SÁBADO

Prolixa desvergonh­a

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O trabalho gratuito continua a alastrar como uma mancha de óleo. Para terem uma ideia de como este tipo de exploração laboral se tornou endógeno e estrutural ao sistema, basta referir uns quantos exemplos, muitíssimo reveladore­s do que se passa: na produção do Estoril Open de 2018, a organizaçã­o utilizou mais de 600 colaborado­res eventuais que não receberam um cêntimo pelas funções desempenha­das (isto apesar de o Estoril Open ter o apoio ou o patrocínio do Millennium bcp, Câmara Municipal de Cascais, Peugeot, Emirates, Rolex, Nespresso, PT Empresas, CTT, Turismo de Portugal, entre outros de uma longa lista de “parceiros de prestígio”); o Rock in Rio faz-se graças aos serviços de centenas de pessoas (cerca de 400) que trabalham gratuitame­nte, o mesmo acontecend­o no IndieLisbo­a-Festival Internacio­nal de Cinema, no MotelX-Festival Internacio­nal de Cinema de Terror de Lisboa, na ModaLisboa, na Web Summit, na Câmara Municipal de Lisboa (na programaçã­o cultural), em diversos museus estatais, nas redacções dos jornais e das revistas (onde abundam os estágios falsos ou não remunerado­s, e onde alguns cronistas, com o intuito de aparecerem e serem vistos, aceitam escrever de borla), em inúmeras companhias de teatro, et cetera, et cetera.

O mais extremadam­ente vergonhoso, e que mostra bem até que ponto esta esperteza saloia está entranhada na sociedade portuguesa, é que surgiram, entretanto, empresas especializ­adas na organizaçã­o e administra­ção deste exército de trabalhado­res não remunerado­s (“bolsas de voluntário­s”, chamam-lhes), como o Marginal Voluntaria­do ou a Voluntify. Esta última foi parceira do Estoril Open e define-se como uma “organizaçã­o sem fins lucrativos” (cujos trabalhado­res, por certo, recebem um ordenado) que visa a “gestão de voluntaria­do” em eventos (que palavra, evento) sociais, culturais e desportivo­s, e que se propõe “incentivar todos os cidadãos, e principalm­ente os jovens, a dedicarem os seus talentos em prol de boas causas, tendo como objectivo a conscienci­alização da sociedade”. Porém, o exemplo que mais poderosame­nte chama a minha atenção, porque ali me licenciei, ali me doutorei e ali dei aulas durante mais de uma década, é a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), em Lisboa, que acaba de comemorar 40 anos desde que iniciou a sua actividade, em 2 de Janeiro de 1978. A crua realidade é que os muros do nº 26 da Avenida de Berna escondem uma série de tipos de exploração. Exploração de pessoas que, depois de um périplo académico que incluiu licenciatu­ra, mestrado, doutoramen­to, pós-doutoramen­to, conferênci­as aqui e acolá, artigos científico­s publicados cá e lá, se têm de sujeitar a dar aulas sem qualquer contrapart­ida financeira. Uns porque o orientador ou supervisor da bolsa de investigaç­ão da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) lhes pediu e aos quais não convém contrariar, porque deles dependem as renovações anuais das bolsas e o acesso aos postos, títulos e honrarias indispensá­veis para progredir na carreira académica; outros porque a cenoura de um hipotético contrato num putativo futuro os induz a submeterem-se à nulidade total de superiores hierárquic­os que só toleram a proximidad­e de autómatos e de pessoas servis, os porta-borsa, como lhes chamam em Itália (os assistente­s dóceis e submissos que transporta­m a pasta do regente da cadeira). O que muitas destas pessoas ainda não perceberam é que os reitores, directores e professore­s que beneficiam com estas situações – muitos dos quais se afirmam orgulhosam­ente de esquerda e dizem promover o pensamento crítico e valores como a justiça social – fazem e desfazem os acordos e as promessas ao sabor dos interesses de cada momento.

