unhas dos pés ou pintá-las com verniz; dar água ao cão ou ao gato. Além do mais, bidé é uma palavra deliciosa e divertida. Ao contrário de retrete, que é uma palavra ligeiramente irritadiça, que se arrasta na língua como um réptil por folhas secas, bidé tem uma graça própria, rima com chulé, xexé, bebé, burrié, etc. O bidé, só pelo facto de existir, já tem graça. Estar sentado no bidé evoca a infância, é como estar montado num cavalinho de baloiço, admite apóstrofes palermas, como “ó filho, pára de chapinhar no bidé, estás a fazer um grande banzé”. Não é por acaso que portugueses de várias gerações aprenderam a ler com a palavra bidé, como se pode inferir da análise da Cartilha Escolar do Inspector Domingos Cerqueira, onde o bidé é referido: “Bidé sabe bóina/a mula bebe no balde e a vitela na tina”.
E, no entanto, embirra-se cada vez mais com o bidé, já ninguém quer ter
bidé na casa de banho. O problema é este: pensar-se que o bidé já não tem utilidade. Que é pouco prático, pouco cómodo e, sobretudo, que ocupa muito espaço, que deixou de ser consentâneo com as necessidades das pessoas actuais. Antigamente, o bidé era habitual, hoje tornou-se um trambolho, quase uma curiosidade arqueológica. Quase todos os meus amigos já foram impelidos, por razões de espaço, a abandonar o bidé. Tiraram o bidé para colocarem um armário de parede Lillången ou uma estante Rönnskär. A nossa obsessão com o espaço e com o estilo de vida Ikea está a destruir o bidé. Portugal começa a ter armários de parede Lillången e estantes Rönnskär a mais e bidés a menos. Sinceramente vos digo: admiro uma casa de banho que não tenha vergonha do seu bidé. Entrar numa casa de banho sem bidé é semelhante a entrar num WC públi- co. Na verdade, só os trogloditas têm casas de banho sem bidé.
O bidé é demasiado importante para ser destruído por questões de arrumação, para ser substituído por armários cheios de gavetas para guardar o nosso arsenal de cremes, perfumes, óleos, sabonetes, maquilhagem e demais produtos que realçam a atenção obsessiva que o ser humano dedica às aparências. Porque uma coisa é certa: o bidé ainda não deu tudo o que tinha a dar. Hoje em dia, em plena ditadura do papel higiénico e mesmo das toalhitas húmidas, o bidé é menos contaminante e mais ecológico.
A tragédia do planeta, o mal do nosso mundo, é que são raras as pessoas, hoje, com feitio para lavar o rabo no bidé. Perdoe-se-me se simplifico demasiado, mas o bidé é uma instituição que corre perigo, está em vias de extinção, corre o risco de ficar fechado num museu ou nos livros de História. O bidé não é uma questão puramente arquitectónica, de espaço ou de boas maneiras. É também uma questão vital de respeito pelo meio ambiente. Por isso, o bidé precisa de ser defendido, carece de uma protecção especial, necessita urgentemente de ser salvo, louvado e estimado. Será que só quando o bidé estiver nos museus é que conseguiremos apreciar plenamente as maravilhas do bidé? Para quem o não sabe, o bidé em todas as casas de banho dos portugueses foi uma das grandes conquistas de Abril, é uma medida-padrão da nossa democracia. E, bem vistas as coisas, Portugal é um pouco como um bidé. Arrisco-me mesmo a afirmar que: “Isto é um bidé!” Como quem diz: pequenino e estreito, em Portugal todos nos conhecemos e todos sabemos tudo o que se passa. Não vale a pena, por isso, fazer grandes ondas: quando quiser apenas lavar as partes inferiores do tronco, abaixo do umbigo, use o bidé. Só assim é que o bidé pode sobreviver. Glória ao bidé.