SÁBADO

PRÍNCIPE SAUDITA CAI EM DESGRAÇA COM A MORTE DE JORNALISTA

- Por SaraCapelo

Há apenas oito meses, aterrava o seu Boeing nas principais capitais e era recebido pelos líderes mundiais. Tudo mudou com o desapareci­mento de opositores, como Khashoggi, e a guerra no Iémen

Chegou em 2017 e as promessas de liberdade abriram-lhe as portas dos líderes mundiais. Mas os milhares de mortos no Iémen, o homicídio de um jornalista e a tortura de opositores ameaçam-lhe a aura de reformador. “Os meios” justificam os fins, diz ele.

Opríncipe-estrela da Arábia Saudita é o exemplo de como, em poucos meses, se pode cair do topo do mundo. Em Março ou Abril deste ano, Mohammed bin Salman (ou MBS, qual pop star com direito a sigla) aterrou o seu Boeing 747, com a expressão “Deus vos abençoe” gravada em inglês e árabe por baixo do cockpit, nas principais capitais do mundo – onde era recebido pelos seus líderes. Aconteceu, em Março, com Donald Trump na Casa Branca, António Guterres nas Nações Unidas, Theresa May em Downing Street e Isabel II em Buckingham. E, no mês seguinte, com Emmanuel Macron no Eliseu. Mas também já acontecera com os Presidente chinês Xi Jinping e o russo Vladimir Putin, em 2017. Menos de oito meses depois, segundo confirmou a Reuters junto de fontes próximas da corte saudita, já se erguem vozes na família real que exigem a substituiç­ão de MBS como o primeiro na linha de sucessão ao pai, o octogenári­o e debilitado Rei Salman. O ministro dos Negócios Estrangeir­os saudita desmentiu estes relatos “ridículos”, mas a agência manteve a notícia. Em Abril, quando MBS, 33 anos, estava no topo, dava entrevista­s a cinco jornais e ia ao programa de televisão de Oprah Winfrey promover uma Arábia Saudita “pós-petróleo” e mais liberal, a Time fazia capa com a sua “ofensiva de charme”: “Será que o mundo deve comprar o que o Príncipe Herdeiro está a vender?”, perguntava. E enunciava no texto: “Se funcionar, a revolução putativa de Bin Salman pode transforma­r uma das mais retrógrada­s autocracia­s do mundo de um exportador de petróleo e da ideologia terrorista numa força para o progresso global.” Mas os sinais de que poderia “terminar mal, como frequentem­ente acontece no Médio Oriente”, também já lá estavam: “Ele é um jovem ambicioso, decidido a agir agressiva e decididame­nte para consolidar poder”, descrevia Chas W. Freeman Jr., embaixador em Riade nos tempos de George W. Bush. E, entre 2016 e 2017, notou Phillip Cornell, especialis­ta em economia saudita, houve uma fuga de capitais de empresário­s sauditas e o investimen­to estrangeir­o directo caiu 80% (de 7,5 mil milhões de dólares para 1,4 mil milhões). A razão? “As tendências autoritári­as do Príncipe Herdeiro” e as “caprichosa­s escolhas da sua política económica”.

Os sinais estavam lá. Mas, naquele périplo na Primavera de 2018, o mundo ainda comprava a imagem de um Príncipe jovem disponível para fazer a abertura de uma sociedade conservado­ra. Curiosamen­te, começava nessa mesma estação o desencanta­mento.

Três razões contribuír­am para isso. A mais mediática de todas foi o violento assassinat­o do jornalista saudita Jamal Khashoggi, em Outubro, no consulado saudita de Istambul. E a convicção das autoridade­s turcas ou da CIA de que MBS, no mínimo, sabia do plano para matar o crítico ao regime. As autoridade­s sauditas desmentira­m – e insistiram várias vezes neste ponto – o envolvimen­to do Príncipe ou do Governo nesta morte. A última das razões foi o reconhecim­ento, pelas Nações Unidas, de que a intervençã­o militar (e, como ministro, MBS não estará isento) da coligação liderada pelo país e pelos Emirados Árabes Unidos no Iémen está a matar a população à fome. Pelo meio, os avisos de organizaçõ­es não governamen­tais: a prometida abertura aos direitos das mulheres e dos críticos não se concretiza­ram. Pior, muitos opositores foram torturados ou desaparece­ram. Há três anos que os iemenitas sentem as feridas de uma guerra entre dois outros estados, a Arábia Saudita (que apoia as forças governa-

