SÁBADO

A INFÂNCIA, O SPORTING...

...a família e os doentes que não esquece. Eduardo Barroso reformou-se após 2 mil cirurgias e fala de tudo

- Por Susana Lúcio

Eduardo Barroso deixou de fumar há três anos, mas ainda há corta-charutos a decorar a sua casa, em Lisboa. Foi lá que recebeu a SÁBADO ,a3deDezemb­ro, no primeiro dia de trabalho a tempo inteiro no Centro Clínico Champalima­ud. Ao fim de 45 anos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), escreveu o livro Sobreviver, editado pela Matéria-Prima. “É sobre o orgulho e o prazer de ser médico.”

Esteve nos primórdios do SNS no serviço médico na periferia, em 1975. O que encontrou?

Éramos um grupo de médicos entusiasta­s e fomos para o Alentejo profundo. Auscultámo­s senhoras que nunca se tinham despido à frente de um médico. Joguei no Sporting de Cuba e ganhámos uma taça distrital.

Mas houve problemas porque fomos para uma zona do PCP.

O seu pai era médico, mas sempre quis ser cirurgião. Porquê?

Não sei. Ele tinha um profundo desprezo pelos cirurgiões, dizia que receitava aspirinas, antibiótic­os e cirurgiões. Ficou desiludido por ter escolhido essa especialid­ade, sendo eu um dos melhores do curso. A minha mãe contava que eu abria os bonecos da minha irmã. Achava que os cirurgiões resolviam problemas.

Que memórias tem da infância?

As minhas memórias são da escola: o Lar da Criança. Lembro-me mais do que se passava lá do que o que se passava em casa. O meu pai tinha ido fazer o serviço médico para Goa quando eu tinha 1 ano e só regressou quando foi a invasão, em 1961. Só o conheci aos 11 anos porque fui passar umas férias grandes à Índia.

Ele não vinha a Lisboa?

Não, nunca percebi isso. É evidente que o meu pai se separou da minha mãe e refez a vida dele. Quando regressou, os meus pais separaram-se de vez e o meu pai casou-se com uma senhora indiana.

Tem boas memórias do Lar da Criança?

O que eu adorava a escola, os amigos que fiz para a vida. Fui para lá com 16 meses e foi aí que conheci o Marcelo Rebelo de Sousa. A Bertinha [directora da escola] foi uma segunda mãe. O Marcelo e eu tivemos de repetir a quarta classe porque não tínhamos 10 anos para fazer o exame e o pai dele, que era subsecretá­rio da Educação, não aceitou abrir uma excepção. Mas abençoada repetição porque nos uniu para a vida.

Era uma criança traquina?

Ainda guardo um relatório da Bertinha e é verdade o que escreveu: não gostava de perder e tinha caracterís­ticas de líder. Mas preferi ser o tesoureiro da casa do Marcelo – os alunos eram organizado­s em casas para incentivar a competição – do que ser presidente. Não concebia competir contra o meu melhor amigo.

E a relação com a sua mãe?

A minha mãe aguentou tudo. Era engenheira química na Covina – Companhia Vidreira Nacional, em Santa Iria da Azóia, levantava-se cedo e

“Asminhas memóriassã­o da escola: o Lar da Criança. Lembro-me mais do que se passava lá do que em casa”

apanhava a camioneta da empresa nos Restaurado­res. Depois do trabalho ia fazer ginástica para o Sporting e foi campeã nacional com 40 anos. Fui criado pela Mécia, a ama que ia lá para casa de manhã antes de irmos para a escola e que nos recebia à tarde. Quando a mãe chegava, eu já estava a dormir.

Vem daí a sua ligação ao Sporting?

Antes de ir para a Índia, o meu pai fez-me sócio quando nasci. A minha mãe foi porta-estandarte da ginástica quando foi inaugurado o estádio de Alvalade, em 1956. O Sporting está entranhado em mim.

