Intolerâncias castelhanas
Quem considera a História uma disciplina com poucas repercussões públicas é porque anda distraído. Ou, pelo mesmo, não tem seguido com atenção a facilidade com que são irritados os observantíssimos defensores das glórias do passado. Ouvimo-los erguer a voz quando surgiu a ideia do Museu dos Descobrimentos, acusando de anacronismo – olhar para o passado com os óculos do presente – os que se opuseram a essa designação, ao mesmo tempo que exaltavam os Portugueses de Quinhentos por terem sido precursores da globalização (um conceito, como sabemos, de grande rigor histórico, amplamente utilizado naquela época…); ouvimo-los dizer que os Portugueses do século XXI não podem ser responsabilizados pelas malfeitorias perpetradas pelos seus antepassados (escravatura, assassinatos, torturas, abusos sexuais, trabalho forçado), e que os naturais das ex-colónias (então podia lá ser!) não têm nada de assumir as dores e os sofrimentos dos seus ancestrais. O que lá vai lá vai, o passado é passado. Mas em se tratando dos feitos heróicos e das descobertas científicas dos bisavós dos nossos bisavós, claro que sim, devemos sentir-nos penetrados de admiração (mesmo que isso implique fazer uma reconstrução selectiva do passado, calando aquilo que não interessa à imagem mítica de um país – Portugal – propenso à brandura e à mistura inter-racial, interclassista e intercultural). Resumindo, excitação patriótica, nacionalismo requentado, escapismo, celebração mistificadora.
Se nesta franja da Península Ibérica os ânimos gerados pela polémica do museu refrearam um pouco, aqui ao lado, na velha terra de Cervantes, parece ter-se reacendido o fogo da intolerância. Uma conflagração que envolveu, nas suas labaredas, o Estado espanhol e uma prestigiadauniversidadeinglesa.Ahistória é boa de contar. Duas jovens e expeditas alunas de doutoramento no Departamento de Estudos Espanhóis, Portugueses e Latino-Americanos do King’s College, Roser López Cruz e Virginia Ghelarducci, organizaram uma conferência intitulada Iberian (In)tolerance: Minorities, Cultural Exchanges, and Social Exclusion in the Middle Ages and Early Modern Era, que se realizou nos dias 8 e 9 de Novembro. No início, contavam com o alto patrocínio do Instituto Cervantes de Londres, dirigido por Ignacio Peyró Jiménez, e da Embaixada de Espanha em Inglaterra. O objectivo do colóquio era partilhar e discutir as investigações mais recentes sobre os conflitos ideológicos e religiosos, questionar alguns dos preconceitos sobre o tratamento das minorias religiosas e perceber as relações de tolerância e intolerância, naquele período, entre judeus, cristãos e muçulmanos. Tudo corria bem, até que, a 29 de Outubro, a historiadora e filóloga Elvira Roca Barea publicou no ElMundo, o jornal bem-pensante da direita espanhola, um libelo contra as duas estudantes. Acusou-as de se entregarem ao prazer da flagelação masoquista e de alienarem aquilo que constitui motivo de soberba paratodososespanhóis:asuagestadescobridora. E de, assim, se colocarem ao serviço da xenofobia e da arrogância cultural dos ingleses. Poucos dias antes, as organizadoras tinham recebido emails do Cervantes e da Secretaria de Assuntos Culturais e Científicos da Embaixada retirando-lhes as verbas que tinham atribuído ao colóquio, com o argumento de que o título e as imagens escolhidos para promover o evento denegriam o bom nome da nação espanhola. Foi assim que o King’s College acabou por desempenhar cabalmente a sua função, dotando o colóquio do apoio que lhe foi retirado pelo Estado espanhol. A decisão produziu estranheza: tanto o título como as imagens eram os mesmos que tinham sido incluídos no processo de candidatura ao subsídio de ambas as instituições. O facto de o socialista Josep Borrell, o ministro dos Assuntos Exteriores de Espanha, de quem alegadamente partiu a decisão, ser próximo, segundo fontes bem informadas, de Elvira Roca (e
dos mais conspícuos leitores da senhora: no Twitter de Julho passado, o ministro considerou o livro Imperiofobia yLeyen da Negra: Roma,Rus ia, Estados UnidosyelImpe rio Español,en saio que teve índices elevados de vendas, “uma leitura muito recomendável”), levantou legítimas suspeitas e levou alguns a encontrar nexos de causalidade entre o boicote e eventuais pressões sub-reptícias do grupo de panglossianos revisionistas, comprometidos com o nacionalismo castelhano de raiz conservadora, que inclui, entre outros, Ivan Vélez, Pe dr oInsúaeaprópr ia Roca Bar e a. Que nos dizem as principais teses desta última, que tanto agradaram ao ministro Borrell? Dizem-nos que durante os 300 anos de dominação espanhola na América “não houve grandes conflitos ou grandes convulsões sociais, nem nada de comparável à revolta dos sipaios no Império britânico” (referência à Revolta Indiana de 1857), e que o espanhol foi um império tolerante, muito menos sangrento que o inglês ou o francês. Ao contrário destes, os espanhóis colonizaram a América pactuando com os índios e favoreceram a mestiçagem (“a coexistência de diferentes raças foi geralmente pacífica e houve prosperidade”, escreve Roca Barea, indiferente a acontecimentos como a Rebelião dos Índios, de 1680, ou às atrocidades cometidas pelos conquistadores, comprovadas por uma enorme variedade de fontes).
