JOÃO PEREIRA COUTINHO
QUANDO UM DIA SE ESCREVER
a história da nossa Europa, os especialistas do futuro vão fazer uma pergunta: como foi possível a estes bárbaros não terem visto a sepultura que cavaram? A França é um bom exemplo. Que números tem a República para mostrar? O crescimento económico não chega a um dígito. O desemprego vai a caminho dos dois dígitos. A canga fiscal, em modestos 48% do PIB, só perde para uma despesa pública nos 57%. Perante este cenário, a que cumpre adicionar a criminalidade fora de controlo (o Governo já admitiu que, em certos bairros, a lei da República não funciona), podemos entender melhor que um novo imposto sobre os combustíveis talvez não fosse a prioridade das prioridades. Emmanuel Macron discorda: as alterações climáticas, e não a pobreza ou o abandono em que vivem as populações rurais e suburbanas, merece a sua atenção especial. Mesmo que essa atenção não seja retribuída: nos últimos dias, Paris ardeu. Verdade que, pelos padrões domésticos, a violência de hoje é uma sessão de manicure. Mas nem isso devia desculpar a tentação do sr. Macron de moralizar os franceses para que comam brioches quando eles precisam de pão. Nesse futuro, os historiadores olharão para a emergência da “extrema-direita”, a começar pela sra. Le Pen (nas europeias e, a prazo, nas presidenciais), como o resultado lógico de regimes disfuncionais, que deixaram de habitar o mesmo planeta do cidadão comum. E perguntarão como foi possível confundir os sintomas do extremismo com as causas reais do nosso naufrágio democrático. Aqui do passado, respondo já: porque as culturas primitivas sempre foram especialistas em culpar forças obscuras pelas suas maleitas mais mundanas.
DEVE SER DO ESPÍRITO DA QUADRA,
mas gostei de ouvir Natal Marques. Falo do presidente da EMEL, que tenciona cobrar estacionamento em todas as freguesias de Lisboa até 2020. Essa ambição não se explica apenas por motivos de ordem pública. Natal Marques, uma alma romântica, entende que a EMEL tem tudo para ser “a empresa mais amada de Lisboa”. Gostaria de dizer que entendo os desejos de Natal Marques. Sazonalmente, circulo pela capital. Estaciono a viatura e pago a tarifa carinhosa que a EMEL cobra aos seus amásios. Quando me atraso no horário estabelecido, lá encontro uma carta de amor que me leva à comoção mais sincera. Isto, claro, se o agente não estiver por perto. Se estiver, lanço-me aos seus pés, agradeço-lhe do fundo da alma e pergunto se não posso levar mais dois ou três bilhetes, só para ler no caminho. Uma selfie também serve, porque essa é a linguagem dos “afectos”. Infelizmente, os portugueses não vêem as coisas da mesma forma. Só isso explica as 70 a 80 mil queixas que a EMEL recebe todos os anos. Perante estes corações de gelo, que fazer? Não tenciono dar aulas de galanteio a ninguém. Mas pergunto honestamente se a EMEL não devia ser mais generosa na distribuição de bloqueios – ou, então, no uso apaixonado do reboque.
Tenho a certeza de que os lisboetas não resistiriam a essas supremas manifestações de amor.
ENGRAÇADO:
há filmes com 15 ou 20 anos de idade que já estão ultrapassados. Exemplo: A Última Hora, de Spike Lee, talvez a sua única obraprima. No filme, encontramos Monty (Edward Norton), condenado a pena de prisão por narcotráfico. Monty tem de se apresentar voluntariamente no estabelecimento prisional para cumprir a pena. Mas, antes de rumar para lá, festeja com os amigos as últimas horas de liberdade e pede-lhes um favor: que o esmurrem com particular violência. Raciocínio de Monty: se as suas feições angelicais estiverem devidamente amassadas, talvez os colegas de prisão o deixem em paz na hora do duche.
Hoje, não seria preciso tanto sacrifício. Leio no Daily Telegraph que, em apenas dois anos, duplicou o número de presidiários em Inglaterra e no País de Gales que se declararam transgéneros. O que significa que há homens que abandonam as cadeias (masculinas) para viverem em paz nas cadeias (femininas).
Se Spike Lee tivesse filmado A Última Hora em 2018, bastaria a Monty vestir uma saia e pôr uma pinturinha nos lábios. Saltos altos, por razões de segurança, talvez fossem extemporâneos.