JOÃO PEDRO GEORGE
No dia 2 de Novembro de 1930, na Etiópia, também conhecida como Abissínia, reis, príncipes e chefes de Estado do mundo ocidental reuniram-se para assistir à proclamação de Ras Tafari Makonnen como Hailé Selassié I, o novo imperador daquela remota nação africana. Acontecimento de repercussão mundial, amplamente coberto pelos meios de comunicação, incluindo a National Geographic ,acoroação de Selassié exerceria forte influência nos movimentos pan-africanos, em particular na Jamaica, sob domínio inglês desde o século XVII (só a 6 de Agosto de 1962 é que o país se tornou independente do Reino Unido). Anos antes, naquela ilha das Caraíbas, o carismático e controverso líder Marcus Mosiah Garvey (1887-1940), apontara para a Etiópia e dissera aos seus seguidores: “Olhem para Leste, para África, onde um negro será coroado Rei. Saberão: a vossa redenção está próxima.” Os títulos que Selassié usou – Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Leão Conquistador da Tribo de Judá (imagem utilizada pelo profeta Isaías para se referir ao Messias), Eleito de Deus –; as palavras carregadas de simbolismo e de referências bíblicas (proclamou-se descendente do Rei David e do seu filho, o Rei Salomão); a homenagem prestada pelo mundo branco através dos seus máximos representantes; a antiguidade da Etiópia e o facto de ser, naquela altura, entre o colonialismo europeu, um dos poucos países africanos independentes e soberanos (em 1896, os exércitos de Menelik II tinham derrotado as forças italianas invasoras, na Batalha de Aduá), tudo isso convenceu muitos jamaicanos de que a previsão de Garvey se estava a cumprir e que Ras Tafari era uma reencarnação de Jesus Cristo, que regressava finalmente para os libertar e redimir. E, pormenor importante, era negro (a canção de Salomão – Sou Negro – fazia assim todo o sentido: se Salomão era negro, também Cristo o era). Foi assim que nasceu, na Jamaica, em finais da década de 30, o rastafarianismo, movimento político, revolu- cionário, cultural, religioso e messiânico que presta culto ao imperador da Etiópia (o que levou a Coroa inglesa a considerá-los uns fanáticos loucos e uma ameaça à ordem social) e onde a consciência da cor negra e da escravatura – “Eu senti o chicote do senhor da plantação”, ouve-se em algumas canções – ocupa um lugar central. Percebe-se porquê: os negros transportados à força para o continente americano eram oriundos de diferentes regiões de África e levaram consigo uma miríade de crenças, costumes, religiões e práticas que os diferenciavam e lhes conferiam identidades separadas, de modo que o único elemento que lhes permitiu constituir uma cultura, uma identificação com os antepassados e uma visão do mundo comum foi a escravatura. Outro aspecto fulcral da ideologia dos rastafáris é a ideia de que os negros da chamada diáspora africana vivem exilados na Babilónia (nome atribuído pelos rastafári ao mundo colonial e neocolonial, ao poder estabelecido e aos opressores brancos, em geral, que forçaram milhões de negros a abandonar o continente africano e os escravizaram no Novo Mundo), mas que estão destinados, depois de séculos de injustiça e de cativeiro, a regressar à sua terra natal ancestral, África. As afinidades com os hebreus cativos da Bíblia são óbvias e os próprios rastafáris dizem-se reencarnações dos israelitas, consideram-se israelitas negros (o conceito de êxodo e a imagem da Etiópia como Sião Negro, onde Deus habita, são outras influências do judaísmo). Porém, como movimento sincrético, o rastafarianismo tem múltiplas influências, como o hinduísmo – religião de milhares de trabalhadores das Caraíbas, importada para a Jamaica com a abolição da escravatura, quando se começou a contratar trabalho assalariado –, de onde derivam a doutrina da reencarnação, o consumo de marijuana (fumada por certos ascetas hindus, os sadhus) e a ideia de nunca cortar, pentear ou arranjar o cabelo, que deu origem aos dreadlocks ,um dos sinais tangíveis de identificação dos rastafáris. O cabelo enorme, emaranhado e formando franjas do género macramé, funciona como símbolo de orgulho racial e de redefinição da ne-
gritude como um atributo desejável, como afirmação de ruptura contra os preconceitos brancos e de libertação ou distanciamento em relação às normas de beleza dominantes.
