SÁBADO

MARIA DE LOURDES FOI A PRIMEIRA AVIADORA PORTUGUESA. SOB A ALÇADA DE CRAVEIRO LOPES, TIROU O BREVETHÁ 90 ANOS

Nos anos 20 pôs o País em alvoroço quando tirou o brevet. Maria de Lourdes queria sobrevoar me io mundo: mas o marido trocou-lhe os planos.

- Por Maria Espírito Santo

“FOI A PRIMEIRA MULHER A VOAR NA PENÍNSULA IBÉRICA”, LEMBRA A NETA MARIA JOÃO

Eram 8h15 da manhã quando descolou da pista na aeronave, um Caudron G. III. Foi durante cerca de duas horas que se manteve entre os 2.000 e os 2.400 metros de altitude até descer aos 1.500, “dirigindo-se para a pista num emocionant­e voo planado”. Aterrou, finalmente, “com muita correcção e elegância”. O relato é do jornal O Século, que descreve ao pormenor o dia de provas finais da primeira aviadora portuguesa. Foi há 90 anos que Maria de Lourdes Sá Teixeira rasgou os céus e as convenções de género: a 6 de Dezembro de 1928 tirou o brevet de aviador civil. Os colegas oficiais da escola receberam-na na pista com “um lindo ramo de flores”. Também a esperava a mãe, ansiosa, e os jornalista­s prontos para disparar perguntas. De cabelo despentead­o, a aviadora de 20 anos sorria para as fotos: naquele ano, dos quatro brevets passados pela Escola Militar de Aviação em Sintra, apenas um foi passado a uma mulher. “Foi a pessoa que mais me marcou na vida”, garante à SÁBADO Maria João Bordallo, de 67 anos, a primeira de oito netos da aviadora. “Era uma avó carinhosa. E uma mulher culta e interessad­a em tudo”, diz, para logo fazer uma rectificaç­ão: “E não foi a primeira aviadora portuguesa – foi a primeira mulher a voar na Península Ibérica.” O início do século XX, em Portugal, não era propriamen­te o tempo e o lugar para mulheres audazes. Não é surpreende­nte, por isso, lembrar que o pai, tenente-coronel médico, se opôs à vontade da filha. O que é inesperado é o que aconteceu a seguir: é que Maria de Lourdes ficou tão triste que até adoeceu – emagreceu, deprimiu – e o pai, preocupado

com a saúde dela, condescend­eu. Daí em diante, Afonso Henriques Botelho Sá Teixeira tomou como missão ajudar a filha a voar. Terá sido o pai, que se movia facilmente no meio militar, que ajudou Maria de Lourdes a ingressar na Escola Militar de Aviação de Sintra. O que mais custava à nova aluna – que teve como instrutor o militar Francisco Craveiro Lopes, que viria a ser Presidente da República entre 1951 e 1958 – era despertar cedo “e depois as longas horas, passadas na pista, sem saber se o tempo permitiria voar”, confessava ao Diário de Lisboa em 1928.

Nos jornais e revistas escrevia-se sobre a beleza e perícia da aviadora desde os seus tempos de aprendiz. “Alguém havia de ser a primeira. E, atrás de mim, quantas virão”, exclamava à revista feminina Eva em Novembro de 1927. Uma vez que conseguiu o brevet, o assunto passou a ser outro: comprar-lhe um avião. O Conselho Nacional das Mulheres Portuguesa­s promoveu uma angariação de fundos para a compra de um Havilland (avião britânico) e os donativos foram chegando, do Alentejo e dos Estados Unidos, contam jornais da época. Mas a campanha não reuniu a quantia necessária.

Casamento acabou com voos

A aviadora acabou por não concretiza­r o seu sonho: fazer Portugal-Brasil em avião, seguindo os passos de Ferrarin e del Prete, aviadores que ligaram Itália ao Brasil num voo só. Mas outras façanhas inspiravam a aviadora: como a de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que em 1922 fizeram a travessia aérea do Atlântico Sul. Foi, aliás, a viagem que a inspirou a voar. “Era muito criança,

O CONSELHO NACIONAL DAS MULHERES PORTUGUESA­S QUIS COMPRAR UM AVIÃO A MARIA DE LOURDES

ainda, mas lia, com paixão, todos os relatos do feito magnífico”, contou em 1929 ao Actualidad­es.

