“Há uma propaganda para além de Ferro”
O professor de Comunicação Política da Universidade do Porto nota que havia críticas internas aos gastos
Esta campanha muda a percepção de Salazar, fechado e provinciano, e que afinal gastava milhões em relações públicas?
Não sei responder, posso fazer esta reflexão: a decisão poderá ter a ver com o conselho do seu amigo Pedro Theotónio Pereira, que lhe dizia que aquela era a forma moderna de comunicar; mas também porque precisava de agradar ao novo mundo, à nova potência que ditava as regras, precisava de entrar na ONU, de um Plano Marshall com financiamento, de que acabou por não ter o que esperava. Tudo isso são equações que entram na decisão de pagar esta verba avultada, mesmo tendo na pequenez que o rodeava um conjunto de vozes que criticavam essa opção.
Mas há uma mudança?
Há, na cedência ao mundo novo, e a um investimento em comunicação que é tudo o que Salazar abominava – basta ler o prefácio dele às entrevistas de António Ferro, em que chega a ser ridículo, pede desculpa por estar a perder tempo com assuntos de propaganda quando podia estar a tratar de assuntos do povo...
Há uma ruptura em relação ao período de António Ferro?
Há, temos Portugal, uma ditadura, a comunicar com as formas modernas do mundo novo, enquanto com Ferro e até Ferro, até 1949, se comunica sempre com uma base intuitiva e artística, como o próprio nome de “política do espírito” o definia. Esta campanha mostra que há uma propaganda para além de Ferro. Isto bate certo também com os rios de dinheiro gastos com a sua paixão madame Garnier, ou com as embaixadas de Londres e de Paris na área da comunicação. Há aqui uma preocupação que não bate certo com o que a História nos tem vindo a dar. preendente no momento histórico da altura. Pelo contrário. A má imprensa de Portugal no fim dos anos 40, nos Estados Unidos, era uma evidência. Mesmo tendo sido formalmente neutral durante a segunda guerra mundial, o país é visto como próximo dos derrotados – o luto nacional pela morte de Adolf Hitler terá ajudado. A Time chama a Salazar “o decano dos ditadores”, a intenção de aderir à ONU falha em 1946 e arrasta-se, a discussão internacional sobre a questão colonial desponta. É neste contexto que surgem críticas internas à comunicação institucional do regime, tutelada ainda por António Ferro. Na correspondência diplomática entre Pedro Theotónio Pereira, embaixador em Washington e dado até como potencial delfim do ditador, é várias vezes manifesta a preocupação pela forma como os media americanos vêem e tratam Portugal. Terá sido ele a sugerir a contratação – uma opção que muitos outros países faziam, porque Nova Iorque, agora sede da ONU, se tornara o palco político onde mais importava ser bem visto. Um dos elementos mais surpreendentes, pela modernidade, do documento Peabody é a lista, com nomes e datas, das deslocações de jornalistas e profissionais variados a Portugal, com a designação de “entidades norte-americanas que visitaram Portugal em
AS AGÊNCIAS QUE TRABALHAVAM COM ESTADOS ESTRANGEIROS TINHAM DE SE REGISTAR NO DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA
O CASAL ARMSTRONG, QUE ESCREVEU SOBRE FÁTIMA, ATÉ PELA IRMÃ LÚCIA FOI RECEBIDO
colaboração com George Peabody and Associates” – hoje é uma prática comum. Salazar já queria mostrar o País. E foram, só em cinco anos, 67 jornalistas (de jornais e revistas), 26 fotógrafos e modelos, 12 escritores, 14 funcionários de rádio e televisão, 7 operadores cinematográficos e 30 “outras personalidades”, em que se incluem empresários, professores universitários, pessoas da área da moda e cientistas – centena e meia de pessoas trazidas a excursionar em Portugal. Veja-se o caso, já referido, de Cartier-Bresson: no relatório, é o 26º nome na lista de fotógrafos e modelos, com esta referência: “Henri Cartier-Bresson, Holiday, Harper’s Bazaar, Agosto de 1955.” Páginas antes, refere-se a publicação, em Fevereiro de 1956, na Harper’s Bazaar, das “fotografias de Portugal”. Uma das fotos da série mostra uma festa de alta sociedade junto a uma piscina, com a legenda: “Residência privada em Cascais.” E o mesmo banco de baloiço da casa de Ricardo Espírito Santo em que a menina Joy se sentou para ser fotografada para as páginas da Glamour, surge agora fotografado de costas: também Bresson foi levado a casa dos Espírito Santo. Um tipo de acesso que sugere um périplo enquadrado pelo regime.