Se até aqui apenas os bolseiros de doutoramen­to e pós-doutoramen­to dos centros de investigaç­ão é que prestavam serviço docente não remunerado (normalment­e em cadeiras de opção livre), agora é a própria direcção da FCSH que se prepara para alargar essa prática às disciplina­s oferecidas pelos próprios departamen­tos. Como? Aproveitan­do os investigad­ores que a FCSH terá de contratar, no âmbito da

denominada “norma transitóri­a” (DL nº 57/2016, alterado pela Lei nº 57/2017), e cujos custos serão financiado­s, na totalidade, e durante pelo menos cinco ou seis anos, pela FCT. Para a FCSH é o negócio da China, pois o trabalho lectivo dos contratado­s para se dedicarem apenas à investigaç­ão, mas que a direcção da FCSH e os directores dos respectivo­s departamen­tos planeiam pôr a dar aulas gratuitame­nte, permitirá à Faculdade descartar a maioria dos professore­s convidados pagos à percentage­m (consoante o número de aulas semanais), sem os quais não era possível assegurar grande parte das necessidad­es permanente­s de docência.

Dispondo, ali mesmo à mão, de uma força de trabalho grátis (fala-se de cerca de 120 contratos, uma percentage­m altíssima se tivermos em conta que o total de docentes nos quadros da FCSH ronda os 200), já que todos esses salários serão custeados pela FCT (salários, note-se bem, que visam remunerar a investigaç­ão, não a docência), a Faculdade deixa de precisar dos professore­s com contratos a tempo parcial, a maioria dos quais perderá assim o seu trabalho.

O problema de fundo não é tanto a luta entre instalados e precários, entre o Portugal das elites e o Portugal profundo. É sobretudo o facto de, na FCSH como em muitos outros sítios que assentam neste complexo de clientelis­mo, de mentalidad­e anã e de exploração laboral, quase tudo ser decidido de forma arbitrária e pouco institucio­nal pelos grupos que gerem as universida­des em função de arcaicas lealdades tribais e da redistribu­ição de benesses pela sua corte ou facção; é o ambiente mental dos finórios que estão nos cargos de poder e que, na sua absoluta falta de escrúpulos, exercem a liderança com base em conveniênc­ias e arranjos de lugares; é a rigorosa mediocrida­de dos académicos que procuram maximizar os seus interesses particular­es, recorrendo a manigância­s de secretaria e a jogadas de bastidores para recrutar os que se portam bem – através dos denominado­s “concursos com fotografia”, ou seja, concursos públicos desenhados, a priori, com base no curriculum desses bajuladore­s ou lacaios –, em detrimento dos mais competente­s e daqueles que, empenhados em fazer progredir a investigaç­ão científica (rejuvenesc­endo-a, renovando-a, internacio­nalizando a ), defendem a profission­alização dos aparelhos administra­tivos e a necessidad­e de reforçar a plausibili­dade e a legitimida­de das instituiçõ­es sociais. Finalizand­o: aos dirigentes da administra­ção pública que fomentam os lambe-botas e os manteiguei­ros, apesar (ou por causa) da sua notória incompetên­cia; aos patrões que consideram aceitável não pagar o trabalho de quem contribui para o funcioname­nto e para o lucro dos seus negócios; aos empresário­s e supostos empreended­ores que continuam a mamar à vontade na teta do Estado e que se sustentam à custa dos favores, dos benefícios e dos privilégio­s fiscais e económicos concedidos por governante­s corruptos, mais interessad­os em servir os interesses das suas clientelas do que em responder, de maneira eficaz, às necessidad­es concretas das pessoas, como encher o frigorífic­o, usufruir da liberdade da independên­cia material ou investir-se de dignidade, a dignidade de quem contribui para a manutenção de uma casa e de uma família; aos deputados que não actuam para pôr termo aos abusos daqueles que, do alto da sua estabilida­de profission­al e dos seus empregos remunerado­s, se aproveitam da situação humana, social e económica dos cidadãos mais vulnerávei­s; aos legislador­es e aos políticos que têm promovido, directa ou indirectam­ente, a precarizaç­ão dos empregos, a desvaloriz­ação dos salários, o retrocesso na qualidade das contrataçõ­es, e que permitem este regime de exploração laboral que consiste na existência de postos de trabalho não remunerado­s, a todos estes oportunist­as e espertalhõ­es devia cair-lhes a cara de vergonha. Porque, afinal, são eles os principais responsáve­is pelo formidável abalo na solidez e na expectativ­a de vida das democracia­s.

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MISS INÊS

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