As conversas de bastidores na operação Monte Branco
Uma investigação do Ministério Público guarda há sete anos um gigantesco arquivo de informações confidenciais. O pretexto era um esquema de fuga ao fisco, mas um procurador, um investigador tributário e o juiz Carlos Alexandre acabaram por cruzar dados de
Referidos apenas como os telefones fixos e móveis dos alvos 49232M, 2H952M e 2M464, isso não permite perceber a identidade dos visados, mas os longos relatórios assinados pelo inspector tributário Paulo Silva esclarecem quase de imediato que se trata das comunicações dos então banqueiros do BES Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi e ainda do luso-angolano Fernando Teles, o homem-forte do Banco Internacional de Crédito (desde 2017, Eurobic) que em 2012 comprou ao Estado português o Banco Português de Negócios (BPN).
Teles esteve sob intercepção telefónica contínua entre 7 de Fevereiro de 2012 e 29 de Maio desse ano, um total de 114 dias. Já Salgado foi escutado durante 107 dias não seguidos, entre 31 de Outubro de 2011 e 29 de Maio de 2012. Finalmente, Ricciardi foi gravado ao telefone durante, pelo menos 335 dias, escutas que não foram contínuas e que se verificaram num período mais lato, entre 27 de Dezembro de 2011 e 25 de Março de 2013, sobretudo devido ao caso das últimas privatizações da EDP e da REN, Redes Energéticas Nacionais. Ainda antes de chegarem às provas que indiciaram Ricardo Salgado e José Sócrates noutro processo, a hoje célebre Operação Marquês, que incluiu a partir de 2013 a realização de dezenas de escutas telefónicas em simultâneo de inúmeros suspeitos, a equipa formada pelo procurador do Ministério Público (MP) Rosário Teixeira e pelo inspector Paulo Silva usou um inquérito-crime inicialmente centrado em suspeitas de fraude fiscal e branqueamento de capitais – o caso Monte Branco – para recolher muita informação confidencial que acabou cruzada e partilhada com outras investigações.
Isso aconteceu por três motivos: no caso Monte Branco foram feitas dezenas de buscas que levaram à apreensão de milhares de documentos digitais e em papel, inclusive a alguns dos principais bancos portugueses; verificaram-se pedidos de colaboração de outros processos entretanto
abertos em Portugal e no estrangeiro (como o caso brasileiro da Lava Jato); e as escutas telefónicas gravadas e autorizadas pelo juiz de instrução Carlos Alexandre foram bem além do objectivo inicial de deslindar os esquemas de fuga ao fisco, alegadamente montados pelo já falecido Francisco Canas (conhecido como Zé das Medalhas) e por gestores de fortunas como Michel Canals, Nicolas Figueiredo, José Pinto e Ricardo Arcos.
Cerca de sete anos depois, e contando já com dezenas de arguidos constituídos num processo que deixou de estar em segredo de justiça para os visados, o caso Monte Branco é uma autêntica bomba-relógio porque nos 11 volumes iniciais da investigação – um total de 4.631 páginas – ficaram registados centenas de resumos de conversas telefónicas ouvidos pela equipa da Direcção de Finanças de Braga da Autoridade Tributária e
OS RESUMOS DAS POLÉMICAS ESCUTAS ESTÃO NOS PRIMEIROS 11 VOLUMES DO CASO MONTE BRANCO
Aduaneira (AT) que trabalhava em colaboração com o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).
E qual foi o resultado prático destas longas horas de gravações aos três banqueiros? Ainda hoje não se sabe exactamente. Apenas que os dois homens do grupo do BES foram constituídos arguidos (Salgado por causa dos milhões que escondeu na Suíça e Ricciardi devido às privatizações) e que os investigadores anotaram no processo dezenas de conversas dos banqueiros com e sobre políticos como os então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, o ministro dos Assuntos Parlamentares Miguel Relvas, o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros Paulo Portas. Ou com empresários como Américo Amorim, José Guilherme, Joaquim Oliveira e Ângelo Correia. Ou ainda o gestor António Mexia e Eduardo Catroga, e os comentadores Marcelo Rebelo de Sousa (TVI) e Miguel Sousa Tavares (SIC). E muitos, muitos outros. Nuns casos, as conversas citam alegados contactos com terceiros e resumem-se a meras curiosidades ou indiscrições (estranhamente, a AT e o MP juntaram também isto ao processo permitindo a interpretação de que as informações um dia podiam vir a ser úteis), noutros casos visaram os bastidores de alguns dos mais importantes negócios públicos das últimas décadas.