Aliás, esse controlo do regime, através do SNI, sobre as visitas de entidades estrangeiras a Portugal, é ilustrado de forma flagrante pela carta de agradecimento que o casal Armstrong escreveu a Salazar depois da sua deslocação a Fátima – patrocinada pela Peabody, naturalmente. Em carta datada de 25 de Novembro de 1953 (e que se encontra no Arquivo Salazar), April e Martin Arms-
trong, dois escritores católicos que Peabody trouxera a Fátima, escrevem ao ditador: “Não queremos deixar de mencionar que devemos muito à organização Peabody&Assoc. e ao Secretariado Nacional de Informação, pela maneira excelente como prepararam o nosso itinerário, habilitando-nos assim a alcançar o nosso fim, sem dificuldade alguma. Com a óptima e constante colaboração destas organizações, as nossas pesquisas foram deveras aceleradas.” Os Armstrong foram ainda recebidos, na sua peregrinação prédesenhada, pelos bispos de Leiria e Coimbra e até pela Irmã Lúcia, “uma honra que nunca sonhávamos ter”.
A factura e os resultados
Os custos destas deslocações são pagos pelos regime, indirectamente: a Peaboby imputa posteriormente as despesas ao SNI. No contrato assinado a 15 de Setembro de 1955 entre a agência e o SNI (pelo qual assina José Manuel da Costa, Secretário Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo), é incluída a despesa tida com Cartier-Bresson, bem como as de outros, e este é descrito como “fotógrafo de renome mundial, que coligiu material para publicar nas revistas Harper’s Bazaar, Holiday, e outras das principais revistas americanas e francesas”. A parcela que inclui esta e várias outras deslocações, corresponde a 15.686 dólares – o próprio contrato estabelece a taxa de câmbio a 28,95 escudos por cada dólar: foram 454.109 escudos só neste contrato. Aplicado o coeficiente de desvalorização da moeda para o ano 1955 (publicado anualmente pelo Ministério das Finanças), representaria hoje um valor aproximado de 176.812 euros. O secretário nacional do SNI Eduardo Brazão chegou a escrever posteriormente nas suas memórias, editadas em 1976, que os gastos com a Peabody eram mesmo “o principal esbanjamento dos dinheiros públicos que por ali se fazia” (ver caixa na página 39). Os custos poderiam ser altos, mas o regime parecia satisfeito. Além da maior exposição mediática, a grande aposta era na promoção de Portugal como destino turístico. Aqui, a acção começa por avaliar o ponto de partida, contactando 73 agências em três grandes cidades americanas (Nova Iorque, Boston e Baltimore). Sem surpresa, o estudo constatou que havia “pouca ou nenhuma informação sobre Portugal”. Isso iria mudar. A Peabody distribuiu 2.200 brochuras sobre Portugal, mais 50 mil folhetos, de produção própria, pelos agentes de viagens, feiras e exposições de turismo, a que se somaram outros que lhe eram passados pelo SNI ou pela Casa de Portugal em Nova Iorque. Colocou anúncios nas principais revistas de viagens e turismo, distribuiu cartazes, numa colaboração com a TWA, entregou ao longo de vários anos, aos operadores turísticos, os artigos que saíam na imprensa sobre o Turismo em Portugal, e usou a American Express para a distribuição de 100 mil folhetos sobre Portugal.
