SÁBADO

O VINHO DE MISSA

As regras vêm do Vaticano e são verificada­s por um padre. Só depois chega às igrejas. Fátima é o principal cliente desta bebida licorosa, produzida pelas Caves Primavera desde os anos 60.

- Por Beatriz Silva Pinto

Obedece a regras do Vaticano, é verificado por um padre e tem de ser o mais natural possível. É feito em Águeda

Há quem ainda acredite que o vinho que o padre bebe no altar, uma analogia ao sangue de Cristo, seja pouco mais do que um sumo de uva. Mas a crença popular está errada – ou, pelo menos, muito desactuali­zada. Desde os anos 60 que as Caves Primavera produzem vinho destinado à celebração da eucaristia e já há vários anos que a fórmula se estabilizo­u. O resultado final é um vinho licoroso, com 16% de volume alcoólico e com um leve aroma a frutos secos. “Acaba por ser um vinho do Porto com menos grau”, explica à SÁBADO o enólogo Antero Silvano. A sede das Caves Primavera, o produtor mais conhecido do designado vinho de missa, fica na cidade de Águeda (Aveiro). Chegam lá 17 toneladas de cachos de uvas (por ano) colhidos na Bairrada e de lá saem garrafas prontas a serem vendidas a várias dioceses espalhadas pelo País. No entanto, as diferenças entre o vinho de missa e o vinho de mesa sobressaem ainda antes da chegada às Caves, na escolha da matéria-prima.

Este licoroso especial é elaborado com castas dominantes da região da Mealhada, como a Maria Gomes (também denominada de Fernão Pires) e a Arinto, mas estas uvas ficam nas vinhas mais duas semanas do que o normal, sendo colhidas já muito maduras, para que se possa atingir a máxima concentraç­ão de açúcares possível, explica o enólogo. “A Maria Gomes, bem madura, dá um toque de moscatel e atinge quantidade­s elevadas de açúcar. Depois, a casprocess­o ta Arinto, que é mais ácida, dá-lhe um pouco de frescura.”

A adição de “um cheirinho de sulfuroso” para fazer uma ligeira desinfecçã­o é o único tratamento químico feito. Isto porque há regras a cumprir, ditadas pelo Vaticano (ver caixa), que exigem que o processo de produção da bebida seja o mais livre de químicos possível. É isso que justifica os 16% de graduação alcoólica, revela Antero Silvano, que trabalha nas Caves Primavera há mais de uma década. “É necessário que o produto final tenha entre 15 e 16 graus, para ser um produto estável. Porque o álcool funciona como anti-séptico, já que o vinho não leva mais nada. Assim, pode abrir-se uma garrafa e gastá-lo até à última gota sem se estragar.” O sabor doce é justificad­o pela fermentaçã­o “incompleta”. Enquanto o vinho de mesa fermenta a totalidade dos açúcares, o vinho de missa não. Para interrompe­r o de fermentaçã­o, e também para elevar o teor alcoólico, quando a densidade do mosto atinge um certo valor, é adicionada aguardente vínica fresca, destilada da mesma colheita. Depois, o vinho segue para um estágio prolongado em cascos, sem que lhe sejam adicionado­s os habituais produtos para a clarificaç­ão ou para evitar a precipitaç­ão. “Este vinho é estabiliza­do naturalmen­te. No casco, tem tempo necessário para precipitar o que tem a precipitar antes de ir para a garrafa”, conta o enólogo. Após quatro ou cinco anos, aquele vinho de uvas brancas que inicialmen­te tinha uma cor de amarelo-palha carregado, adquire uma cor de topázio definida.

De coloração pouco intensa

Para que um vinho seja adoptado pelas igrejas, e antes de ser colocado no mercado, é preciso que um padre acompanhe todos os trabalhos e produza um relatório, que é enviado à diocese local. É a Diocese de Aveiro que, a cada nova colheita, emite um documento que certifica o vinho das Caves Primavera como “próprio para a celebração do Santo Sacrifício da Eucaristia”. E as exigências não são poucas. É necessário que a coloração do vinho não seja muito intensa, para não manchar o sanguíneo, o pano que serve para limpar o cálice na missa, e a homogeneid­ade do produto, de ano para ano, é um factor decisivo. Para evitar as diferenças entre lotes, mistura-se o vinho novo com um já com um está-

O vinho para fins litúrgicos não pode ultrapassa­r os 18% de álcool. Qualquer pessoa pode comprar uma garrafa

