SÁBADO

O bispo de Manuel Vicente

- Subdirecto­r Carlos Rodrigues Lima

CERTO DIA, AINDA O SENHOR

PRESIDENTE­DOCONSELHO, infelizmen­te, estava vivo, um padre de uma qualquer paróquia do País teve um acidente de automóvel, embatendo noutra viatura. Um diligente delegado do Ministério Público dirigiu-se ao local do sinistro e, ele próprio, tomou conta da ocorrência, lavrando o auto com a posição dos carros, medições das travagens, etc. Ao que parece, segundo o auto, a conclusão era clara: a responsabi­lidade foi do padre, que não respeitou o sinal de cedência de prioridade. O processo seguiu os seus trâmites, com o padre a ser acusado pelo Ministério Público, que lhe imputou a autoria do acidente. Mês e meio mais tarde, apesar das evidências, o juiz da comarca resolveu não pronunciar o sacerdote, classifica­ndo os indícios como insuficien­tes. O diligente procurador recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra. Um bom par de meses mais tarde (isto da lentidão da justiça não é de agora), padre e delegado encontrara­m-se num autocarro. Cumpriment­os iniciais feitos, e o cura da aldeia atira: “– Então o senhor doutor delegado não sabe o resultado da Relação? – Eu não, nem tenho qualquer interesse especial em saber.

– Pois fique sabendo que vai a julgamento daqui a dois dias e que vou ser absolvido!

– E como é que tem certeza disso, senhor abade?

– Olhe Senhor Doutor Delegado, sempre lhe digo uma coisa: no meu processo houve duas pessoas que cumpriram o seu dever e se portaram bem, o senhor ao acusar-me e eu agarrando-me ao senhor bispo de Coimbra!”

O processo baixou e com a decisão: dois votos a favor e um contra a decisão de não pronúncia.

O episódio relatado pelo antigo juiz conselheir­o José Marques Vidal (Casos de Tribunal – Homens e Magistrado­s, Quetzal 2003), ainda que ocorrido durante a vigência de outra Constituiç­ão, carrega em si uma irritante actualidad­e com o chamado “Manuel Vicente”. Depois de o Ministério Público e o tribunal de primeira instância terem considerad­o que o antigo vice-presidente de Angola deveria ser julgado em Portugal, eis que, como que por intervençã­o da justiça divina, um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa decidiu em sentido contrário. Entre motivos formais, relacionad­os com leis e convenções, os desembarga­dores concluíram que o melhor era mesmo enviar tudo para Angola, até porque, em caso de condenação não era “difícil admitir que” Manuel Vicente encontrari­a “melhores condições de reinserção social” naquele país do que em Portugal. Em Angola, continuou a douta decisão, Vicente “disporá de melhor apoio para se recuperar, não em Portugal onde não dispõe de vida familiar, profission­al ou social organizada”. Perante tão forte e audaz argumentaç­ão jurídica, o Ministério Público, obviamente guiado pelo tal princípio da legalidade – aquele que, só de vez em quando, dá jeito invocar – até desistiu de recorrer.

Em bom rigor, o argumento expendido é metade verdadeiro. Por um lado, é verdade que o consulado de José Eduardo dos Santos revelou uma excelente política de reinserção social para algumas figuras do regime. Regime esse que o actual Chefe do Estado, João Lourenço, parece querer substituir por outro, mais atento ao desvio da riqueza nacional do que à boa inserção social. Mas também é certo que, nos últimos anos, vários nomes da nomemklatu­ra angolana, Manuel Vicente incluído, transferir­am para Portugal milhões de euros, que foram aplicados na compra de imóveis, investimen­tos em empresas, etc. portanto, jamais se poderá dizer que uma eventual futura condenação deixaria Manuel Vicente sem qualquer tipo de apoio. Aliás, qualquer recluso neste País adoraria estar com a “falta de apoio” que Manuel Vicente tem em Portugal. Entretanto, Portugal e Angola reataram relações diplomátic­as, as dívidas começaram a ser pagas e ambos os países assinaram 13 acordos de dinamizaçã­o e cooperação. E a Justiça continuou independen­te.

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