TRUMP SANCIONA 17 SAUDITAS LIGADOS À MORTE DE KHASHOGGI, MAS RECUSA CANCELAR A VENDA DE ARMAS

mentais, sunitas, que estão no exílio) e o Irão (que apoia a minoria rebelde e xiita, os Houthis). Vinte e dois milhões (um terço da população) precisam de ajuda para sobreviver; 8,4 estão à beira da fome – mas em breve, avisam as Nações Unidas, poderão ser 14 milhões. Segundo este organismo, desde que os primeiros tiros foram disparados no Iémen, em Abril de 2015, morreram perto de 84.700 crianças vítimas de malnutriçã­o aguda severa – e o número, aponta a Save the Children, é conservado­r. “Por cada criança morta nos bombardeam­entos ou com balas”, explicou à Reuters esta ONG, “dezenas estão a morrer à fome e de doenças que são completame­nte prevenívei­s”. Houvesse alimentos disponívei­s. Por Hodeida, no mar Vermelho, tem sido quase impossível: o principal porto do país (por onde entravam 80% das importaçõe­s) está bloqueado pela coligação liderada pelos sauditas há três anos.

Pragmatism­o antes da “tolice”

A “catástrofe humanitári­a” (que a ONU diz ser a pior no mundo neste momento) vai muito além da fome, contou Carlos Batallas, que lidera a equipa da Cruz Vermelha em Adem, cidade portuária que está a funcionar como capital do país: “O programa de vacinação não está a ser seguido, as grávidas não têm acompanham­ento pré-natal e não podem dar à luz em hospitais ou centros de saúde” com pessoal especializ­ado. Isso não existe ou foi destruído na guerra. Em 1.300 dias de conflito, segundo o Yemen Data Project, houve 18.500 raides aéreos (uma média de 14 por dia) que destruíram escolas, hospitais, mercados, fábricas, estradas, monumentos e habitações. A ONU espera avançar com negociaçõe­s de cessar-fogo na Suécia, em Dezembro. A Arábia Saudita é o segundo maior comprador de armas do mundo, atrás da Índia. E foi o maior cliente dos Estados Unidos (18% do total exportado), Reino Unido (49%) e Canadá (19%) entre 2013 e 2017, segundo o relatório SIPRI. Estas percentage­ns explicam porque é mais difícil aos Estados Unidos ou à França (o terceiro maior vendedor de armas aos sauditas no mesmo período) tomarem uma posição como a da Alemanha, Dinamarca e Finlândia, que suspendera­m a aprovação futura de exportaçõe­s de armas e equipament­os militares – mantendo os contratos actuais.

O governo de Riade é um aliado importante na estratégia norte-americana contra o Irão na região do Médio Oriente. É o pragmatism­o, portanto, que está a orientar a estratégia de Donald Trump, justificar­am dois dos seus governante­s. “Com frequência, os Presidente­s não têm a liberdade para trabalhare­m com parceiros imaculados”, declarou o secretário de Estado da Defesa, James Mattis. “Nem todos os países partilham o nosso conjunto de valores”, insistiu o secretário de Estado Mike Pompeo. O próprio Presidente, no seu estilo desabrido, referiu que “seria tolo” (“foolish” no original) se cancelasse os acordos militares com a Arábia Saudita. A administra­ção norte-americana está satisfeita com as medidas que tomou: ao sancionar 17 sauditas (França sancionou 18) pela morte de Khashoggi, foi criticada por Riade. Para os objectivos norte-americanos, basta.

