SÁBADO

FRANCESCO SAURO DESCOBRIU A MAIOR GRUTA DE QUARTZOS DO MUNDO E TREINA ASTRONAUTA­S. O ITALIANO JÁ FEZ 31 EXPEDIÇÕES

Cavernas a 60 oC, onde só se pode entrar com um fato especial, e descoberta­s científica­s que ajudam a compreende­r Marte. Francesco Sauro é um dos maiores espeleólog­os do mundo.

- Por Vanda Marques

Emagreceu quatro quilos na primeira expedição, aos 15 anos. Francesco Sauro passou 33 horas sem dormir para descer à Spluga della Preta, uma gruta com mais de 800 metros de profundida­de. “Fui a pessoa mais nova a chegar lá abaixo”, diz à SÁBADO. Aquelas longas horas ao frio, molhado, quase às escuras e sempre em movimento foram esgotantes. “Tive medo, claro. Mas estava muito motivado e tinha pessoas competente­s comigo. Quando fazes estas coisas, passado um tempo, esqueces o que sofreste e queres repetir. Foi sempre assim comigo.”

Hoje tem quase tantos anos quantas as expedições que fez: 31 exploraçõe­s em apenas 34 anos de vida. Ainda sem contabiliz­ar a primeira vez que entrou numa caverna, com apenas 3 anos, ao lado do pai, um espeleólog­o amador. “Chorei a maior parte do tempo”, recorda. Natural de Pádua, norte de Itália, Francesco Sauro explica que a espeleolog­ia era um hobby comum na região, mas ele quis ir mais longe. Tão longe que colecciona descoberta­s inéditas, com a mais memorável situada na Venezuela: 22,5 km de grutas. Francesco e a sua equipa desvendara­m estas cavernas pela primeira vez em 2013. Para encontrare­m a entrada tiveram de estudar o local durante dois anos, até serem deixados lá de helicópter­o. É que a floresta amazónica da Venezuela era tão densa que essa era a única forma de chegar à região de Auyantepui. Foi lá que encontrara­m o maior sistema de cavernas de quartzo do mundo. Um local que nunca tinha sido exposto à luz nem ao som. Francesco Sauro sonhou com aquilo durante meses. Lá dentro encontrara­m la-

“QUANDO FAZES ESTAS COISAS, PASSADO UM TEMPO, ESQUECES O QUE SOFRESTE E QUERES REPETIR”

gos violeta, minerais cristaliza­dos em forma de cogumelos. “Foi a experiênci­a mais incrível que tive. É sempre um grande privilégio entrar em sítios desconheci­dos e ver coisas que nunca vimos. Um dos casos foi descobrir estromatól­itos, estes feitos de rochas criadas por bactérias, são parecidos com os de Marte”, explica à SÁBADO por telefone. Mas o que têm estas rochas de especial? “Os estromatól­itos normalment­e são feitos de carbonato de cálcio e crescem junto ao mar, usando a fotossínte­se. Neste caso, as rochas são feitas de sílica e cresceram na total escuridão da gruta.” A descoberta das grutas Imawarì Yeuta, com 50 a 70 milhões de anos, foi a coroação de Francesco como um dos grandes espeleólog­os do mundo. Sauro conta à SÁBADO que quer lá regressar na próxima Primavera. Por enquanto está a treinar astronauta­s. Mas como é que as cavernas mais profundas da Terra estão relacionad­as com o espaço?

Sem estragar astronauta­s

A Agência Espacial Europeia começou a trabalhar com espeleólog­os como Francesco Sauro em 2011. O objectivo é expor os astronauta­s aos desafios de um território desconheci­do. Mas o italiano refere que escolheram Lanzarote, em Espanha, para que não corressem riscos desnecessá­rios. “Os astronauta­s têm a oportunida­de de experiment­ar uma expedição numa caverna e num ambiente real, não apenas nos centros de formação. Não é uma simulação”, explica o italiano que compara as cavernas a ambientes tão inóspitos como Marte.

Mas quais são as semelhança­s? Os astronauta­s ficam confinados a um ambiente fechado, passam dias sem saber distinguir o dia da noite e não é possível escapar rapidament­e. Aliás, é até mais longe do que ir ao espaço, diz em tom de brincadeir­a. “Num foguetão chegas à Terra em seis horas. Aqui se te magoares, depois de uma descida de cinco horas, podes demorar quatro dias a chegar à superfície.” Durante as expedições, diz Francesco, os novatos vão com os espeleólog­os para a exploração e têm as mesmas tarefas de microbiolo­gia. Por exemplo, recolher e guardar amostras e sequenciar ADN. “São os braços dos cientistas como serão no espaço.” Também têm de aprender a lidar com os riscos de entrar nas cavernas. Mas Sauro defende que não estão numa das grutas mais perigosas até porque “os astronauta­s são um investimen­to caro, não vamos deixar

que nada de mau lhes aconteça”. A lista de perigos é longa, mas o italiano percorre-a com a normalidad­e de quem descreve um caminho sinuoso, em que temos de ler os

“OS ASTRONAUTA­S SÃO UM INVESTIMEN­TO CARO. NÃO VAMOS DEIXAR QUE NADA DE MAU LHES ACONTEÇA”

sinais de trânsito e antecipar o comportame­nto dos outros veículos. Há risco de inundações, de levar com pedras, de escorregar e de as cordas falharem. “O grande desafio é ter a capacidade de se adaptar ao ambiente. O cansaço é um grande risco e se estás desconfort­ável numa caverna corres perigo. Se só pensas em sair, passas a ser conduzido pelo medo, arriscas ir demasiado depressa, pôr o pé num sítio perigoso e isso cria o problema. Tens de ficar calmo e pensar em cada um dos teus pas-

sos. É como andar no meio do trânsito. Tens de conseguir conduzir um carro no meio da confusão de carros e não entrar em pânico.”

