Antigo craque do Benfica faz 75 anos e recorda momentos marcantes
O antigo futebolista do Benfica, que completa 75 anos a 14 de Dezembro, fala de tudo: as pedradas do irmão na infância, a passagem pelo Sporting, a alcunha de Rato Mickey, as namoradas de Eusébio ou a morte do filho recém-nascido.
F “A jogar à bola com o meu irmão, as coisasàsvezes corriam mal. Ainda tenho uma marca de uma pedrada na cabeça”
Foi treinar ao Belenenses e ao Sporting, mas acabou no Benfica, que aceitou pagar ao Almada “uma fortuna” por um miúdo de 15 anos. Campeão europeu pelas águias em 1962 (ainda hoje é o mais jovem de sempre), teve “a felicidade de fazer parte da geração de ouro do Benfica”, com figuras como Eusébio, Coluna, Torres ou José Águas. À SÁBADO, ele lembra as suas histórias. Em miúdo já queria ser jogador de futebol? Adorava jogar à bola. Jogávamos na rua, descalços, para poupar os sapatos. Eu e o meu irmão gémeo [Aníbal] tínhamos de estar em equipas diferentes, senão o campo ficava inclinado. E como queríamos os dois ganhar, isso nem sempre acabou bem. Chegaram a andar à pancada?
Sim. Ainda tenho uma marca na cabeça porque ele me atirou uma pedrada numa vez em que nos pegámos por causa da bola. Como foi a sua infância?
Nasci em Corroios, fiz a primária na Amora e depois fui estudar para Almada,
para a escola industrial e comercial, quando o meu pai morreu e eu me mudei para lá, com 12 anos. O que é que os seus pais faziam?
O meu pai foi emigrante nos EUA. Esteve lá 14 anos, viveu no estado de Nova Iorque e na Califórnia, trabalhou nos caminhos-de-ferro. Fez algum dinheiro e quando regressou tornou-se um grande comerciante na Cruz de Pau. Até tem lá uma rua em nome dele, a Rua Manuel Simões. E a sua mãe?
Era doméstica. Tinha seis filhos, duas raparigas e quatro rapazes, era muita gente para cuidar. Os meus pais tinham uma casa de pasto na qual os camionistas paravam para almoçar. A minha mãe cozinhava e o meu pai tomava conta da taberna. E ainda tínhamos um quintal onde havia a adega e fazia-se vinho. Cheguei a andar a pisar uvas dentro do lagar. Como eram as vossas brincadeiras?
No Verão, íamos à praia da Fonte da Telha. O meu pai tinha um burro e púnhamos os sacos, as bolas, tudo em cima do burro e íamos a pé. Como surgiu o interesse pelo futebol? Teve influência de alguém?
O como meu Genito, irmão Eugénio, jogou no conhecido Amora. O treinador Violinos do era Sporting. o Albano, Eu um às dos vezes Cinco andava por ali a jogar, com 9 ou 10 anos, ele percebeu que eu tinha jeito e começou a falar de mim. E foi jogar para o Almada.
Sim, com 13 anos. O professor Rodrigues Dias, que tinha sido campeão no Sporting, foi a primeira pessoa entendida no assunto, até na área de nutrição, a ver em mim potencial para ser profissional. Foi ter com a minha mãe, ensinou-lhe o que é que eu devia comer, e começou a ter uma atenção redobrada comigo: foi aí a primeira vez que tive umas botas. Depois foi para o Sporting.
Primeiro apareceu o Belenenses, mas quando o Almada pediu 50 contos pela minha transferência, eles recusaram. Fui para o Sporting, que queria que eu ficasse lá só a treinar, porque se eu estivesse um ano sem jogar ficava livre. Fiquei lá oito meses, e entretanto apareceu o Benfica, que pagou 40 contos ao Almada, uma fortuna por um miúdo de 15 anos. E começou logo nos juniores.
Fiquei lá pouco mais de uma época. Na final do campeonato de Lisboa, com o Belenenses, ganhámos 3-1 e marquei os três golos. O treinador Béla Guttmann virou-se para o Caiado (seu assistente): “Este menino na terça-feira treina com os seniores.” Tinha 17 anos e de repente estava no Lar do Benfica com o Costa Pereira, o Germano, o José Águas, o Coluna… Já pensou como poderia ter sido a sua carreira se tivesse ido para o Sporting? Talvez tivesse menos títulos, mas teria tido uma boa carreira, porque o talento era o mesmo. No Sporting, ainda vi jogar o Vasques e o Travassos, dois dos Cinco Violinos. Ou seja, era uma geração a terminar. Se não tivesse tido a oportunidade de ir para o Benfica com todos aqueles grandes jogadores, possivelmente não teria sido campeão europeu e não teria conseguido 10 títulos de campeão nacional e cinco Taças de Portugal. Como foram os seus primeiros tempos no Benfica?
