A rebelião das massas
AFrança revoltada, rebarbativa, que diz passar “da indignação à cólera, e da cólera à raiva”, não é nova.
Em 1385, num mês quente do início do Verão, começou um cortejo de revoltas campesinas no Vale d’Oise. Ficou conhecido como Jacquerie: não tinha comandantes ilustres, e erguia-se contra as taxas discricionárias, a opressão feudal, a pobreza extrema e a rapina do sangue azul, a entrega das províncias a mercenários impiedosos, e o alegado abandono do “bom Rei João” pela sua corte, numa triste batalha da Guerra dos Cem Anos. As violências do baixo povo ficaram lendárias, e a repressão foi brutal.
De 1792 a 1800, na Bretanha, em Maine, Anjou e na Normandia, reagiram contra a França “revolucionária e centralista” os Chouans, insurrectos e guerrilheiros que se opunham à colocação de padres laicos, aos impostos de guerra, ao recrutamento obrigatório, à pilhagem de igrejas e à requisição de bens pelo Estado. O movimento coexistiu com o da Vendeia (de 1793 a 1796), onde uma região inteira pegou em armas contra Paris, e naufragou no sangue e nas lágrimas. Esta guerra civil algo ignorada deu-se numa república que pretendia mudar o mundo, a história da humanidade e o calendário dos tempos. Na Occitânia (Sudeste), com o fecho das minas de Decazeville, e na Bretanha (Noroeste), o século XX viu o retorno de nacionalismos regionalistas, onde direitas e esquerdas extremas se reuniram no combate aos males escondidos do progresso.
O mesmo para a UDCA de Pierre Poujade, entre 1953 e 1958: come-
çou com 20 lojistas a impedirem a consulta contabilística de uma mercearia no Lot, e cresceu para um “partido antipartido” populista, com mais de 400 mil filiados, ganhador de 52 deputados em 1956, sentados num parlamento a que antes chamavam bordel. Advogavam os interesses do pequeno comércio contra os hipermercados, dos pequenos agricultores contra os monopólios, das pequenas classes médias arruinadas contra a opressão fiscal. Pelo meio tinham fascistas, antigos resistentes, católicos e anarquistas, e futuros apoiantes de Lecanuet, Mitterrand e Chirac. Nos últimos 20 anos, a oposição à política agrícola comum e das pescas, aos subsídios selectivos, às obras públicas monumentais, às agressões ambientais, à relocalização de imigrantes, aos excessos e às ausências das polícias, causaram sempre convulsões e levantamentos vários. Como em todas as outras contestações, a dos coletes amarelos é sobretudo contra o poder. Não tem chefe, ou possui demasiados líderes. Começa na revolta contra o aumento “brutal” dos combustíveis para a denúncia de tudo: sistema de governo, forma de eleição, estatuto dos deputados, política financeira e fiscal, critérios de desenvolvimento, relação cidade-campo, fábrica-serviços, escola-sociedade, administração-cidadania.
O mal-estar agravou-se com a impressão generalizada de um Executivo opaco, autista, mal coordenado e sem objectivos nacionais. Quando o
Canard Enchainê veio revelar que menos de 1% dos novos impostos vai verdadeiramente para fins ecológicos, deu-se mais uma explosão. Todas as grandes cidades são invadidas por gente desgostada com a vida. Uns dizem-se os novos sans-culottes e sonham com outra tomada da Bastilha, alguns serão nostálgicos do Império e da Argélia francesa, mais ainda querem “a soberania das pessoas comuns”, e muitos a “democracia directa”, em que o poder do povo de carne e osso não se esgota nas eleições legislativas e presidenciais, mas necessita de referendos centrais, regionais e locais, e mecanismos de destituição de governantes incumpridores.
E há, ao lado de donas de casa e reformados, os bandos de destruidores, o proletariado da canalha, os agitadores profissionais e os piratas e corsários, nazis ou maoistas, que saem dos esgotos a cada tremor de terra. Mas convém não tomar a árvore pela floresta. Esta é complexa e persistente.