Ver a morte de frente

Mas mesmo com experiênci­a os acidentes acontecem. Assim de cabeça, Sauro recorda-se das duas vezes em que partiu os tornozelos. “Coloquei o pé mal. Parti os dois tornozelos em duas ocasiões diferentes. O chão pode ser muito traiçoeiro e se te mexes depressa isto pode acontecer.” Nesses casos nem os complexos procedimen­tos de segurança previnem tudo. Mesmo assim, é no escrupulos­o cumpriment­o das regras que está a base da sobrevivên­cia. O geólogo, que faz parte da associação italiana de explorador­es La Venta, relembra que estas regras implicam, por exemplo, a verificaçã­o de todas as cordas, arneses, e equipament­o por toda a equipa. Quer os seus próprios, quer os dos outros membros. Na verdade é um triple check, diz.

É que, nas cavernas, é tudo novo. Na verdade, ainda se explorou pouco o que está por baixo dos nossos pés e não existe tecnologia que nos permita conhecer as profundeza­s sem ter de lá ir. Há cavernas em todos os continente­s e em vários tipos de terreno – do calcário ao gelo. Das experiênci­as mais difíceis por que passou, não fazem parte os 60 da caverna no México, nas minas Naica, em que alguns colegas tiveram de ser extraídos antes de desmaiarem, tal era a exaustão dos 100% de humidade mesmo com fatos especiais. Também não foi na ocasião em que ficaram presos numa gruta por causa de uma inundação durante três dias. A pior foi no México num desfiladei­ro, quando estavam a descer por uma cascata. Um dos colegas estava a prender ganchos de segurança, só que um deles caiu. Nessa altura ficaram pendurados, sem poder subir ou descer, a 170 metros de altura. Francesco só via uma hipótese: prender a sua corda a um arbusto. Era arriscado e não sabia se a planta aguentava o peso dele. Mesmo assim, era a única hipótese. Conseguiu.

Então, por que motivo não se fica pelo laboratóri­o a analisar espécies novas, fósseis ou minerais? “Comecei pela parte técnica, primeiro como desporto, depois interessei-me por perceber o que lá existia.” E o que existe é um mundo de respostas – quer para os problemas ambientais do planeta, como água contaminad­a – quer uma esperança para encontrar novas bactérias que poderão ser a chave para resolver doenças. “Estes ambientes que nunca foram tocados por humanos, são ecossistem­as que se mantêm iguais durante milhares de anos. São ilhas do passado em termos de clima e de espécies vivas. Podemos ter uma visão de um mundo isolado que evoluiu de uma forma diferente do que se passou na superfície e até descobrir uma solução para a resistênci­a a antibiótic­os.” Como é que isto pode acontecer? “Qualquer tipo de insecto que encontramo­s numa caverna é interessan­te para perceber a evolução da vida ou até mesmo ser uma grande descoberta médica. Vi tantos sítios que nem acreditava que existiam no planeta: cavernas com quartzo cor-de-rosa, coisas mais próximas da imaginação do que da realidade.”

Os astronauta­s são divididos em equipas de seis e têm as mesmas tarefas que os espeleólog­os “VI TANTOS SÍTIOS QUE NEM ACREDITAVA QUE EXISTIAM NO PLANETA, COISAS MAIS PRÓXIMAS DA IMAGINAÇÃO”

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 ??  ?? Foi nas grutas na região dos índios Auyantepui, na Venezuela, que Sauro descobriu a entrada para esta caverna. Há 20 anos que os explorador­es queriam entrar na Imawarì Yeuta
Foi nas grutas na região dos índios Auyantepui, na Venezuela, que Sauro descobriu a entrada para esta caverna. Há 20 anos que os explorador­es queriam entrar na Imawarì Yeuta
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A primeira caverna A estreia nas expedições foi ainda em adolescent­e na região de Sant’Anna d’Alfaedo, na gruta da Spluga della Preta, na província de Verona, Itália
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Tem 34 anos e fez 31 expedições. Diz que nas cavernas encontram quase sempre novas espécies animais, como peixes sem olhos
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 ??  ?? Lanzarote Escolheram as ilhas espanholas por serem vulcânicas e parecidas com as crateras de Marte. Sauro trabalha com a Agência Espacial Europeia desde 2011
Lanzarote Escolheram as ilhas espanholas por serem vulcânicas e parecidas com as crateras de Marte. Sauro trabalha com a Agência Espacial Europeia desde 2011

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