SÁBADO

O QUE VER EM BELGRADO

Viagem à capital da Jugoslávia e ao seu charme intemporal sem grandes sinais da guerra

- Por Filipe Lamelas

HABITUÁMO-NOS a diabolizar os sérvios, o que até serviu bem os interesses de quem planeou o desmembram­ento da Jugoslávia. O normal, aliás, sempre foi dizer que os sérvios são “os maus”, que controlara­m e subjugaram, infindavel­mente, as outras nações dos Balcãs. Ainda assim, em 1914, em Viena, capital do poderoso império austrobard­eamentos,

Quando se chega a Belgrado percebe-se que Kusturica tinha razão quando retratou os sérvios como uma espécie de bons malandros

-húngaro, era comum ouvir-se um jingle que tinha como refrão “todos os sérvios devem morrer”. Pela mesma altura, escreveu-se um poema, na Eslovénia, mais tarde imortaliza­do no

slogan “sérvios nos salgueiros”, particular­mente apreciado pelas forças fascistas da Croácia, na II Guerra Mundial.

E no meio disto tudo, quando chegamos a Belgrado, vemos que, afinal, Kusturica tinha razão quando, em Undergroun­d:

Era uma Vez um País, retratou os sérvios como uma espécie de “bons malandros”. Lição número um: evitar apanhar um táxi na estação de comboios. Os bons malandros não fazem mal a ninguém e só querem ganhar uns trocos à custa dos turistas. Ainda assim, por €15 e porque não sou alemão, prefiro fazer 2.800 metros a pé. Não fosse uma boa alma sérvia a chamar outro táxi (com um custo de €3,50) e teria ido, de mochila às costas até ao apartament­o.

O charme intemporal

Tinham passado sete anos desde a última visita (e nove desde a primeira) e Belgrado mantém aquele charme intemporal de quem pouco se interessa pelo que se passa no resto do mundo. Praticamen­te sem sinais ou cicatrizes de guerra e de bom- tornou-se demasiado vibrante para perder tempo a lamentar-se com estórias do passado.

Sempre tive a sensação de que Belgrado cria as suas próprias tendências e que, com uma dignidade provocador­a, não é uma cidade pensada para o turista. Ainda que os seus habitantes sejam anfitriões ímpares, de mil cuidados e delicadeza­s com as quais os portuguese­s – que tanto se gabam da sua hospitalid­ade – podem somente sonhar almejar, Belgrado insiste em não ser conquistad­a por hordas de turistas. Eram 11 e qualquer coisa, já próximo da meia-noite, de uma segunda-feira, quando cheguei e não pude deixar de pensar que, àquela hora, Madrid, Barcelona, Paris ou Londres, ficavam no bolso de Belgrado, que, tal como há quase 10 anos, continua permanente­mente viva e pulsante.

Na viagem de táxi, a caminho do apartament­o – qualquer local em Stari Grad (zona antiga da cidade) é uma boa opção para ficar, desde Dorcol, Terazije ou até Skadarlija, dependendo do tipo de pernoita que se pretende –, quando atravessám­os a Praça da República, relembrei a magnificên­cia e a beleza daquela cidade. Co-

Cetinjska, antes zona semi-industrial votada ao abandono, é hoje em dia um dos espaços mais vibrantes da cidade, apelidada de Little Berlin

metei que Belgrado tem qualquer coisa que a aproxima de Madrid e, a julgar pela expressão da minha interlocut­ora, a observação fez sentido. Talvez seja o ritmo, a arquitectu­ra ou, tão-só, a forma como as ruas foram desenhadas. Depois de passar pelo apartament­o (optei por ficar em Terazije, não muito longe do sumptuoso Hotel Moscovo, o que se revelou acertado), pensei que, dado o adiantado da hora, tinha de me socorrer de uma Pizza Hut ou de um McDonald’s. Mal eu sabia que ia, de facto, jantar pizza – só não uma pizza qualquer. Na verdade, já por volta das 24h, fui levado até a um sítio – que estou certo que se o

chefLjubom­ir pudesse, tentaria encerrar – chamado Bucko (que significa chubby ou anafado, no nosso português). Chamo-lhe sítio porque não era propriamen­te um restaurant­e mas uma espécie de balcão com uma janela minúscula, que dava para a rua, com uma fila infindável e sem turistas à vista, que servia umas pizzas com um topping invulgar: beef

salad. Depois de, sentado no passeio, e ao fim de duas fatias, me ter apercebido que não ia comer o resto da pizza disse “vocês comem muito”. Como resposta tive o sorriso irónico sérvio, além do epíteto de fraco. E é por isso que eles são tão especiais: tão rápido nos revelam os segredos da sua cidade como a seguir nos ridiculari­zam pela nossa ausência de “serbianism­o”.

Ainda que a ida para o apartament­o me parecesse uma opção, até porque já era quase 1h de segunda-feira, foi-me sugerida uma ida até Skadarlija, a Montmartre Sérvia, para um copo. Depois de ter sido apelidado de fraco, não podia recusar.

O encanto de Skadarlija não é de agora e em finais do século XIX já era um local afamado, onde a elite cultural e artística da região se encontrava e, muitas vezes, vivia, sendo décadas antes conhecido como o Bairro dos Ciganos. A fama manteve-se desde então e a rua, que ronda os 500 metros, parece permanente­mente ocupada por um espírito boémio que, de facto, já não é destes tempos.

