O bispo de Manuel Vicente
CERTO DIA, AINDA O SENHOR
PRESIDENTEDOCONSELHO, infelizmente, estava vivo, um padre de uma qualquer paróquia do País teve um acidente de automóvel, embatendo noutra viatura. Um diligente delegado do Ministério Público dirigiu-se ao local do sinistro e, ele próprio, tomou conta da ocorrência, lavrando o auto com a posição dos carros, medições das travagens, etc. Ao que parece, segundo o auto, a conclusão era clara: a responsabilidade foi do padre, que não respeitou o sinal de cedência de prioridade. O processo seguiu os seus trâmites, com o padre a ser acusado pelo Ministério Público, que lhe imputou a autoria do acidente. Mês e meio mais tarde, apesar das evidências, o juiz da comarca resolveu não pronunciar o sacerdote, classificando os indícios como insuficientes. O diligente procurador recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra. Um bom par de meses mais tarde (isto da lentidão da justiça não é de agora), padre e delegado encontraram-se num autocarro. Cumprimentos iniciais feitos, e o cura da aldeia atira: “– Então o senhor doutor delegado não sabe o resultado da Relação? – Eu não, nem tenho qualquer interesse especial em saber.
– Pois fique sabendo que vai a julgamento daqui a dois dias e que vou ser absolvido!
– E como é que tem certeza disso, senhor abade?
– Olhe Senhor Doutor Delegado, sempre lhe digo uma coisa: no meu processo houve duas pessoas que cumpriram o seu dever e se portaram bem, o senhor ao acusar-me e eu agarrando-me ao senhor bispo de Coimbra!”
O processo baixou e com a decisão: dois votos a favor e um contra a decisão de não pronúncia.
O episódio relatado pelo antigo juiz conselheiro José Marques Vidal (Casos de Tribunal – Homens e Magistrados, Quetzal 2003), ainda que ocorrido durante a vigência de outra Constituição, carrega em si uma irritante actualidade com o chamado “Manuel Vicente”. Depois de o Ministério Público e o tribunal de primeira instância terem considerado que o antigo vice-presidente de Angola deveria ser julgado em Portugal, eis que, como que por intervenção da justiça divina, um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa decidiu em sentido contrário. Entre motivos formais, relacionados com leis e convenções, os desembargadores concluíram que o melhor era mesmo enviar tudo para Angola, até porque, em caso de condenação não era “difícil admitir que” Manuel Vicente encontraria “melhores condições de reinserção social” naquele país do que em Portugal. Em Angola, continuou a douta decisão, Vicente “disporá de melhor apoio para se recuperar, não em Portugal onde não dispõe de vida familiar, profissional ou social organizada”. Perante tão forte e audaz argumentação jurídica, o Ministério Público, obviamente guiado pelo tal princípio da legalidade – aquele que, só de vez em quando, dá jeito invocar – até desistiu de recorrer.
Em bom rigor, o argumento expendido é metade verdadeiro. Por um lado, é verdade que o consulado de José Eduardo dos Santos revelou uma excelente política de reinserção social para algumas figuras do regime. Regime esse que o actual Chefe do Estado, João Lourenço, parece querer substituir por outro, mais atento ao desvio da riqueza nacional do que à boa inserção social. Mas também é certo que, nos últimos anos, vários nomes da nomemklatura angolana, Manuel Vicente incluído, transferiram para Portugal milhões de euros, que foram aplicados na compra de imóveis, investimentos em empresas, etc. portanto, jamais se poderá dizer que uma eventual futura condenação deixaria Manuel Vicente sem qualquer tipo de apoio. Aliás, qualquer recluso neste País adoraria estar com a “falta de apoio” que Manuel Vicente tem em Portugal. Entretanto, Portugal e Angola reataram relações diplomáticas, as dívidas começaram a ser pagas e ambos os países assinaram 13 acordos de dinamização e cooperação. E a Justiça continuou independente.