George H. W. Bush (1924-2018)
Uma necrologia pessoalíssima do ex-Presidente George Bush, homem fisicamente durável, mas que, em política, foi sobretudo uma personagem de transição. De todas as transições
Tenho primeiro de enviar sentidas condolências a Jeb Bush, de quem fiquei amigo, e que provavelmente teria sido um chefe de estado sem ondas. O seu pai, George Herbert Walker (1924-2018), encerra um paradoxo. Foi o Presidente americano que viveu mais tempo. Mas também aquele que, politicamente, representou mais a transição, a provisoriedade e a incerteza. Aviador militar voluntário aos 18 anos, no período do choque e espanto seguido a Pearl Harbor, colocou o serviço da pátria, e o risco real de morrer em combate no Pacífico, acima do seu futuro profissional, da sua educação universitária e do seu bem-estar.
Vindo de uma família da aristocracia financeira e política, quando os banqueiros ainda eram vistos como escol e não escória, aquele jovem fez a primeira grande decisão da sua vida, num tempo de grande mudança geoestratégica.
Viveu ainda um momento de transição sísmica quando, sob o também provisório Gerald Ford, enfureceu Henry Kissinger ao tomar liberdades diplomáticas para com a China de Mao, como “representante especial” entre 1974 e 1975. Na altura, apesar de piscar já o olho ao comunizado Império do Meio, Washington ainda reconhecia a Formosa. Transição, ainda, como director da agência de informações de Langley, e ainda por iniciativa de Ford, entre 1976 e 1977, quando os EUA saíam do triplo choque do caso Watergate, da demissão humilhante de Nixon e do colapso no Vietname. Bush liderava, de repente, um serviço secreto controverso, numa altura em que, parafraseando Christopher Andrew, para a URSS e para o KGB “o mundo parecia caminhar no seu sentido”. Transição com a força da natureza Ronald Reagan, o primeiro a usar o
slogan “Vamos tornar a América outra vez Grande”. Bush fora candidato contra o antigo actor, e perdera fragorosamente. Criticara as teorias económicas reaganistas, e chamaralhes “uma espécie de vudu”. Mas sobretudo o choque entre os dois homens foi uma antecipação da luta perdida por Jeb face a Donald Trump: a América bipartidária tradicional, conduzida pelas elites do costume, segundo as regras do costume, com os cálculos e as vénias do costume, era esmagada por um continente de homens da rua revoltados, representados por uma figura de fora, um intruso.
Transição como vice-presidente de Reagan, depois do ramo de oliveira que este lhe ofereceu, para serenar a máquina do Partido Republicano, e para selar a osmose entre “elitistas” e “populistas”. Vice-presidente oito anos, onde viveu outra transição: a de uma América abúlica, meramente reactiva e às vezes conivente com o expansionismo soviético, para um estado impaciente, recuperador e sem cessar o contra-ataque. Transição, sempre, como Presi- dente. A sua escolha do indescritível Dan Quayle, tentativa algo desastrada de apaziguar os “conservadores”, só não foi fatal porque do outro lado existia um zombie político, o triste Michael Dukakis. E a presidência assistiu à última grande mudança do século XX: a dissolução da URSS, provocada pelo Reaganismo, pelo esgotamento, pelas indecisões de Gorbachev e pela necessidade de reconstruir as forças dominantes em Moscovo, e de não ignorar mais a grande revolta popular que levara a 1917.
Bush acabou por ser o último Presidente da Terceira Guerra planetária, vulgo Guerra Fria (que envolvera guerras “quentes” na Coreia, no Vietname e no conflito israelo-árabe). O que se seguiria, ninguém verdadeiramente podia saber. Nem ele nem o seu braço-direito da segurança, Brent Scowcroft, com o qual escreveu um livro importante sobre a Nova Ordem Mundial. Inicialmente, Bush decretou a novíssima era como um império de cooperação entre grande Estados racionais e razoáveis, que deveriam extirpar a fome, o subdesenvolvimento, as tiranias e a “escuridão”. Logo aí alguns viram um plano “maçónico” para a liderança do todo, sinarquia que antecipava a “globalização”. Outros perceberam que, nesse plano, a incerteza era maior do que a possibilidade de previsão. E a primeira guerra pós-soviética acabou por ser não em torno de uma ideologia específica, mas pelo petróleo, pela disciplina dos ditadores agressivos, e, como alguém disse, “pela Carta da ONU”. A libertação do Kuweit sem a destruição imediata de Saddam (apesar dos desejos técnicos de Schwarzkopf) mostrava que a república imperial americana entrava num campo de decisões difíceis, ou impossíveis, onde só por momentos a diplomacia parecia fazer todos os milagres.
AVIADOR VOLUNTÁRIO AOS 18, COLOCOU O SERVIÇO À PÁTRIA ACIMA DO SEU FUTURO PROFISSIONAL
Durante a sua presidência, Bush teve como embaixador em Lisboa um americano nascido em Cuba, Everett Briggs. Tornámo-nos próximos depressa, e partilhámos muitas experiências. Briggs trouxe de Washington o governador da Pensilvânia e depois procurador-geral de Bush (e anfitrião de um talk show) Dick Thornburgh, para apresentar o meu livro sobre a Constituição de 1787. Tivemos oportunidade, a três, para falar amiúde sobre Bush, os Bush e os “bushismos”. Washington olhava com curiosidade para o fenómeno do “cavaquismo” (“doutrina do desenvolvimento inevitável, mas com toques de populismo”, escreviam), colocara em Lisboa um talentoso, activo, independente e jovem intelectual como responsável de facto pela “Agência”, e preocupava-se com os rumos de Angola, a (im)possível reconciliação Savimbi-JES, e ainda o papel de Portugal nas relações entre Luanda, Moscovo e Pretória. Muito se há-de um dia contar sobre o assunto. No fim, Bush sucumbiu aos falhanços fiscais e financeiros. Os seus serviços à nação, a sua experiência em política internacional, a sua imagem externa, a sua linhagem e a sua veterania não o salvariam: “It’s the economy, stupid.”
NB – Há um apêndice que parte o coração, em tudo isto: o casal Bush perdera uma criança com 3 anos. Um caricaturista de talento desenhou, na altura da morte da senhora Bush, a sua entrada no céu, com uma menina a gritar boas-vindas, comovida: “Mãe!”
Com a morte do patriarca George, o mesmo desenhador publicou outro cartoon: o velho aviador do Pacífico chega às nuvens no seu Grumman Avenger, e reencontra as queridas mulher e filha. “Estávamos à tua espera”, dizem estas.