Os grandes projectos de voo – como visitar todas as capitais europeias – foram esquecidos quando conheceu Adalberto Marques, com quem viria a casar. “Para mim, ele cortou-lhe as asas”, diz a neta Maria João. Lembra que o avô era “terrivelme­nte ciumento” – e não gostaria de ver a mulher a movimentar-se tão agilmente num mundo de homens. Maria de Lourdes casou-se e foi mãe pela primeira vez em 1931. Em 1934 já tinha três filhos e em 1935 mudava-se para o Brasil. Foram viver para Belém do Pará com os sogros – Adalberto foi ajudar a gerir os negócios do pai, que era banqueiro. A estadia no Brasil foi longa. Maria de Lourdes regressari­a a Portugal em 1950, porque a mãe estava a morrer, e acabou por ficar para o casamento da filha mais velha. Voltou sem Adalberto e prolongou indefinida­mente a visita.

“Era uma figura mítica”

Não falava sobre o marido ou o fim da relação, nem regressava às lembranças dos altos voos, conta Maria João Bordallo. “Não se vangloriav­a e sempre recusou todas as homenagens que lhe quiseram fazer”. De regresso a Portugal, vivia uma nova fase da vida dedicada a filhos, sobrinhos e netos. “Creio que era uma mulher de paixões. Teve três grandes: a aviação, o meu avô e depois a família.” A dedicação traduz-se em fotografia­s antigas, recortes de jornal e recordaçõe­s que os familiares guardam. É o caso de Ricardo Sá Fernandes, sobrinho-neto. O advogado guarda memórias queridas da tia-avó que lhe era chegada. “Ela era para nós uma figura mítica, por ter sido a primeira aviadora.” Lembra-a como uma feminista, uma mulher moderna. “Em miúdo deixei crescer o cabelo: a minha mãe e avó não gostaram e ela é que dizia ‘deixem-no lá, fica-lhe bem’.” E não era a única mulher diferente na família. Afinal, a irmã Madalena tinha concorrido ao primeiro concurso de Miss Portugal. “Foi uma coisa muito polémica porque ficou em segundo lugar, o meu bisavô não aceitou e impug- naram o concurso…” As tias-avós Madalena e Maria de Lourdes e a avó Maria Cristina foram presença constante na sua vida, lembra Ricardo Sá Fernandes: “Costumava dizer que tinha o privilégio de ter três avós.” Era a sua avó que puxava sempre dos galões da irmã aviadora – conta que Maria de Lourdes era discreta em relação aos feitos passados. “Considerav­a que era uma coisa que, por educação, não devia exibir.” Praticante de esgrima, também jogava ténis e era uma leitora ávida – das notícias do País e do mundo. Manteve as leituras diárias até aos últimos dias, lembra o sobrinho-neto Ricardo Sá Fernandes: Maria de Lourdes morreria a 19 de Julho de 1984, vítima de cancro. Recordar as suas aventuras é uma maneira de a manter por perto, diz Maria João Bordallo, que recordou a avó no livro Sete Mulheres, Sete Histórias. Foi com a avó que viveu até aos 7 anos, conta. Sempre foi uma figura muito presente, era com ela que tirava dúvidas para os testes e também era a sua condutora de serviço. “Dava-me boleia para todo o lado, era ela que guiava. Lembro-me que usava muito calças – quando ninguém usava.” Guarda memória clara de uma das vezes em que a avó foi assistir a uma aula de ténis, era ainda miúda. A neta estava convencida de que seria elogiada mas o comentário, no final, foi outro: “Disse-me só: ‘Tens de jogar melhor.’”

“CREIO QUE ERA UMA MULHER DE PAIXÕES. TEVE TRÊS GRANDES: A AVIAÇÃO, O MEU AVÔ E A FAMÍLIA”

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Lamento Apesar de nunca o ter dito, sentia que a tiaavó se arrependia de ter abandonado os aviões. Era uma das tias-avós mais queridas, conta Ricardo Sá Fernandes
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Maria de Lourdes Sá Teixeira posa junto do avião, em 1927, era ainda uma aprendiz de aviadora. Apesar do estilo irreverent­e, era elogiada pela elegância
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Ao centro, a aviadora, de chapéu branco. À esq., o pai, Afonso Botelho de Sá Teixeira 1
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2Maria de Lourdes (à direita) com a sobrinha, mãe de Ricardo Sá Fernandes

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