SÁBADO

OS RODÍZIOS QUE NÃO MATAM

- ÂNGELA MARQUES

Comumolhon­um livro e outro nas escadas, eu esperava por ela de coração cheio e estômago deserto. Aquilo não ia ser um jantar de Natal, mas eu, uma marginal que tinha andado por escadas secundária­s da nossa amizade, sentia-me mais em falta que um duende sem papel de embrulho na Lapónia. Enquanto esperava, ensaiava: tinha um ano de vida para lhe contar e um ano de vida para ouvir e, se tudo corresse bem, haveria tempo para tudo. Começámos bem, com aquele abraço. Ela não cobrou, eu não corei e então ouvimos o que o restaurant­e tinha para nos dizer: “Já conhecem o nosso novo conceito?” Quis dizer que sim mas não pude. Quis pedir-lhe para não me partir o coração mas ele já o tinha fatiado: “Deixámos de servir em regime de buffet, agora temos rodízio de sushi. Aqui está o vosso menu, têm direito a tudo.” Ri-me por dentro – é deliciosa esta ideia de termos direitos e deveres nos restaurant­es, não é? Metam amouse-bouche nisso. Dissemos que sim ao conceito e voltámos à vaca frita. “E então?”, disse ela. Só tive tempo de inspirar e expirar. “Aqui está o combinado de sushi e sashimi.” Agradeci o ponto morto e preparei-me para engatar a primeira. Ela: “Diz lá.” Ele: “Vão querer miso?” Eu querer queria, mas tinha aqui uma história

OUVIMOS O QUE AQUELE RESTAURANT­E TINHA PARA NOS DIZER: “JÁ CONHECEM O NOSSO NOVO CONCEITO?” QUIS DIZER QUE SIM, NÃO PUDE

para contar, meu amigo. “Então…” Gyosas para as duas. Juro, não quero exagerar como aquele rodízio exagerou, mas falámos aos soluços, rimos a espaços e só não chorámos porque, borrifando-se nas emoções, aquele restaurant­e tinha um espectácul­o de variedades de peixe para apresentar. Ficássemos engasgadas se quiséssemo­s, o conceito haveria de vencer-nos pelo cansaço. Dispensand­o as sobremesas com um rosnar, chegámos a duas conclusões: a primeira, belíssima, que passem os anos que passarem, nós sabemo-nos de cor e salteadas; a segunda, que os rodízios não são amigos da conversa. E assim inventámos um novo conceito: eu, ela e entregas em casa. Havemos de voltar àquele restaurant­e quando não tivermos nada para dizer uma à outra. Só para desmoer.

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