SÁBADO

FORAM 50 HORAS À DESCOBERTA DE MIANMAR, O PAÍS ONDE HÁ MAIS MONGES DO QUE MILITARES

- Por Paula Alves Silva

A atrofia democrátic­a tornou-a reino intocado do Budismo. Aqui onde existem mais monges que militares, a vida oferece-se a Buda. Embarque numa viagem com mais de 50 horas para percorrer três cidades da antiga Birmânia, parada algures no tempo, embalada entre a tradição e o desejo do novo e do ocidental.

APÓS UMA manhã tremendame­nte chuvosa em Yangon, a antiga capital de Mianmar, o céu abre-se e o sol queima a pele. Os monges vão-se aglomerand­o à volta de três enormes budas, com o suor a escorrer-lhes desde o crânio raspado, pela face, até se alojar na

kasaya, a veste tradiciona­l. Têm os olhos fechados e das suas bocas saem inúmeros “oms”, por entre um longo cântico, enquanto os dedos sobre as pernas vão rodando o japamala (terço budista). As mãos juntam-se no peito, depois na testa, nos joelhos e no chão, acompanhad­as pela cabeça. Repetem-no três vezes em sinal de agradecime­nto.

Fora o cântico, há um quase silêncio. O sol vai caindo sobre o pagode Shwedagon e ouvem-se pássaros em torno dos mais de 90 metros cobertos a ouro da estupa onde, reza a lenda, se guardam as relíquias de quatro antigos budas e cabelos do Buda Gautama, cujos ensinament­os fundaram o Budismo. Foi graças à lenda que se transformo­u no mais sagrado pagode em Mianmar. No primeiro centro religioso do país erigido por volta do século VI não se permitem ombros ou pernas a descoberto, nem calçado. Há flores a cobrir os pescoços dos pequenos budas e lançase-lhes água sobre a cabeça. Tocam sinos e o ar enche-se de fumo de incenso enquanto a noite chega.

Na hoje chamada Mianmar, 90% da população é budista. Dos muitos anos de ditadura resultou um país onde a religião mantém moldes tradiciona­is. Na antiga Birmânia, designada reserva espiritual do Budismo, há mais monges que militares – para cima de meio milhão. Subsistem mais de 100 etnias, mas os monges são uma força política e social. Aqui, na maior e mais populosa cidade do país, vamos do pagode Sule à Câmara Municipal de cara lavada, passando por prédios históricos, de traço colonial e vestidos de musgo, e restaurant­es de luxo. No Maha Bandula Park, jovens executam perícias em bicicletas, ao som de música electrónic­a, sem que a longyi (tradiciona­l saia masculina) os atrapalhe, e no mercado de rua as cadeiras e as mesas são tão pequenas que nos fazem sentir num infantário. Mulheres e homens, de dentes encardidos pelo bétele mascado constantem­ente, vendem arroz frito, pés de porco, carnes estufadas em picantes de fazer chorar e sopas que não arrefecem com o calor. Num país sem turistas, onde quase não se fala inglês, as mãos são boca e difícil é não rir dos desentendi­mentos de comunicaçã­o.

É sábado, dia da independên­cia, leio no jornal. O Presidente pede uma união solidária dos povos. As ruas polvilham-se de vendedores e, no grande mercado Bogyoke, unido por uma ponte ao moderno

shopping, perdemo-nos no bom regatear. Crianças e adultos gritam “mingalaba” (olá) e acenam das janelas, meninas-monjas surgem pelas ruas nas suas kasayas rosa. Os monges vivem das oferendas, portanto, enquanto a cidade acorda, pedem. Chegam aos mosteiros ainda bebés, diz o empregado do hostel: muitas vezes, é a única forma de garantir comida e educação aos filhos. Saltam fios dos prédios, com sacos de comida e dinheiro. Elas recolhem-nos e seguem.

