Itamar Vieira Junior fala de Torto Arado, vencedor do Prémio Leya
Antropólogo de profissão, venceu este ano o Prémio Leya com a obra Torto Arado. O livro de contos A Oração do Carrasco valeu-lhe o Prémio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores.
Itamar Vieira Junior, 39 anos, tem um rosto de menino e uma timidez que denuncia o ligeiro desconforto diante do surpreendente anúncio da conquista do Prémio Leya com Torto Arado , um romance que conta a história de duas irmãs no interior do sertão baiano. Encontramo-nos em Copacabana, depois da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais brasileiras, e, enquanto caminhamos pelo calçadão, Itamar não esconde o desagrado pela actual situação política do Brasil. “Vamos iniciar um período muito difícil, no qual será necessária uma enorme mobilização de todos os democratas, em torno da defesa da Constituição e dos direitos conquistados nas últimas décadas”, diz, com uma voz doce e cadenciada, mas com grande determinação. Antropólogo de profissão, aceitou dar a sua primeira entrevista desde a vitória no mais importante galardão da língua portuguesa para falar de Torto Arado e da situação política no Brasil.
Foi para si uma surpresa que Torto Arado vencesse o Prémio Leya?
Foi uma grande surpresa. A gente concorre como quem decide apostar na lotaria. Digo isso pela qualidade dos trabalhos. Como é um prémio com alto valor monetário, recebe escritores de renome, que concorrem anonimamente.
O prémio vai permitir-lhe dedicar-se exclusivamente à escrita?
Esse é o meu grande projecto. Monetariamente é importante, porque permite uma liberdade que você nunca teria, mas é um prémio que, sobretudo, dá projecção e abre portas à publicação, nos países de expressão portuguesa, e a traduções.
Essa tranquilidade é importante para a sua escrita?
Muito importante. Para você ter uma ideia, tinha um projecto para iniciar em Agosto, um novo trabalho, que já investigo há muito tempo, e que tive de adiar por causa desse período bem conturbado, que exigiu de nós, cidadãos brasileiros, uma grande mobilização. Era um ambiente impraticável para qualquer actividade intelectual. Por isso, só agora, vou retomar esse projecto.
Sobre Torto Arado: ser doutorado em Antropologia foi importante para a intensidade que coloca nas personagens, em particular nas duas irmãs, que representam o sofrimento da mulher nordestina do meio rural?
Foi muito importante. No ano passado, defendi uma tese de doutoramento, que é uma etnografia sobre uma comunidade quilombola, do interior do sertão da Bahia. Enquanto escrevia essa tese, numa linguagem académica, científica, que tem uma série de travas e limitações, fui imaginando-a como se pudesse ser literatura, que é a minha grande paixão. Embora a linguagem, académica e científica, seja importante em determinados contextos, a literatura tem
“Exigiremos o nosso direito de fazer oposição e de criticar o governo. Não abriremos mão da nossa liberdade”
uma forma de comunicar que é universal. Dificilmente um matemático vai ler um texto antropológico com a empatia com que lerá um texto literário. Eu já acalento esse projecto há mais de 20 anos, mas não tinha maturidade para o escrever.
Isso é curioso porque o júri realçou a sua surpresa por um romance com esta densidade ser escrito por alguém tão novo.
[Risos] Essa maturidade foi chegando com a minha pesquisa e experiência de trabalho no campo brasileiro durante os últimos 12 anos. A etnografia, dentro da antropologia, é um campo que se aproxima muito da literatura. Porque a forma como você escreve, como você narra a vida daquelas pessoas, vai dar-te a possibilidade de alcançar um nível de apresentação que demanda muito do autor, algum conhecimento de literatura, de como apresentar um texto, de como contar uma história. Então, durante essa pesquisa, o livro surgiu naturalmente, e, embora sendo um trabalho de ficção, aquelas experiências de vida, que fui presenciando e acompanhando, foram acrescentando à minha história. A forma como eles vivem, o valor que a terra tem para eles, o valor que o trabalho tem para eles, os dramas que as comunidades rurais no Brasil ainda enfrentam, com a espoliação dos seus territórios em pleno século XXI...
Como assim?
Após o impeachment de Dilma houve uma escalada na violência, no campo brasileiro, e eu vi lideranças, que conhecia, morrerem assassinadas. Um dos que mais me chocaram foi o assassinato de Binho do Quilombo, em Simões Filho, na região metropolitana de Salvador, por conta de conflitos de terras, uma semana depois de uma reunião que teve comigo. O Brasil tem uma dívida histórica para com a população negra. Quando foi editada a Lei Áurea, não foram dadas as condições necessárias para que os negros libertados garantissem a sua subsistência. Então, sem terra e sem trabalho, muitos deles permaneceram escravos ou viraram errantes. Torto
Arado fala sobre isso. Sobre uma população que vai permanecer na fazenda e que, em pleno século XXI, ainda está cativa, em regime de servidão, e que realmente tem uma necessidade de transgredir, de tomar as coisas que lhe são de direito.
Com a vitória de Jair Bolsonaro, receia que as conquistas conseguidas nas últimas décadas por algumas minorias, negros e indígenas, possam ser postas em causa? Ou acha que as instituições democráticas brasileiras, o Supremo Tribunal e o Legislativo, serão garantia da defesa desses direitos?