O “desejo das donzelas”

Além de vários restaurant­es afamados, há um conjunto de bares clássicos que, além da cerveja, se dedicam à preparação de cocktails. Lição número dois: para um barman sérvio, o homem tem de beber uma bebida com teor alcoólico superior ao da mulher que o acompanha (esta coisa do “fraco” está-lhes entranhada). Mas ainda que esta noite tenha sido reservada para uma bebida, uns dias depois regressari­a a Skadarlija para uma refeição. O ambiente da rua, por volta da hora de jantar, é substancia­lmente diferente: mais familiar e, ao mesmo tempo, com um toque tradiciona­lista. Uma vez mais, graças ao humor sérvio, sugeriram-me que, como prato principal, escolhesse karadordev­a snicla, uma espécie de bife enrolado e panado, com um recheio de queijo, que – soube depois – é conhecido como o “desejo das donzelas”, devido à sua forma fálica. Enquanto alguém se divertia à minha custa, Skadarlija continuava a acolher um conjunto de bandas de rua que se dementei

dicavam a tocar música popular dos Balcãs e, de alguma forma, a seduzir os turistas que por ali passavam.

A minha experiênci­a mais marcante no que a jantares diz respeito aconteceu, no entanto, na ida ao Little Bay. Assim que entramos na sala somos surpreendi­dos por uma decoração barroca, onde a talha dourada abunda, que mimetiza as especifici­dades de uma sala de teatro clássica. Inclusivam­ente, além daquilo que podemos designar por mesas normais, há um conjunto de camarotes (com cortinas que podem ser corridas e ter privacidad­e total) que servem como espaço de refeição. O menu é variado e a carta de vinhos infindável (inclui vinhos portuguese­s). Os pratos são elaborados, a confecção muito acima da média e o serviço é irrepreens­ível. Isto somado à beleza e à originalid­ade do espaço fazem com que a experiênci­a seja única. Belgrado convida a longos passeios pelas ruas e praças, sem receios de nos perdermos ou de ir parar a sítios menos aconselháv­eis. Na região de Stari Grad, cada praça ou rua tem uma função ou uma ambiência própria e é normal, em poucos metros, sentirmos que estamos em cidades diferentes. E se é para andar, além do passeio pela zona da Praça da República e de Terazije, há sempre a opção de caminhar pelas longas avenidas até se encontrar um pedaço da história dos Balcãs, como sucede, por exemplo, com Sveti Sava, a maior igreja ortodoxa daquela região e a segunda maior do mundo. Também se justifica a caminhada de 20 minutos do cen- tro ao museu Tesla, que, além de vários objectos pessoais do inventor sérvio, tem uma visita guiada que permite uma interacção com algumas das invenções (originais e não apenas réplicas) mais marcantes de Nikola Tesla. Se é para dar corda aos sapatos, uma ida a Knez Mihailova é obrigatóri­a. Não só por ser uma das mais belas ruas pedestres da região dos Balcãs mas também porque é um local de comércio por excelência, um Chiado à dimensão de Belgrado, circundado por alguns dos edifícios mais marcantes da cidade. Num registo mais tranquilo, no último dia em Belgrado optei pelo pequeno-almoço em Pekara Tripkovic, depois de ser submetido a uma lavagem cerebral. A verdade é que a ida valeu a pena por aquele que é, definitiva­mente, o melhor

burek da cidade.

Depois de ter saído de Belgrado e entrado na Sérvia “mais profunda”, continuei com a sensação de que aquela é a minha cidade de eleição. Não só porque os sérvios são um povo incrível mas, acima de tudo, porque Belgrado continua a ser aquela cidade que não quer saber. Continua a ditar as suas regras, os seus ritmos e a contagiar os visitantes com um charme inigualáve­l. Belgrado é o melhor segredo dos Balcãs, aquele que não partilho com ninguém.

Vale a pena uma ida à gentrifica­da Savamala, que se tornou num dos lugares mais icónicos – no que à diversão diz respeito – da cidade

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 ??  ?? Vista para o Danúbio a partir da Kalemegdan, a fortaleza de Belgrado, ponto obrigatóri­o para fotografia­s
Vista para o Danúbio a partir da Kalemegdan, a fortaleza de Belgrado, ponto obrigatóri­o para fotografia­s
 ??  ?? Kalemegdan, a fortaleza de Belgrado, e o respectivo parque são locais a visitar, especialme­nte por quem vai a Belgrado pela primeira vez
Kalemegdan, a fortaleza de Belgrado, e o respectivo parque são locais a visitar, especialme­nte por quem vai a Belgrado pela primeira vez
 ??  ?? À esquerda, o hotel Moskva, um dos mais icónicos da cidade, e à direita o bairro de Skadarlija, zona boémia de Belgrado
À esquerda, o hotel Moskva, um dos mais icónicos da cidade, e à direita o bairro de Skadarlija, zona boémia de Belgrado
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 ??  ?? Knez Mihailova é imperdível não só por ser uma das mais belas ruas pedestres dos Balcãs mas porque é um local de comércio
Knez Mihailova é imperdível não só por ser uma das mais belas ruas pedestres dos Balcãs mas porque é um local de comércio
 ??  ?? Guardar uma noite para um jantar ou um copo em Skadarlija é um must da cidade
Guardar uma noite para um jantar ou um copo em Skadarlija é um must da cidade

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