Jogou futebol no Sporting?

Não. Fiz parte da selecção universitá­ria e tive um convite para jogar no Oriental, que estava na primeira divisão, e na Académica de Coimbra. Também jogava râguebi, mas estava longe de ser o melhor. Havia uma tradição de o curso de Medicina ser treinado por jogadores do Sporting. Fui treinado pelo Ernesto, pelo Fernando Peres e pelo Valente. Antes de um Portugal-México, a selecção universitá­ria defrontou a selecção nacional de juniores, treinada por José Maria Pedroto. No fim, perguntou-me se eu queria jogar futebol a sério.

Porque não aceitou?

O meu pai cobriu a oferta, disse que se aceitasse iria abandalhar o curso.

Tinha um telefone que só funcionava pondo moedas. Teve uma educação severa?

Era mais tesura. O pai era muito irregular nas suas contribuiç­ões e a mãe teve de aguentar tudo sozinha. No telefone lá de casa, marcava-se o número com o disco e quando atendiam do outro lado carregava-se e caía uma moeda de cinco tostões no mealheiro. Foi difícil. A minha irmã foi aos 15 anos para a melhor escola de dança da Europa, em Cannes. Eu ainda a fui visitar quando ela foi bailarina em Estrasburg­o. Depois foi primeira-bailarina na Gulbenkian.

O meu irmão fugiu do País com 18 anos. Lembro-me de ir visitá-lo e termos de fazer refeições de cuscuz porque havia pouco dinheiro. Cheguei a vender jornais em Paris com ele. Em Bruxelas, ele servia na cantina da Universida­de Livre e punha dois bifes no meu prato quando eu passava o tabuleiro.

O seu pai acompanhou o seu percurso académico?

O pai aparecia nas horas mais espantosas, como no exame de Anatomia. Não fazia ideia de que ele estava no anfiteatro, tive 18 e ele disse-me com os olhos marejados: “Agora o teu curso vai ser um passeio.” Deu-me cinco contos [hoje seriam 1.600 euros] – devia ter ganho no casino na véspera.

O seu pai era jogador?

Depois das consultas, o último doente levava o meu pai ao casino. O meu avô também jogava bridge e ia ao casino. Também gosto, tanto que há 20 anos me proibi de voltar a entrar num casino.

O meu pai ligava-me às 2h da manhã para ir ter com ele, dizia que não se sentia bem. Eu ia lá e ele queria era conversar. Naquele dia, foi a empregada que ligou. “Afinal, és um gajo porreiro”, disse-me. Estava a fazer um enfarte do miocárdio, entrou em paragem cardíaca e eu reanimei-o, não sabia que ele ia ficar em coma vegetativo. Ficou ali quatro meses sem esperança nenhuma de se despedir dos filhos. Enquanto médico nunca pratiquei eutanásia, como filho cheguei a pedir aos meus colegas que suspendess­em o suporte de vida ao meu pai e fui criticado. Mais tarde foi a minha mãe, com uma hemorragia cerebral. Acho que a eutanásia deve ser discutida em termos afectivo-científico­s.

Como surgiu o Centro Hepato-Bilio-Pancreátic­o e Transplant­ação do Hospital Curry Cabral?

Em meados de 80 achei que uma unidade que tratasse das doenças do

Também visitou o seu irmão em Paris em Maio de 68. Repensou a questão da eutanásia com a morte dos seus pais.

fígado tinha de oferecer o transplant­e. Fazer transplant­e era estar disponível 24 horas por dia, 365 dias por ano. Lembro-me de vir do Algarve, onde estava a passar um fim-de-semana, fazer um transplant­e porque não havia quem o fizesse. Cheguei a vir da Madeira a pagar do meu bolso o bilhete de avião. Hoje já não precisam de mim, temos sete cirurgiões e já fizemos mais de 2.100.

Antes do primeiro transplant­e do fígado treinaram em porcos.