Outra das preocupações foi o contacto com os autores de guias de viagem (ver caixa), de forma a garantir a entrada de Portugal ou o alargamento do espaço dedicado ao País. Peabody contacta, por exemplo, a Doubleday and Co., uma das maiores editoras de livros de viagens, que envia um autor a Portugal especificamente para o efeito. É de notar que Salazar tinha abertura para cola-
borar nestes esforços: Lawton Mackall, o autor do guia, veio a Portugal em 1952 e “foi recebido por Sua Excelência o Presidente do Conselho”. O resultado, segundo a empresa (não é clara a fonte, mas é crível que tenham sido as próprias autoridades portuguesas a fornecer os números), foi sensível: o número de turistas americanos entrados em Portugal rondava os 6.500 no fim da década de 40, passou a 11.385 no primeiro ano da Peabody (1951) e chegou aos 30.700 em 1955. Foi também a Doubleday a editar, por sua vez, o livro do casal
Armstrong Fátima, A Pilgrimage to Peace (Fátima, uma peregrinação à paz): Fátima era um conteúdo transversal de toda a acção de propaganda da Peabody. Entrava nos guias de viagem, como entrava nos artigos na imprensa, em conteúdos para distribuição especificamente em meios católicos, em livros promovidos pela empresa, e até no filme, produzido pela Warner Brothers, O milagre de Nossa Senhora de Fátima. A Peabody sugeriu a ideia, colaborou no guarda-roupa e na “preparação, montagem e publicidade do filme”, e ainda trouxe a Portugal dois operadores de câmara para filmar o encerramento do Ano Santo em Fátima. Pode sempre admitir-se que George Peabody tenha exagerado, e que tome como efeito da sua acção um interesse que pudesse ter sido genuíno por temas portugueses. Mas também há pontos em que não só não exagera, como fica até aquém da realidade. Uma das suas iniciativas foi contactar Richard Pahlman, um dos decoradores da moda em Nova Iorque. Peabody apenas refere que se colaborou “com o senhor Pahlman e com a revista House and Garden numa exposição baseada em motivos portugueses” a que junta a organização de uma “grande exposição para venda” com artefactos de inspiração portuguesa criados pelo decorador. Mas a investigação de Vasco Ribeiro permitiu concretizar os pormenores. A tal exposição foi um portuguese bazaar, ou bazar português, no Macy’s, um dos grandes armazéns de Nova Iorque. O portuguese bazaar consistiu num andar modelo decorado com tudo o que era português: “Mobiliário, tapeçarias e toda a sorte de artigos de decoração, não faltando os azulejos, as cestas de vime, a cama estilo Queen Anne, os pratos-couve Bordallo Pinheiro e o galo de Barcelos”, escreve Vasco Ribeiro. Saiu na Vogue. Pahlman criou ainda uma linha de pequenos objectos decorativos de porcelana, com motivos tão portugueses como o carro de bois e os pescadores da Nazaré, e que estiveram à venda no Macy’s.
O fim da colaboração
O início, ou a inspiração, tinha afinal sido mais uma das viagens patrocinadas por Peabody, em 1952, e de seis semanas. Pahlman visitou Portugal pelo menos mais duas vezes em colaboração com SNI. “E genuinamente gostou do País, isso é visível em artigos posteriores e até no seu livro mais importante, The Pahlman Book ofInteriorDesign”, em que há referências a Portugal, aponta Vasco Ribeiro. A partir de certo ponto, as coisas funcionam por si e é impossível traçar a fronteira entre o que foi directamente determinado pela campanha ou não. No início da década de 60, já não bastava uma campanha de relações públicas para salvar a face externa do regime. Politicamente, o colonialismo colocava o Estado Novo sob uma luz cada vez menos favorável. A guerra colonial começa em 1961, em Angola, e a queda de Goa avizinha-se. Peabody, curiosamente, parece perceber os novos ventos políticos. Após uma viagem que faz ao estrangeiro escreve a Salazar com um dado estritamente político, contando-lhe que teve a informação diplomática de que a invasão da última possessão portuguesa na Índia está iminente. A imagem do regime deteriora-se. Talvez por isso, e a conselho de Theotónio Pereira, a Peabody acaba dispensada. Seria substituída pela Selvage and Lee, pondo-se fim a 11 anos de colaboração. Mas o regime aprendera a lição: nunca mais deixou de recorrer a agências de relações públicas americanas.
O REGIME ACABOU POR DISPENSAR A AGÊNCIA AMERICANA: MAS CONTACTOU OUTRA DE IMEDIATO