O reggae, que na semana passada a UNESCO incluiu na sua lista de património imaterial da humanidade, é um género de música inspirado directamente no rastafarianismo. Surgiu em finais da década de 60 nos guetos pobres (Trenchtown) de Kingston como forma de resistência e de protesto contra o governo jamaicano, mas que graças a Bob Marley e à Island Records, de Chris Blackwell, se tornou mundialmente conhecida (sobretudo depois do concerto que jun- tou Marley e Stevie Wonder na Jamaica, em 1975, e da digressão do autor de Exodus, em 1977, a maior da história do reggae) e que, graças à indústria da música, que sabe muito bem como comercializar a imagem da rebeldia para consumo de massas, sofreu o processo típico de abrandamento ideológico e de acomodação das normas antes rejeitadas (segundo Dick Hebdige, num livro recentemente traduzido pela Maldoror, Subcultura: O
Significado do Estilo, tratou-se de um processo de acomodação mútua entre o rastafarianismo e as sociedades ocidentais, em particular a inglesa; o próprio facto de os dreadlocks passarem a ser cobertos, em muitos casos, com barretes de lã largos, tecidos a vermelho, ouro e verde, é um indicador dessa assimilação mútua). Há muito que essa comercialização retirou ao reggae quase toda a sua carga subversiva como expressão político-cultural especificamente negra. Daí que, para os rastafáris mais ortodoxos ou puristas, a decisão da UNESCO não pode senão constituir o golpe de misericórdia no reggae como manifestação de contracultura e de oposição à Babilónia. A verdade, porém, é que o rastafarianismo inclui, na sua origem, uma série de características pouco recomendáveis. Em primeiro lugar, é um movimento de supremacia masculina, que tende a discriminar as mulheres e a considerá-las naturalmente inferiores (como seres contaminados – nos períodos de menstruação, por exemplo, não podem participar nos rituais e ficam confinadas –, as mulheres devem obediência aos homens e ocupam um lugar subordinado). Depois, pelo menos quando surgiu, o rastafarianismo baseava a sua identidade no conceito equívoco de raça, reprimia a inter-racialidade e defendia a pureza da raça negra (praticava-se mesmo a excomunhão para os negros que se casassem com pessoas de outras origens étnicas). Além disso, quando Selassié foi coroado, a escravatura não só ainda existia como continuou a existir na Etiópia (Selassié era um líder devoto da Igreja Ortodoxa Etíope e quando visitou a Jamaica, em 1966, ficou espantado com a devoção dos jamaicanos rastafáris).
Por culpa de Bob Marley, o músico que mais fez pela difusão do reggae, o rastafarianismo perdeu pureza, mas em contrapartida tornou-se um movimento multirracial, dirigido a todos os que lutam contra a exploração, a opressão e a injustiça (os não negros passaram a poder tornar-se rastas, o que significa que o ser negro deixou de ser mais importante que os princípios e as crenças do movimento). Além disso, a popularização do reggae promovida por Bob Marley deu aos negros das Américas, das Caraíbas, da Europa e do continente africano um outro sentido de identificação e de identidade comum, aumentou a auto-estima de milhões de negros, permitiu-lhes manter ou reencontrar uma imagem positiva de si próprios, e conduziu a um interesse renovado pelas culturas africanas. Mesmo a ideia de regresso a África adquiriu, graças ao Rei do Reggae, um sentido metafórico, passou a significar uma maior atenção à história da escravatura e às manifestações culturais dos negros espalhados pelo mundo. Por estas e outras razões, devemos estar agradecidos a Bob Marley, uma das figuras mais generosas da história da música.