No início ia e vinha para os treinos de barco e de eléctrico. Depois fui 91
“OAlbano, um dos Cinco Violinos, treinava o Amora e reparou em mim. Fuipara oAlmadaedaí a pouco para o Benfica”
“Tenho pena que o Benfica não tenha sido tricampeão europeu. Mas fomos mais infelizes que incompetentes”
para o Lar do Jogador, em Benfica, era o único júnior lá. No final de 1960, chegou o Eusébio, eu recebo-o e nasceu aí uma relação. Éramos os mais miúdos, íamos ao cinema juntos, havia grande cumplicidade. Por exemplo: o Eusébio tinha uma namorada espanhola, e quando era para falar com ela ao telefone, ele não sabia falar espanhol e era eu que falava por ele.
Lembra-se do seu primeiro ordenado no Benfica?
Mil escudos por mês como júnior. Depois, quando passei a sénior passaram a dar-me 2.500 escudos por mês e 50 contos por ano de luvas. Isso era tão pouco que quando fiz o segundo contrato, com 21 anos, passei a ganhar 250 contos de luvas.
Teve propostas para sair do Benfica para clubes estrangeiros?
Várias. Uma delas foi para um dos clubes mais míticos, o Boca Juniors.
Como surgiu essa hipótese?
Fizemos dois jogos particulares com o Boca Juniors, nos EUA, e as coisas não correram bem a quem teve de me marcar. Na segunda partida, em Los Angeles, jogaram três laterais direitos e ninguém se entendeu comigo. Ofereceram ao Benfica 7.500 contos pelo meu passe e a mim 100 mil dólares por ano. Em 1967, aquilo era uma fortuna. Mas como os direitos dos jogadores eram não ter direitos, não me deixaram sair e nasceu aí um conflito.
Essa sua luta iria levar à criação do Sindicato dos Jogadores.
O caso culminou em 1972, com a criação do sindicato, numa altura em que os únicos sindicatos eram os dos metalúrgicos e dos vidreiros. Tive a ajuda do dr. Jorge Sampaio, advogado, e de jogadores como Hilário, Zé Carlos, Pedro Gomes (Sporting), Toni e Eusébio (Benfica). Foi criada a lei de opção. Isto é, se houvesse um clube interessado num jogador, o clube dele era obrigado a pagar 70% do que lhe ofereciam para que ele se mantivesse ali. Nós fizemos uma pequena revolução, depois a Lei Bosman veio completar o resto.
Em 1962, foram campeões europeus. Na final, contra o Real Madrid, ao intervalo estavam a perder 3-2. Qual foi o ponto de viragem?
O Béla Guttmann, que dominava aquilo a que hoje chamamos os mind
games, chegou ao balneário e disse-nos: “Nós vamos ganhar este jogo. O Real Madrid é velho, fisicamente terminou. Nós temos jovens, temos força, somos melhores.” Não falou de tácticas, mas deu ali uma injecção de confiança brutal. E ganhámos 5-3.
Em 1963, perdeu a final da Taça dos Campeões com o Milan.
Foi muito mal perdida. O Coluna magoou-se e jogámos grande parte do tempo com ele lesionado. E fomos anjinhos: sofremos dois golos de contra-ataque quando estávamos a ganhar 1-0. Tenho pena que o Benfica não tenha sido tricampeão europeu. Fomos mais infelizes que incompetentes, mas foram três finais perdidas contra grandes equipas, primeiro o Milan, depois o Inter de Milão e o Manchester United.
Qual a maior alegria e o maior desgosto que teve no futebol?
A maior alegria foram os 16 anos que joguei no Benfica, os 611 jogos que contabilizei. Todos foram momentos felizes, à excepção de um, o pior da minha vida. Na véspera de jogar em Tomar, nasceu o meu filho, e 24 horas depois o presidente Borges Coutinho ligame da clínica, onde estava com a minha mulher, a dar-me a notícia da morte do meu filho. Falo com a minha mulher e ela diz-me: “Já não há nada a fazer. Como estás aí, acho que deves jogar.” O Eusébio e o Torres estavam lesionados e então senti um empurrão interior a dizer-me: “Tens de jogar.” Já tinha três raparigas, havia tanto o desejo de ter um rapaz e acontece aquilo. No meio de toda aquela dor, ganhámos 1-0 com um golo meu no primeiro minuto. O futebol tanto tem a magia e a alegria como a desgraça, e é preciso ser-se forte para entender as duas coisas.