Acho que a ascensão de Bolsonaro, sem qualquer alteração legislativa, já autoriza inúmeros tipos de violência, porque o discurso dele, ao longo de 30 anos, foi sempre um discurso de ódio contra as minorias. Quando
“Bolsonaro levará ao poder muitos líderes evangélicos que pregam oódioea intolerância”
você fala nas instituições, eu penso na democracia americana, que tem séculos de história e está bem firmada, e lá assumiu um candidato que flerta com a extrema-direita. Mas tem tido dificuldades em avançar em determinadas pautas, porque as instituições são sólidas e existe um equilíbrio na democracia americana. A democracia brasileira é um “neném”, de 30 anos. Por isso, tenho dúvidas de que as nossas instituições tenham força para barrar as pautas de violência, de racismo, de ódio, de supressão de direitos. Só o tempo nos dirá se esta minha desconfiança tem sentido. Mas a verdade é que eu não tenho essa confiança nas instituições democráticas do meu país.
Porquê?
Durante a campanha, eu e muitos amigos, colegas de faculdade e outros escritores, estávamos assustados com o clima de medo que estava sendo criado, até pelas manifestações públicas do candidato. Mas a verdade é que ele foi eleito, e em nenhum momento nos passou pela cabeça contestar o resultado. Foi o que o povo decidiu. Mas a democracia vai exigir muito de nós, muita mobilização, muita consciência, até da comunidade internacional, que terá de estar de olhos abertos para o que vai acontecer. Por outro lado, apesar da vitória, Bolsonaro não foi aclamado. O segundo classificado teve uma votação muito expressiva. Ele terá de governar com cautela e para todos os brasileiros. Por isso, sinto-me muito corajoso para enfrentar o que vem aí.
O Nordeste é o reduto dessa mobilização?
O Nordeste é o reduto dessa luta. É o nosso quilombo. Se aquilombar significa recolher-se, em determinada área, para se firmar enquanto grupo e resistir às investidas dos adversários. Então, nós vamo-nos aquilombar no Nordeste, e onde houver espaço no Brasil, para enfrentar, de forma democrática, o que vem por aí. Exigiremos, dentro do Estado de direito democrático e no respeito pela Constituição, o nosso direito de fazer oposição e de criticar o governo. Não abriremos mão da nossa liberdade.
Bolsonaro iniciou o seu discurso de vitória com uma oração de agradecimento a Deus. Preocupa-o esta mistura entre política e religião?
Muito, até pela agenda conservadora promovida por essas igrejas evangélicas pentecostais. Se reparar, a Igreja Católica Brasileira sempre teve uma ala progressista muito forte, que se manifestou em defesa dos mais desfavorecidos, através das pastorais sociais: a Pastoral da Terra, a Pastoral Afro-Brasileira, a Pastoral da Diversidade Sexual, a Pastoral da Juventude Rural, entre muitas outras. Mas nunca interveio politicamente, elegendo deputados ou formando bancadas parlamentares. Com as igrejas evangélicas isso mudou e a ascensão de Bolsonaro levará ao poder muitos líderes evangélicos que pregam o ódio e a intolerância para com outras religiões, como Silas Malafaia. No limite, o meu medo é que o Brasil de Bolsonaro vire uma república militar teocrática e onde ficaremos dentro disso tudo? E o Estado laico? Não vejo nenhuma democracia madura, sólida, em que o Estado não seja laico. Por isso, é claro que estou muito preocupado, por isso é tão necessário estarmos vigilantes.
Regressando a Torto Arado, fale-nos um pouco sobre essas duas irmãs, sobretudo sobre esse olhar feminino e sobre o que representou e representa “ser mulher” no interior do sertão baiano.
Eu cresci numa família de mulheres fortes, que, mesmo assim, eram vítimas da sociedade patriarcal. Muitas delas sofriam violência dos maridos, no trabalho, e não tinha como ser diferente. E aquilo tudo, desde a minha infância, sempre me machucou, sempre me provocou emoção, me instigou a falar sobre isso. Então, esse núcleo da trama do romance pode dizer-se que vem da minha infância. Claro que foi ganhando profundidade e complexidade, porque assim como eu me apercebi do sofrimento das mulheres da minha família, ao longo desses 12 anos de trabalho no campo, fui encontrando mulheres que vivem em situações muito mais adversas, de extrema pobreza. E o poder que elas têm de liderança, de capacidade de mobilização, de capacidade de transformação, é uma coisa admirável. Essa pesquisa forneceu-me elementos incríveis para escrever um romance forte sobre esse tema. É curioso, porque eu li nas notícias que o júri tinha uma dúvida, sobre se quem tinha escrito o romance era um homem ou uma mulher. E quando eu escolhi o pseudónimo, que era a inicial de um nome, com o sobrenome Terra, A. Terra, eu tinha isso em mente. Na verdade, eu queria que essa dúvida existisse.
Mas o facto de ser um olhar feminino pesou.
Isso foi algo que fiz com muita tranquilidade, porque a antropologia nos dá essa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Então, a gente tenta entender o mundo, não pelos nossos olhos, mas pelos olhos do outro, pelos olhos do quilombola, pelos olhos do indígena. O trabalho da etnografia é esse, né? E eu pensei: que maravilhoso, se a literatura puder dar esses olhos às pessoas para entenderem o mundo, a partir das personagens. Foi isso que tentei, e acho que o Prémio Leya veio corroborar que acabei conseguindo.