Eu fiz muitos transplant­es em porcos em Cambridge. Fui para lá quando vivia bem, tinha um Alfa Romeo Giulietta verde que tive de vender para ir aprender. Nasceu-me lá um filho. Fui convidado a ficar, mas tinha prometido ao meu mestre, João Pena [director do Serviço de Cirurgia Geral], que voltava e fizemos o primeiro transplant­e programado em 1992.

Mas e os porcos…

Em Cambridge, tinha de pagar os porcos. Cada transplant­e eram 250 libras e quando me vim embora devia 2.500 libras, uma fortuna. O professor Roy Calne [pioneiro na transplant­ação de órgãos] tinha ido lá a casa jantar, sabia que vivíamos com dificuldad­es e ofereceu os porcos.

E em Portugal?

O Dr. João Pena e eu construímo­s um biotério com pocilgas no Curry Cabral. Fomos buscar material cirúrgico velho e fomos comprar os porcos. Estraguei a suspensão do meu carro novo para chegar às pocilgas, em Torres Novas. Treinava com uma equipa aos sábados das 9h às 21h.

Deram nomes aos porcos.

O primeiro foi Aníbal, que deu o fígado a um porco que devia começar por B. Seria o nome da ministra da Saúde [Leonor Beleza], mas pensámos que poderia ser mal interpre-

“Cheguei a vir da Madeira a pagar do meu bolso o bilhete de avião para fazer um transplant­e” “Em Cambridge tinha de pagar os porcos. Cada transplant­e eram 250 libras”

Escreve no livro que sente sauda- “Tenho esperança de que a justiça prove que Bruno de Carvalho não teve nada a ver com aquilo” “Ao fim de 48 horas o fígado deixou de funcionar, não conseguimo­s outro e o doente morreu. Chamava-se Mário” O seu salário também foi alvo de polémica.

tado e chamámo-la Brigitte. Mas houve o Mário, de Mário Soares, e o Guterres. A análise do sangue dos porcos ia para o laboratóri­o e na primeira vez recebemos um telefonema: “Isto é incompatív­el com a vida. O que se passa com este doente?!” Não tinha avisado que era um porco.

Quis desistir. Porquê?

Começámos o programa em condições inacreditá­veis: o bloco operatório era emprestado pela ortopedia, tínhamos de levar o material todo duas horas antes da cirurgia e os doentes tinham de ir de ambulância do bloco para os cuidados intensivos porque era noutro edifício. Os dois primeiros transplant­es foram bem-sucedidos, os três seguintes falharam, sendo que o último tinha corrido muito bem. O Dr. João Pena e eu até fomos jantar à Portugália todos contentes. Não tínhamos gasto uma unidade de sangue e o doente estava óptimo no dia seguinte. Pensámos: “Caramba, demos a volta a isto.” Mas ao fim de 48 horas o fígado deixou de funcionar, não conseguimo­s outro a tempo e o doente morreu. Era um jovem, chamava-se Mário. Eu fui muito abaixo. Mas o Dr. Pena não deixou que desistisse e os 20 seguintes correram bem.

Ainda vai fazer transplant­es?

Essa faceta da minha vida acabou. A transplant­ação de órgãos só deve ser feita em hospitais públicos. Fiz o transplant­e 2.000 e encerrei. O que não acabou para mim foi o tratamento do cancro do fígado e do pâncreas, que na Fundação Champalima­ud terá a vertente da investigaç­ão.

des das urgências do Hospital de São José. Como era na altura?

O banco de São José era a mais fantástica escola de cirurgia que havia no País. Fazíamos muitas operações e chegávamos cedo a posições de responsabi­lidades. Cheguei a operar 13 doentes num dia. Ia para o banco com prazer, o meu era o do Dr. Câmara Pestana. Chegávamos às 13h de terça-feira, saíamos às 13h de quarta-feira e eu ainda ia ajudá-lo nas operações privadas para a Clínica da Reboleira. Só chegava a casa às 21h. E não era pago.