Porque é que saiu do Benfica?
A certa altura, quando faço um passe correcto e há silêncio no estádio, e depois faço um passe mal feito e há protesto, pensei: “Está na hora de ir embora.” Estávamos em 1975 e tinha mais dois anos de contrato, mas fui ter com Borges Coutinho a dizer-lhe que queria sair. Ele tentou demover-me, até porque o meu contrato contemplava uma festa de despedida no valor de 650 contos, era hábito na altura, mas abdiquei disso.
Porque é que foi para os EUA? Foi pelo dinheiro?
Acho que tinha algo a ver com o meu pai, de ele ter sido lá emigrante. Por outro lado, tinha visitado a América algumas vezes com o Benfica, e aliciavame para lá do aspecto desportivo. Tinha três filhas e estava a pensar que elas podiam ir para uma escola lá.
Contactou alguém nos EUA?
Um amigo meu, António Frias, um empresário açoriano, leu no jornal que eu
ia fazer o último jogo a 11 de Maio e ligou-me para casa, surpreendido. E perguntou porque é que eu não ia para os EUA. Eu tinha outros clubes interessados, como o Saint-Étienne ou o Anderlecht, mas o António conhecia bem um dos donos do Boston Minutemen, falou-lhe de mim e eles interessaram-se. E acabaram por convencer também o Eusébio. O meu contrato era de 1.500 dólares por jogo, o Eusébio recebia 2.000. E ganhei mais em três meses do que em três anos no Benfica. Mas não fui apenas pelo dinheiro, fui com um projecto de vida.
Além de Boston, onde é que jogou?
No San Jose Earthquakes, na Califórnia, um sítio onde o meu pai tinha vivido. Também estive em Dallas, onde acabei a carreira, em 1979.
E depois?
Surgiram propostas para eu trabalhar como treinador-assistente, sobretudo através de um português que teve uma carreira brilhante no futebol dos EUA, Francisco Marcos, que foi para lá estudar com 15 anos e jogou nas universidades. Ele apresentou-me ao Al Miller, que foi seleccionador dos EUA – fui assistente dele quatro anos. Depois fui treinador principal e manager. Estive em Detroit, Chicago, Kansas City, Phoenix, Las Vegas e Austin.
Quando é que voltou em definitivo a Portugal?
Só na década de 90, e não muito interessado em ficar no futebol. Mas, entretanto, conheci o Carlos Queiroz, através do Toni, nasceu aí uma relação e ele levou-me para a Federação, em 1994. Ele depois foi para o Sporting e eu continuei na FPF, a trabalhar com o Nelo Vingada, fomos aos Jogos Olímpicos de Atlanta 96.
Sim, estive três anos na selecção portuguesa, fomos ao Mundial de 2010, e depois mais três anos no Irão. Até que com a morte do Eusébio [5 de Janeiro de 2014] decidi: “Não vou trabalhar mais.” E passei a dedicar-me à minha família e aos meus amigos.
Quem foi o melhor presidente do Benfica? Luís Filipe Vieira?
O actual tem obra, fez um trabalho extraordinário e revejo-me em muita coisa feita no seu mandato. Mas Borges Coutinho foi quem mais me marcou.
Houve uma polémica com a sua proibição de ir à Benfica TV, falou-se em censura. Ficou magoado?
Fiquei. Foi injusta a forma como fui tratado. Mas atenção que eu não critiquei nenhum jogador, treinador ou presidente. Apenas disse que não me revia em certas pessoas que era suposto representarem o Benfica [como Pedro Guerra]. Sou um homem livre e tenho direito à minha opinião. As pessoas não podem faltar-me ao respeito só porque não estão de acordo comigo. Não sei se com isto perdi ou ganhei gente para ir ao meu funeral. Mas estou-me completamente a marimbar para isso.
“Não podem faltar-me ao respeito. Não sei se com isto perdi gente para ir ao meu funeral, mas estou-me a marimbar” Mais tarde voltou a trabalhar com Carlos Queiroz.