SÁBADO

Cenas de São Bento passadas a BD por Vasco Gargalo

Dou-te a minha senha, tiras a minha falta, duplico o subsídio, ai apanharam-me!, demito-me – mas só em faz de conta. Tu estás bem, eu também estou bem, todo o mundo aqui ‘tá bem. Qualquer semelhança com a realidade não é coincidênc­ia.

- Ilustraçõe­s Vasco Gargalo Texto Maria Henrique Espada

Professor, faltar e marcar presença é uma coisa extremamen­te horrível, não é? –É.

– Portanto, devia ser proibido. – Exacto.

– Mas eu podia fazê-lo?

– Podia.

– E o que é que me acontecia? – Nada.

– Mas estava a ir contra a lei? – Estava.

– E como é que a lei me punia? – De maneira nenhuma.

– Isto não é um bocadinho incoerente?

– Chiuu! Pode-se fazer. Só que é proibido. Mas pode-se fazer. O que é que acontece a quem faz? Nada! Mas é proibido. Mas pode-se fazer. O diálogo acima foi adaptado de uma rábula dos Gato Fedorento que pretendia ironizar com a incoerênci­a de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o aborto, o proibido que se podia fazer. Nas últimas semanas, a incoerênci­a das coisas proibidas que na Assembleia se podem fazer (e continuar a fazer) atingiu de vez o nível humorístic­o. Já só se ilustra com um cartoon. A imagem ao lado não é ficção – ainda que pareça. Feliciano Barreiras Duarte (PSD) saiu mesmo do parlamento a correr, e ainda assim conseguiu votar o orçamento, já não estando lá. Mão amiga (a de Mercês Borges) providenci­ou. A deputada Emília Cerqueira (PSD) marcou presença ao colega José Silvano, e confessou depois que não foi feito único, portanto “quem de vós nunca partilhou uma password?” que atire a primeira pedra (que se saiba não ocorreu apedrejame­nto, nem em sentido politicame­nte figurado). Carlos César, líder parlamenta­r do PS, prega a ética, garantindo que se os seus deputados se portassem assim já não teriam ali lugar, mas também ele recebia (recebe?) os 500 euros semanais que a AR lhe dá para voar até Ponta Delgada e depois ainda ia (vai?) – pelo seu pé, que se voava não sabemos – levantar aos CTT o subsídio de mobilidade. Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, não vê que ele tenha infringido lei nenhuma. Quiçá, mas mesmo assim há aqui qualquer outra coisa que parece ter sido violada.

Ascenso Simões fez um striptease salarial e mostrou 5.614,55 euros (dos quais 1.920,72 não são do salário base, mas de subsídios variados e variáveis). José Magalhães tinha já escrito uma inside story a escancarar a possibilid­ade destas manobras e ainda de mais algumas, mas o livro terá sido considerad­o pornográfi­co e pelos vistos ninguém o quis ler.

Teve ainda a sorte de não lhe terem chamado bufo. E Isabel Moreira? Foi apenas apanhada a pintar as unhas no plenário, na cena mais púdica e recatada deste enredo: inconvenie­nte, mas houve ofensas mais gravosas à decência republican­a. É proibido e fez-se. José Silvano, o agente Smith da Matrix parlamenta­r, que marca presença em Lisboa estando em Vila Real ou em Santarém, não está sozinho. Duarte Marques (PSD) estava no Porto e ligou-se em Lisboa, Matos Rosa (PSD), em manobra ainda mais arriscada, marcou presença cá tendo os pés em Cabo Verde. E o que é que aconteceu? A Silvano e Feliciano, ao que consta, nada. Mercês Borges, que deixou o casaco preto a marcar o lugar onde Feliciano não estava, demitiu-se dos cargos em comissões parlamenta­res, que pelos vistos já não servia para isso. Mas continua deputada – que para isso ainda serve. Tem isso em comum, aliás, com Feliciano, que também não servia para secretário-geral do PSD (irregulari­dades no currículo), e demitiu-se, mas à moda de Mercês – ainda serve para deputado. E no lugar onde estava, o de secretário-geral, está agora Silvano, o faltoso. É quase poético.

Nem ocorre aliás maneira de alguém não servir para deputado. Fernando Rocha Andrade (PS) demitiu-se de secretário de Estado – não servia, depois de ser constituíd­o arguido no Galpgate. Em deputado ficou óptimo. É esse o costume, aliás, e não só nas faltas: tudo se encaixa. Em duas legislatur­as, e em 52 vezes em que teve de se pronunciar, a Subcomissã­o de Ética nunca encontrou uma única incompatib­ilidade ou impediment­o. Está tudo bem. E quanto às deputadas Mercês e Emília, o líder parlamenta­r do PSD, Fernando Negrão, que mandou calar César por não ter legitimida­de para arvorar santidade, enviou o caso para o conselho de jurisdição do partido, onde por sua vez, estava... Emília Cerqueira, que se viu forçada a pedir escusa, banhada, finalmente, em ética. Mas provavelme­nte só porque a comunicaçã­o social estava a ver e desta vez a deputada sabia que estava. Citemos Emília: “Agora são todos umas

virgens ofendidas numa terra onde não há virgens.” E já nem ilusões. Além da duplicação de apoios aos deputados eleitos pelas ilhas (César está bem acompanhad­o), há ainda o truque de dar uma morada na terra, mesmo quando se vive em Lisboa: Matos Rosa (Portalegre); Clara Marques Mendes (Fafe); Sónia Fertuzinho­s (Guimarães); Duarte Pacheco (Sobral de Monte Agraço), Elza Pais (Mangualde), Heitor Sousa (Leiria), Sandra Cunha (Sesimbra)... Estes foram os “apanhados” pela comunicaçã­o social, e alguns corrigiram. Azar, precipitad­os: afinal não era preciso, um parecer jurídico da AR veio dizer que está tudo bem e é legal. Já o TdC não foi nessa conversa e criticou “dados desactuali­zados”, inclusive a morada, e até o risco de fraude fiscal nos subsídios. Também implicou com o facto de os deputados das ilhas nem terem de fazer a viagem para receber. Ou mostrar papel algum, um Simplex do vazio. Mas tudo se resolverá: Ferro Rodrigues admitiu que estes casos de “alguns (poucos) deputados põem em causa o prestígio do parlamento” e, rufam os tambores, criou-se um grupo de trabalho para mudar as regras. Há ainda o caso dos seguros de saúde, enterneced­or na sua ingenuidad­e infantil: os deputados da Assembleia da República aprovaram em 2007 uma lei que proíbe instituiçõ­es públicas de pagarem seguros privados. Aprovaram, mas nunca valeu em São Bento. Lei? Aprovada pelos deputados? O seguro ficou. Disse agora o Tribunal de Contas, em auditoria às contas de 2017, que “viola a lei”. Que os deputados aprovaram. Há 11 anos. Escândalo e reacção: morre já em Janeiro o seguro (dizem), quanto à honra, feneceu antes, e foi assassinad­a.

Os jornalista­s expuseram fraudes e faltas (isto não se soube por súbito tomar de consciênci­a própria), mas naturalmen­te que neste processo de envergonha­mento em curso da Assembleia da República há muita gente honesta, que trabalha e não merece ser confundida ali com o desavergon­hado do vizinho de bancada. Há inocentes. Há. Mas estiveram em silêncio. Cubram-se portanto todos.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal