O QUE VER EM BELGRADO
Viagem à capital da Jugoslávia e ao seu charme intemporal sem grandes sinais da guerra
HABITUÁMO-NOS a diabolizar os sérvios, o que até serviu bem os interesses de quem planeou o desmembramento da Jugoslávia. O normal, aliás, sempre foi dizer que os sérvios são “os maus”, que controlaram e subjugaram, infindavelmente, as outras nações dos Balcãs. Ainda assim, em 1914, em Viena, capital do poderoso império austrobardeamentos,
Quando se chega a Belgrado percebe-se que Kusturica tinha razão quando retratou os sérvios como uma espécie de bons malandros
-húngaro, era comum ouvir-se um jingle que tinha como refrão “todos os sérvios devem morrer”. Pela mesma altura, escreveu-se um poema, na Eslovénia, mais tarde imortalizado no
slogan “sérvios nos salgueiros”, particularmente apreciado pelas forças fascistas da Croácia, na II Guerra Mundial.
E no meio disto tudo, quando chegamos a Belgrado, vemos que, afinal, Kusturica tinha razão quando, em Underground:
Era uma Vez um País, retratou os sérvios como uma espécie de “bons malandros”. Lição número um: evitar apanhar um táxi na estação de comboios. Os bons malandros não fazem mal a ninguém e só querem ganhar uns trocos à custa dos turistas. Ainda assim, por €15 e porque não sou alemão, prefiro fazer 2.800 metros a pé. Não fosse uma boa alma sérvia a chamar outro táxi (com um custo de €3,50) e teria ido, de mochila às costas até ao apartamento.
O charme intemporal
Tinham passado sete anos desde a última visita (e nove desde a primeira) e Belgrado mantém aquele charme intemporal de quem pouco se interessa pelo que se passa no resto do mundo. Praticamente sem sinais ou cicatrizes de guerra e de bom- tornou-se demasiado vibrante para perder tempo a lamentar-se com estórias do passado.
Sempre tive a sensação de que Belgrado cria as suas próprias tendências e que, com uma dignidade provocadora, não é uma cidade pensada para o turista. Ainda que os seus habitantes sejam anfitriões ímpares, de mil cuidados e delicadezas com as quais os portugueses – que tanto se gabam da sua hospitalidade – podem somente sonhar almejar, Belgrado insiste em não ser conquistada por hordas de turistas. Eram 11 e qualquer coisa, já próximo da meia-noite, de uma segunda-feira, quando cheguei e não pude deixar de pensar que, àquela hora, Madrid, Barcelona, Paris ou Londres, ficavam no bolso de Belgrado, que, tal como há quase 10 anos, continua permanentemente viva e pulsante.
Na viagem de táxi, a caminho do apartamento – qualquer local em Stari Grad (zona antiga da cidade) é uma boa opção para ficar, desde Dorcol, Terazije ou até Skadarlija, dependendo do tipo de pernoita que se pretende –, quando atravessámos a Praça da República, relembrei a magnificência e a beleza daquela cidade. Co-
Cetinjska, antes zona semi-industrial votada ao abandono, é hoje em dia um dos espaços mais vibrantes da cidade, apelidada de Little Berlin
metei que Belgrado tem qualquer coisa que a aproxima de Madrid e, a julgar pela expressão da minha interlocutora, a observação fez sentido. Talvez seja o ritmo, a arquitectura ou, tão-só, a forma como as ruas foram desenhadas. Depois de passar pelo apartamento (optei por ficar em Terazije, não muito longe do sumptuoso Hotel Moscovo, o que se revelou acertado), pensei que, dado o adiantado da hora, tinha de me socorrer de uma Pizza Hut ou de um McDonald’s. Mal eu sabia que ia, de facto, jantar pizza – só não uma pizza qualquer. Na verdade, já por volta das 24h, fui levado até a um sítio – que estou certo que se o
chefLjubomir pudesse, tentaria encerrar – chamado Bucko (que significa chubby ou anafado, no nosso português). Chamo-lhe sítio porque não era propriamente um restaurante mas uma espécie de balcão com uma janela minúscula, que dava para a rua, com uma fila infindável e sem turistas à vista, que servia umas pizzas com um topping invulgar: beef
salad. Depois de, sentado no passeio, e ao fim de duas fatias, me ter apercebido que não ia comer o resto da pizza disse “vocês comem muito”. Como resposta tive o sorriso irónico sérvio, além do epíteto de fraco. E é por isso que eles são tão especiais: tão rápido nos revelam os segredos da sua cidade como a seguir nos ridicularizam pela nossa ausência de “serbianismo”.