Estava de serviço na noite da revolução de Abril.

Estava a fazer urgências na Clínica de Santa Cruz e às 3h da manhã apareceu um homem a precisar de uns 150 pontos na cabeça. Eu ainda não era cirurgião, coloquei compressas e chamou-se o cirurgião. Mas ninguém atendia o telefone e, como tinha experiênci­a, comecei a coser. O homem dizia que tinha ido contra um tanque na Av. Defensores de Chaves e eu pensei que ele devia ter bebido um copo a mais. Só ao fim de algumas horas é que soube. O meu primo João Soares já me tinha dito que algo iria acontecer.

Sentiu-se cirurgião a sério noutra data importante.

Fiz a minha primeira hérnia estrangula­da no dia 11 de Março de 1975. Estava no São José com o meu mestre Câmara Pestana e os médicos não chegavam. Apareceu uma hérnia, ele disse-me para ir fazê-la, mas eu ainda não tinha feito nenhuma sozinho. “Vai lá, que eu já lá vou ter.” Já o primeiro transplant­e por cirrose esteve ligado a um Sporting-Benfica.

Um derby?

Eu estava particular­mente nervoso e havia uma tensão grande no bloco quando entra o enfermeiro-chefe: “Sr. Dr. o seu Sporting já está a ganhar 1-0 com golo de Balakov.” Comentei: “Só dizem isto para me animar.” Mas aos 12 minutos, o Cherbakov marcou o 2-0. O transplant­e correu bem, a Maria Mota tem hoje 86 anos.

Gostaria de ser presidente do Sporting?

Não. Uma vez, estava eu no Donos da

Bola, e o meu tio Mário Soares perguntou-me se eu não tinha ambição política. “Não queres ser presidente de câmara?” Eu disse que o que queria ser era presidente do Sporting. O que eu fui dizer, já nem me deixou acabar a sobremesa. Ele detestava o mundo do futebol.

Ainda acredita que Bruno de Carvalho não esteve envolvido na invasão a Alcochete?

Claro que acredito e tenho a esperança de que a justiça prove que ele não teve nada a ver com aquilo. Eu não o conhecia quando chegou à minha casa às 19h e saiu às 4h da manhã com o seu candidato à assembleia-geral. Mas acho que a maneira como ele reagiu à invasão de Alcochete foi inadmissív­el. Se ele tem dito que a invasão tinha sido algo inacreditá­vel, que não tinha nada a ver com aquilo, mas que se demitia por ser o principal responsáve­l do clube e deixasse os sócios decidirem se queriam que continuass­e ou não, talvez hoje ainda fosse presidente do Sporting.

Isso foi uma vergonha. Foi em Agosto de 2017 que apareci na capa do

Correio da Manhã. Aqueles 24 mil euros brutos foi o valor que ganhei em Novembro de 2016, porque em Outubro tínhamos batido o recorde do número de transplant­es. Não recebo incentivos à transplant­ação, são alternativ­as de pagamento. Um incentivo é para fazer mais e o que se pretendia era uma forma de pagar a nossa disponibil­idade para fazermos todos os transplant­es necessário­s. Ninguém no nosso serviço fazia transplant­es e ganhava em horas extraordin­árias, porque ganharia muito mais. Foi uma injustiça.

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 ??  ?? Eduardo Barroso fotografad­o na sala da sua casa, em Lisboa, no dia 3 de Dezembro
Eduardo Barroso fotografad­o na sala da sua casa, em Lisboa, no dia 3 de Dezembro
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Eduardo Barroso começou este mês a trabalhar no Centro Clínico Champalima­ud
 ??  ?? Eduardo Barroso, à direita, com os irmãos Mário e Graça, no Natal de 1954
Eduardo Barroso, à direita, com os irmãos Mário e Graça, no Natal de 1954

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