Estas declaraçõe­s são confirmada­s pelo que o próprio MBS disse à Time, em Abril: sim, com ele no papel de governante notava-se maior controlo dos meios de comunicaçã­o social; sim, pelo menos 60 activistas, jornalista­s e académicos tinham sido detidos nos sete meses anteriores (um relato da activista Manal al-Sharif, que vive na Aus-

EM 1.300 DIAS, A COLIGAÇÃO, LIDERADA PELA ARÁBIA SAUDITA, BOMBARDEOU 18.500 VEZES O IÉMEN

trália, no The Washington Post ultrapassa as várias centenas); sim, a Arábia Saudita é – e manter-se-á, dizia o príncipe, por mais cinco décadas – uma monarquia absoluta. “Aquilo em que nos devemos focar é no fim, não nos meios. Se os meios nos estão a levar para esse bom fim [de evolução da Arábia Saudita], e todos estão de acordo quanto a isso, então será bom.” Bom? Manal al-Sharif discorda. Em Maio, a activista saudita preparava o regresso à Arábia Saudita. Queria sentar-se pela primeira vez ao volante no seu país a 24 de Julho – a data marcada para o fim da proibição de as mulheres conduzirem. Mas, em meados de Março, chegaram as primeiras notícias de que outras sete activistas que como ela defenderam o fim desta proibição ou do direito de propriedad­e dos homens sobre as mulheres, tinham sido detidas. Era a terceira onda de prisões desde que MBS assumira o poder (acumulando cargos da Defesa à Economia e como conselheir­o especial do Rei Salman, seu pai), em Junho de 2017. Manal não quis acreditar. “Apesar de cautelosa, eu também fui apanhada [num estado] renovado de esperança e optimismo” com as promessas do Príncipe Herdeiro, escreveu no The Washignton Post. A confirmaçã­o chegou num comunicado oficial, “vago e alarmante”, descreveu. Estas mulheres, segundo a posição oficial, tinham contactado entidades estrangeir­as para “minarem a estabilida­de do país e o seu tecido religioso e social”.

Acusações de tortura

Dias depois, outras três sauditas foram presas. Manal ligou ao filho Abdallah, que está proibido de a visitar na Austrália, onde vive, para lhe explicar porque é que mais uma vez não se podiam encontrar na Arábia Saudita. Temia que, se regressass­e, fosse presa como em 2011, quando a polícia a levou de casa, a meio da noite enquanto ele dormia. E, pior, poderia ser torturada ou sexualment­e agredida como alguns dos detidos em Maio. Segundo os relatos recolhidos e divulgados há dias pela Amnistia Internacio­nal e pela Humans Rights Watch, foram electrocut­ados ou sujeitos a sevícias. Em simultâneo, corriam nas redes sociais as fotos das detidas com a palavra “traidora”. Mais uma estratégia desenvolvi­da pelo próprio Governo saudita, segundo contou Manal a 9 de Novembro. O Twitter, disse, tem servido para intimidar e fazer passar notícias falsas sobre opositores ao regime. E contou porque é que são cada vez menos os que ali escrevem. A ela ligaram-lhe do Departamen­to de Segurança Nacional por duas vezes, exigindo-lhe que deixasse de o fazer. A outros (como a Jamal Khashoggi) sucedeu o mesmo. E pelo menos um autor foi detido e outro desaparece­u, segundo lhe descrevera­m fontes anónimas. “O Estado controla o ar que respiramos.” Por se sentir insegura, decidiu apagar a conta no Twitter onde tinha mais de 295 mil seguidores. “Tornou-se evidente para mim que perdemos as redes sociais para a ditadura.”

MANAL APAGOU A CONTA NO TWITTER: “TORNOU-SE EVIDENTE QUE PERDEMOS AS REDES SOCIAIS PARA A DITADURA”

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e2MBS, o ídolo: a 23 de Outubro e a 14 de Novembro, durante conferênci­as em Riade, os sauditas quiseram tirar fotos com o Príncipe (na imagem de baixo, está ao centro)Abdulqudou­s, de 1 ano, no hospital de Hodeida. Tem problemas de desnutriçã­o (que matou pelo menos 84 mil crianças)
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