A começar pelo negócio BPN/BIC, que foi sendo acompanhado pelo MP porque os investigadores usaram a justificação de que existiriam relações pessoais cruzadas da família de Francisco Canas com um administrador do BIC, Jaime Pereira. Mas o inspector Paulo Silva defendeu que também era necessário estender as intercepções telefónicas ao presidente não executivo Fernando Teles (o banqueiro chegou a ser alvo de cinco escutas em simultâneo, apesar de ser Mira Amaral o CEO do BIC Portugal) porque o banco também queria incluir no negócio a compra do BPN IFI, de Cabo Verde, onde Canas tinha aberto em 2006 uma conta que usava no esquema da fraude fiscal. Só que esta teoria não passou disso mesmo. Durante as escutas telefónicas ao administrador Jaime Pereira e a Fernando Teles, os investigadores do fisco e do MP nunca detectaram qualquer manobra de Canas para reconverter o esquema da fraude, mas aproveitaram para registar parte dos bastidores das negociações do BIC com o Governo PSD/CDS para adquirir o BPN.
Isabel, a mulher dos milhões
As escutas já estavam activas há longas semanas quando a 30 de Março de 2012, Maria Luís Albuquerque, então secretária de Estado do Tesouro do ministro das Finanças Vítor Gaspar, e Fernando Teles chegaram de vez a acordo e o banco comprou por 40 milhões de euros o BPN, no qual o Estado tinha injectado mais de 5 mil milhões de euros desde novembro de 2008. Mas dois dias antes do acerto final ainda se discutia com o Governo o montante a pagar. E o BIC insistia em apenas 30 milhões de euros deixando bastante chateada a secretária de Estado Maria Luís Albuquerque, que chegou a enviar um email à meia-noite a queixar-se a Jaime Pereira. O administrador estava apostado em esticar a corda ao máximo com o Governo, mas Teles disse-lhe que tinham de suavizar a resposta para não levar a um ponto de ruptura, porque realmente estavam interessados no banco. A estratégia passava por tentarem usar a negociação dura para obterem do Governo uma espécie de compensação futura nas vendas dos bancos do BPN em Cabo Verde e no Brasil, que realmente o BIC acabou por também comprar em 2013 por, respectivamente, 30 milhões e 12 milhões de euros.
O BANQUEIRO DO BIC, FERNANDO TELES, CHEGOU A SER ALVO DE CINCO ESCUTAS EM SIMULTÂNEO
Num relatório que acompanha este e outros resumos de escutas, o inspector Paulo Silva citou de forma algo atabalhoada o que alegadamente ouvira: “Fernando Teles diz que a questão é ter de pagar o capital que lá estiver [uma alegada exigência de Maria Luís Albuquerque sobre a venda do BPN IFI], mas isso também… Jaime diz que se deixarem no BPN uma provisão de igual montante (que é o que eles estão a pensar fazer) e deixarem lá o cash, que à partida não é um problema, porque é o mesmo que tirar de um bolso e colocar no outro, é uma capitalização forçada do BPN…”
Dias antes, a 8 de Março de 2012, os investigadores já tinham gravado outra conversa entre os dois administradores que mostrava que ambos estavam convictos de que iriam fazer sempre um bom negócio com o BPN. “Dr. Teles diz que reconhece que dificilmente terão outra oportunidade para comprar por 40 [milhões de euros] uma coisa que tem 300 e tal [milhões de euros] de activo”, resumiu a equipa da AT, especificando que a administração do BIC mandara até “fazer uma coisa acessível” para os seus dois principais accionistas, Isabel dos Santos e Américo Amorim, “perceberem o que está em causa”. A leitura da sequência das escutas aos dois homens dá a entender que Américo Amorim parecia um pouco preocupado com a questão BPN/BIC. Segundo as conversas gravadas entre Teles e Jaime Pereira, ainda não sabiam ambos muito bem como lidar com o facto de o poderoso empresário português (falecido em Julho de 2017) insistir em ser informado sobre os principais créditos concedidos pelo BPN e se estes estavam concentrados em poucos clientes. Jaime Pereira usou várias vezes o argumento da questão do sigilo bancário para tentar impedir o acesso, desabafou ao telefone com uma subordinada do banco que havia traidores no BIC que estavam a dar informações a Amorim e lavou as mãos do caso salientando que o empresário e Fernando Teles tinham de falar e entender-se de vez sobre o assunto. Finalmente, disse ao próprio Teles que Mira Amaral lhe dissera que Amorim até poderia ver o ficheiro com todos aqueles dados, mas que não o poderia “copiar”. Afinal, Américo Amorim não era um accionista qualquer: tinha 25% do BIC Portugal através da Amorim Projetos e um acordo informal com a Ruasgest, a holding de António Ruas, empresário dos transportes de São Paulo e sócio do rei da cortiça em outros negócios, que detinha 10% do banco – os dois homens só venderam as participações no fim de 2014 aos outros maiores accionistas: Isabel dos Santos, que ficou com 42,5%, e Fernando Teles, ainda hoje CEO do BIC Angola, que passou a controlar 37,5%. O banco ficou assim em definitivo nas mãos de angolanos e mais tarde foi tornado público que teriam sido cometidos erros graves internos ao nível da “avaliação do sistema de governo” e em operações na área da prevenção e do branqueamento de capitais. Esse terá sido o resultado principal de duas minuciosas inspecções que levaram em 2016 o Banco de Portugal (BdP) a retirar a idoneidade a Jaime Pereira impedindo-o de assumir a presidência executiva do BIC Portugal (Eurobic), conforme seria intenção dos accionistas angolanos. O BdP pressionou também para que Teles saísse da presidência não executiva e isso aconteceu, mesmo tratando-se de um dos donos do banco que já fora gravado pelo MP a dizer que Isabel dos Santos tinha, em 2012, mais de 100 milhões de euros depositados no private do BIC, o departamento do banco que tratava dos clientes mais endinheirados.