A COLORAÇÃO DO VINHO NÃO PODE SER INTENSA, PARA NÃO MANCHAR O PANO DE LIMPAR O CÁLICE

gio longo. O vinho retorna aos cascos e, passado um ano ou dois, uma parte vai para engarrafar e a outra fica para “lutar” com o dos anos seguintes. Apesar de ser natural da Bairrada, a comerciali­zação deste vinho não se confina à região. Aliás, para lá do vinho de missa Primavera, a marca da casa, as caves produzem mais quatro marcas para diferentes locais, com rotulagens personaliz­adas encomendad­as pelo cliente: Altar Divino, Cova da Iria, Paramentar­ia de Fátima e Sé de Braga. Mas é apenas uma questão de marketing, porque apesar de o rótulo ser diferente, o conteúdo é o mesmo. Para Fátima, segue mais de um terço do vinho que é produzido, grande parte vendido na loja de artigos religiosos Paramentar­ia de Fátima. A região do Minho é a segunda mais importante para a empresa, visto que são as caves que produzem o vinho oficial da arquidioce­se de Braga. Mas a bebida também chega às regiões de Lisboa, Beira Alta, Aveiro e Porto. Em 2018, até à data, a empresa facturou cerca de 2 milhões e 190 mil euros, provindo 3,2% deste valor das vendas do vinho de missa. Até ao fim de Novembro foram vendidas cerca de 27 mil garrafas deste vinho licoroso e aproximada­mente 10% das vendas são para o mercado externo, sendo Angola, Timor Leste e São Tomé e Príncipe os principais clientes. Lucénio Saraiva, responsáve­l pela comunicaçã­o da empresa, explica que “o vinho de missa é uma pequena parte do negócio, mas é uma parte importante”. E acrescenta: “Não tem um impacto enorme, como têm os nossos espumantes, mas é um nicho da nossa facturação muito interessan­te. É um produto que tem uma boa margem de lucro e que dá muita notoriedad­e à empresa.”

Lucénio e Maria Gabriel, também membro do departamen­to de comunicaçã­o, são primos e são a terceira geração da família que fundou as Caves Primavera há quase 75 anos. Os irmãos Vital e Lucénio Rodrigues de Almeida foram os fundadores. Hoje, com cerca de 30 trabalhado­res, com uma área de 10 mil m2 e com equipament­os tecnologic­amente avançados, as Caves ainda se identifica­m como uma empresa familiar. Mas como é que a forte tradição no vinho de missa se iniciou? Antero Silvano resume: “Tudo começou com um padre que desafiou o sobrinho, que era acólito [Vital Rodrigues de Almeida], a começar a produzir vinho de missa.” Acontece que o acólito era um dos fundadores das Caves e, apesar de na altura não ser o único produtor de vinho de missa na região – “há uns anos, éramos três”, adianta o enólogo –, foi o único que sobreviveu até aos dias de hoje.

Lucénio e Maria Gabriel não conhecem outro produtor ao nível nacional – as marcas mais antigas foram desaparece­ndo com o tempo. No entanto, em 2014, a Adega Vitiviníco­la do Pico lançou o Lajido, um vinho destinado a ser utilizado na celebração eucarístic­a nas igrejas açorianas e aprovado pelo Bispo de Angra.

O impacto da visita do Papa

Nem só no altar se bebe este vinho. Antero Silvano assegura que “há muitas pessoas que o compram por curiosidad­e, para provar”, principalm­ente através das lojas de artigos religiosos, como é o caso da Paramentar­ia de Fátima. “É um vinho muito agradável. Não só para os sacerdotes, mas também para ser consumido fora da missa.” Curiosamen­te, a visita do Papa Francisco em 2017 teve um efeito positivo sobre as vendas de vinho de missa. Segundo dados fornecidos pela produtora, quando se comparam os meses de Abril e Maio de 2016 com o período homólogo de 2017, observa-se uma subida nas vendas de 35%. Já quando se compara este último período com o homólogo de 2018, verifica-se uma descida de 26%. O motivo, crê-se, foi mesmo a venda ao público na região de Fátima. Há quem o compre como recordação, mas o enólogo desafia à prova e dá uma dica útil: “É óptimo para acompanhar umas castanhinh­as.”

“ESTE VINHO ÉUM PRODUTO QUE TEM BOA MARGEM DE LUCRO E DÁ NOTORIEDAD­EÀ EMPRESA”

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Existem quatro marcas personaliz­adas para o cliente: Altar Divino, Cova da Iria, Paramentar­ia de Fátima e Sé de Braga. Mas o vinho é o mesmo
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Antero Silvano explica que o sabor doce do vinho se deve à fermentaçã­o “incompleta”. “É óptimo para acompanhar umas castanhinh­as”

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