O próprio Cortés, de acordo com esta versão castelhana do luso-tropicalismo, distinguiu-se pelos acordos que estabeleceu com as populações submetidas à ditadura cruel e implacável dos astecas. De resto, em comparação com Calvino, a quem apelida de “doente mental”, ou com a revolução protestante de Lutero, “uma grande pilhagem organizada, com uma dimensão tal que só se voltou a ver durante a Revolução Russa”, os conquistadores espanhóis eram uns meninos de coro. Na realidade, a violência e os massacres atribuídos aos espanhóis fizeram sempre parte de uma estratégia de propaganda de Inglaterra e dos Países Baixos (o que é verdade, mas que está longe de ser um argumento novo) para atirar lama sobre a coroa espanhola, que ocupava o centro e o eixo da história mundial, e perpetuar a ideia de que Espanha foi a nação mais intolerante da Europa. Essa “lenda negra”, enraizada nos séculos, “é a maior alucinação colectiva do Ocidente” (Roca Barea) e fez recair sobre o conjunto do povo espanhol todo o ónus da intolerância europeia. Algo que, segundo ela, se mantém na presente conjuntura, pois as universidades europeias continuam mais interessadas em patrocinar estudos sobre os pecados nacionais da História de Espanha do que em promover a investigação sobre a inum tolerância histórica de germânicos, anglo-saxónicos, franceses, escandinavos e portugueses. A culpa disso, nem podia ser de outra maneira, é dos historiadores de esquerda que, enformados por ideologias altamente subversivas, controlam o meio académico ocidental. Nada disto teria grande importância não fosse o facto de o Governo socialista de Pedro Sánchez, com a decisão que tomou, ter contribuído para danificar o prestígio da tão rica e plural historiografia hispânica, deixando-se submeter ao populismo nacionalista de Roca Barea, que assenta, como acontece com tantos populismos, na mais rematada das mentiras: que os outros países europeus não investigam a sua própria intolerância e têm-se limitado a difundir a fábula de que os seus colonialismos, ao contrário do espanhol, não foram violentos. Isto é tanto mais absurdo que, um mês antes, o historiadorLuísTrindadejátinhaorganizado no Birkbeck College (Londres), com o apoio do Instituto Camões, o colóquio Decolonizing History: The politics of memory of the Last European Empire. Ou quando qualquer pessoa, mesmo que pouco dada ao espírito de investigação, pode constatar a vastidão da bibliografia sobre a intolerância dos protestantes. Limito-me a um exemplo, para não cansar os leitores (a historiografia ocidental está tão saturada de exemplos que o difícil é escolher), porque se trata de uma obra surgida de um colóquio realizado no Corpus Christi College (Cambridge), organizado por Ole Peter Grell e Bon Scrivner, e justamente sobre a tradição de intolerância protestante: Tolerance and Intolerance in the European Reformation (1996).
Ao retirar o financiamento a uma conferência universitária constituída apenas por académicos, considerando dignos de crédito os desvios, as omissões e as falsificações dos nacionalistas broncos, o governo socialista de Pedro Sánchez veio confirmar precisamente aquilo que pretendia negar: a intolerância castelhana. E, o que é muito bem feito, atirou com mais gasolina para cima do nacionalismo catalão, que veio lembrar, a propósito deste caso, que o Estado espanhol, ao contrário de Inglaterra em relação à Escócia, não só impediu a realização de um referendo na Catalunha, como autorizou cargas policiais e fez presos políticos.TaléasupremaironiadaHistória!W