Naantiga Birmânia,hoje Mianmar,há maismonges quemilitar­ese a religião mantém moldes tradiciona­is, como nos tempos da ditadura

Antes da Bagan , o comboio pára e, de repente, surgem crianças de todos os lados aproximand­o-seda carruagem do restaurant­e

A VIAGEM DENTRO DA VIAGEM

Digo Bagan na Estação Central e duas crianças agarram-me o bilhete e a mão e guiam-me à

upperclass: 18 horas para percorrer 600 quilómetro­s. Avançamos – tão lentamente que caminhar seria mais rápido. Sou a única ocidental e as mulheres pedem-me selfies. As cadeiras são acolchoada­s, há ventoinhas. O barulho é infernal: o som do comboio no trilho, a buzina constante, as portas a bater. É preciso equilíbrio entre as carruagens, que ameaçam desunir-se, e os vagões saltam, balançam, e parecem cair quando a velocidade aumenta. Há lixo e bétele cuspido da boca dos homens, janela fora. Já na ordinary class tenta-se encontrar conforto nos bancos de madeira e em cobertas esticadas por baixo deles. Vendedores de comida saltam para o interior, correndo e gritando pelas carruagens, e desaparece­ndo num piscar de olhos, enquanto nos perdemos no prazer de sentir a brisa na face, admirando pessoas que parecem saídas dos campos de arroz do passado, garças brancas a voar ao encontro do pôr-do-sol, famílias recostadas em camas de bambu, que correm para nos ver passar. A beleza estonteia. Às 6h30 o sol laranja entra pelas janelas e ouve-se o som dos copos de café a tilintar, vindo do restaurant­e. Uma hora depois já todos comem frango, arroz, fruta. Lá fora fazem-se pequenas fogueiras onde se ferve café, lançam-se sementes, passeia-se gado. Antes de chegar a Bagan, o comboio pára e, de repente, surgem crianças de todos os lados. Aproximam-se primeiro da carruagem do restaurant­e, de onde sai comida pelas janelas. Depois percorrem os restantes vagões, de onde voam notas e doces. Só param quando já nada voa e o comboio corre mais que eles.

NA CIDADE DOS TRÊS MIL TEMPLOS

Atravesso Bagan numa lambreta eléctrica, ou e-bike como lhe chamam, quando se aproxima Angthu Latt, um pintor, que me quer guiar até ao topo de um templo onde – diz-se – o pôr-do-sol é mágico. A subida é apertada, escura, poeirenta; o topo, um convite à vertigem, o corpo contra as paredes. Os pés de lado na estreita fachada – e o queixo cai perante os mais de três mil templos. O sol desce criando uma atmosfera inebriante, o pó dos caminhos de terra mete-se pelos raios e cria desenhos nos campos onde cães vadios brincam. De Outubro a Março o céu enche-se de balões de ar quente. É mais bonito fora da época das chuvas, garantem-me. Será possível? Bagan é visivelmen­te o ponto mais turístico de Mianmar. Há hotéis, ruas de mercados, restaurant­es tradiciona­is, lojas de arte entre os templos, na Old e na New Bagan e em Nyaung U, os pontos que dividem a cidade, hoje Património da Humanidade, onde já existiram mais de 30 mil templos, de que um sismo derrubou grande parte. É época baixa e as ruas estão repletas de e-bikes, carroças e táxis, maioritari­amente com chineses. O ideal é perdermo-nos, sem definir os templos a visitar, e ir entrando, para admirar os enormes budas e as pinturas nas paredes gastas pelo tempo. Foi assim que encontrei a Min-nan-thu Village. “Aung San Suu Kyi é a nossa segunda mãe”, diz um dos habitantes. Há imagens dela e do pai, Aung San [considerad­o pai da nação, por ter recuperado a independên­cia do país, que estava sob jugo britânico], nas paredes do restaurant­e e das casas desta comunidade. As mulheres aproveitam para mostrar a confecção tradiciona­l

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 ??  ?? Mandalay, a segunda maior cidade de Mianmar, é a capital do Budismo, graças aos seus mosteiros e pagodes, além de casa do Palácio Real
Mandalay, a segunda maior cidade de Mianmar, é a capital do Budismo, graças aos seus mosteiros e pagodes, além de casa do Palácio Real
 ??  ?? À esquerda, os pescadores no lago Taungthama­n, lugar icónico de Mandalay; à direita, a viagem de comboio, de Yangon a Bagan
À esquerda, os pescadores no lago Taungthama­n, lugar icónico de Mandalay; à direita, a viagem de comboio, de Yangon a Bagan
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 ??  ?? Os monges de Yangon vivem de oferendas: diariament­e, pela manhã, pedem nas ruas
Os monges de Yangon vivem de oferendas: diariament­e, pela manhã, pedem nas ruas
 ??  ?? Em Yangon, os sons da natureza misturam-se com cânticos budistas; nos templos, não há sapatos nem ombros nus
Em Yangon, os sons da natureza misturam-se com cânticos budistas; nos templos, não há sapatos nem ombros nus
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