Ainda que a ida para o apartamento me parecesse uma opção, até porque já era quase 1h de segunda-feira, foi-me sugerida uma ida até Skadarlija, a Montmartre Sérvia, para um copo. Depois de ter sido apelidado de fraco, não podia recusar.
O encanto de Skadarlija não é de agora e em finais do século XIX já era um local afamado, onde a elite cultural e artística da região se encontrava e, muitas vezes, vivia, sendo décadas antes conhecido como o Bairro dos Ciganos. A fama manteve-se desde então e a rua, que ronda os 500 metros, parece permanentemente ocupada por um espírito boémio que, de facto, já não é destes tempos.
O “desejo das donzelas”
Além de vários restaurantes afamados, há um conjunto de bares clássicos que, além da cerveja, se dedicam à preparação de cocktails. Lição número dois: para um barman sérvio, o homem tem de beber uma bebida com teor alcoólico superior ao da mulher que o acompanha (esta coisa do “fraco” está-lhes entranhada). Mas ainda que esta noite tenha sido reservada para uma bebida, uns dias depois regressaria a Skadarlija para uma refeição. O ambiente da rua, por volta da hora de jantar, é substancialmente diferente: mais familiar e, ao mesmo tempo, com um toque tradicionalista. Uma vez mais, graças ao humor sérvio, sugeriram-me que, como prato principal, escolhesse karadordeva snicla, uma espécie de bife enrolado e panado, com um recheio de queijo, que – soube depois – é conhecido como o “desejo das donzelas”, devido à sua forma fálica. Enquanto alguém se divertia à minha custa, Skadarlija continuava a acolher um conjunto de bandas de rua que se dementei
dicavam a tocar música popular dos Balcãs e, de alguma forma, a seduzir os turistas que por ali passavam.
A minha experiência mais marcante no que a jantares diz respeito aconteceu, no entanto, na ida ao Little Bay. Assim que entramos na sala somos surpreendidos por uma decoração barroca, onde a talha dourada abunda, que mimetiza as especificidades de uma sala de teatro clássica. Inclusivamente, além daquilo que podemos designar por mesas normais, há um conjunto de camarotes (com cortinas que podem ser corridas e ter privacidade total) que servem como espaço de refeição. O menu é variado e a carta de vinhos infindável (inclui vinhos portugueses). Os pratos são elaborados, a confecção muito acima da média e o serviço é irrepreensível. Isto somado à beleza e à originalidade do espaço fazem com que a experiência seja única. Belgrado convida a longos passeios pelas ruas e praças, sem receios de nos perdermos ou de ir parar a sítios menos aconselháveis. Na região de Stari Grad, cada praça ou rua tem uma função ou uma ambiência própria e é normal, em poucos metros, sentirmos que estamos em cidades diferentes. E se é para andar, além do passeio pela zona da Praça da República e de Terazije, há sempre a opção de caminhar pelas longas avenidas até se encontrar um pedaço da história dos Balcãs, como sucede, por exemplo, com Sveti Sava, a maior igreja ortodoxa daquela região e a segunda maior do mundo. Também se justifica a caminhada de 20 minutos do cen- tro ao museu Tesla, que, além de vários objectos pessoais do inventor sérvio, tem uma visita guiada que permite uma interacção com algumas das invenções (originais e não apenas réplicas) mais marcantes de Nikola Tesla. Se é para dar corda aos sapatos, uma ida a Knez Mihailova é obrigatória. Não só por ser uma das mais belas ruas pedestres da região dos Balcãs mas também porque é um local de comércio por excelência, um Chiado à dimensão de Belgrado, circundado por alguns dos edifícios mais marcantes da cidade. Num registo mais tranquilo, no último dia em Belgrado optei pelo pequeno-almoço em Pekara Tripkovic, depois de ser submetido a uma lavagem cerebral. A verdade é que a ida valeu a pena por aquele que é, definitivamente, o melhor
burek da cidade.
Depois de ter saído de Belgrado e entrado na Sérvia “mais profunda”, continuei com a sensação de que aquela é a minha cidade de eleição. Não só porque os sérvios são um povo incrível mas, acima de tudo, porque Belgrado continua a ser aquela cidade que não quer saber. Continua a ditar as suas regras, os seus ritmos e a contagiar os visitantes com um charme inigualável. Belgrado é o melhor segredo dos Balcãs, aquele que não partilho com ninguém.
Vale a pena uma ida à gentrificada Savamala, que se tornou num dos lugares mais icónicos – no que à diversão diz respeito – da cidade