A operação diamantes e a ZON
Naquela altura, a empresária angolana preparava-se para realizar vultuosos negócios em Portugal e não só. E uma boa parte deles pareciam passar precisamente pelo BIC. Nas conversas gravadas nos primeiros meses de 2012 a Fernando Teles e Jaime Pereira (e a interlocutores como Jorge Brito Pereira, um advogado que integrou a PLMJ e que desde 2016 é sócio do escritório Uría Menéndez e Proença de Carvalho, preside à administração da NOS e dirige a Mesa da Assembleia Geral
O PRESIDENTE DO BIC DISSE NAS ESCUTAS QUE ISABEL DOS SANTOS TINHA 100 MILHÕES NO BANCO
do BIC Portugal) é mencionada uma operação de diamantes feita por Isabel dos Santos e “os suíços”. E ainda são mencionadas cifras gigantescas sobre alegados empréstimos concedidos a Isabel dos Santos. Neste último caso, o resumo das escutas não é esclarecedor, mas os dois homens falam de uma “empresa instrumental” e de sucessivas operações de crédito, avaliadas em 100, 40, 29 e 25 milhões de dólares (ou euros), feitas por, entre outras, a Santoro e a Unitel BV (Holanda), entidades controladas por Isabel dos Santos. Pelo menos, num dos casos é dito que vários milhões são destinados a reforçar o capital da ZON para concretizar “a fusão com a Sonae.com”, um negócio que só se faria no fim de 2012 dando origem à NOS. Durante os diálogos resumidos, os dois homens referem que o BIC Angola seria o pivô dos empréstimos de milhões que passariam pelo BIC Portugal, mas tentaram perceber a tempo se existia algum bem “cativo” que garantisse os pagamentos futuros. “Jaime diz que não tem a certeza, mas que ou é com cativo ou com o aval da engenheira”, anotou a AT referindo-se a Isabel dos Santos.
No fim do ano passado, o Público revelou vários contratos entre a Unitel SA (a empresária detinha 25% da maior empresa de telecomunicações móveis de Angola e um dos outros sócios importantes eram a estatal Sonangol) e a Unitel International Holdings (diferente da primeira por ser uma sociedade de direito holandês exclusivamente controlada por Isabel dos Santos). Mas o jornal salientou que quatro destes financiamentos tinham sido assinados entre Maio e Outubro 2012, precisamente no período final das escutas feitas pelo MP a Fernando Teles. O objectivo deste negócio foi a compra de, pelo menos, 58 milhões de acções da ZON (28% do capital) que estavam na posse da Telefónica, da Cinveste e da Caixa Geral de Depósitos. Nos contratos, a empresária surge a assinar em representação da entidade que pediu o empréstimo e também do lado de quem a financiou. No total, obteve 360 milhões de euros, tendo ido 300 para o negócio ZON, ainda segundo a investigação do Público.
O amigo Relvas e os outros
Poucos meses depois da concretização dos milionários negócios das privatizações da EDP e da REN, a 3 de Julho de 2012, o inspector tributário Paulo Silva entregou ao MP um extenso relatório confidencial com todos os pormenores que a operação de vigilância reunira sobre José Maria Ricciardi, o homem que mandava no BESI e que conseguira que o grupo BES recebesse uma comissão total de cerca de 12 milhões de euros de empresas chinesas devido às referidas privatizações.
Com a ajuda de dezenas de horas de escutas telefónicas, os investigadores construíram a tese de que Ricciardi seria o pivô de um esquema em que o Estado português pudesse ter sido defraudado em 130 milhões de euros nas referidas privatizações. E o MP achou que esta nova frente de investigação tinha identificado fortes indícios de que haviam sido praticados crimes de fraude fiscal qualificada, abuso de informação, tráfico de influência, violação de segredo ou aproveitamento indevido de segredo e abuso de informação.
O cenário de suspeição generalizada traçado nas 95 páginas do relatório da equipa especial das Finanças
NO PROCESSO FICARAM REGISTOS SOBRE OS EMPRÉSTIMOS DADOS À FILHA DO PRESIDENTE DE ANGOLA