Uma semana sem tocar em plástico... Ou pelo menos a tentar
NÃO PUDE FAZER SUMO DE LARANJA. OPTEI POR CHÁ – PRECISEI DE UM PÚCARO DE METAL E UM BULE DE VIDRO
Três farmacêuticas olhavam-me num misto de horror e incompreensão. Estavam de sobrolho franzido e de boca aberta. Tinha um pedido específico. Queria um champô que fosse sólido (como um sabonete, mas para o cabelo) e que viesse embalado em cartão. “O meu objectivo é não consumir plástico”, acrescentei. Uma delas respondeu: “Acho que isso não existe.”
Foram duros, os dias de rejeição do plástico. Quilómetros percorridos a caminhar, bolhas nos pés, indecisões de guarda-roupa, horas passadas em lojas de produtos naturais e debates com consumidores de plástico. Por um bom motivo: afinal 80% dos plásticos ficam a flutuar nos oceanos. São entre oito e 12 milhões de toneladas por ano, números recordados no passado dia 4 de Dezembro, por Maria Fernanda Espinosa, presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas, na Cimeira Ocean World. Em Portugal a luta ao material começou com a taxa aplicada aos sacos de plástico leves. Por minuto, são usados cerca de um milhão de sacos deste tipo, adianta a Agência Portuguesa do Ambiente. São usados durante cerca de 25 minutos mas podem demorar 300 anos a degradarem-se em aterros ou no ambiente. A guerra ao plástico vai para lá de arranjar um saco de pano. As primeiras horas da manhã do primeiro dia da experiência começaram com desânimo quando percebi que o colchão onde dormia, os interruptores de casa, o puxador do frigorífico e candeeiros eram feitos (parcial ou totalmente) deste material. Ao pequeno-almoço tinha laranjas para um sumo mas mal olhei para o espremedor, percebi que era um objecto proibido. Acabei por comer a laranja, com a ajuda da única faca de cabo de madeira que tinha. Servi, ainda, uma fatia de pão com doce (em frasco vidro) em substituição da manteiga. Torci o nariz à embala-
gem de leite (mistura de materiais, plástico incluído) – e optei por fazer chá. Precisei de um púcaro de metal, folhas de lúcia-lima e um bule de vidro e cortiça. Missão cumprida. O mesmo não se pode dizer acerca das horas que se seguiram.
Microesferas pelo ralo
Numa casa de produtos naturais, uma funcionária encolhia os ombros: “Só temos mesmo esses sabonetes sólidos [em invólucro de plástico]. O mercado ainda se está a adaptar…” Rematou com um sorriso. Acabei por encontrar o tal champô sólido na loja
online Pegada Verde. “Um saco de plástico pode não ser necessário para a nossa vida, mas um champô ou um desodorizante já é. A cosmética sólida tem gerado muitos comentários positivos”, confirma Marta Silva, da loja de produtos ecológicos. Criada em 2009, a loja deu os primeiros passos com a ajuda de marcas como a Lunette (de copos menstruais, para uma menstruação sustentável, sem plástico). Hoje têm 1.500 produtos. “A nossa grande luta é contra os plásticos de utilização única. Por isso, só disponibilizamos os que podem ser reutilizados.” O champô da francesa Lamazuna vinha em caixa de cartão (biodegradável). É preciso boa dose de água e paciência para fazer espuma, quanto ao desodorizante, também em sabonete, basta passar na pele húmida, tal e qual um roll-on. Têm aroma leve e agradável. As substituições continuaram: a escova de dentes tradicional deu lugar à de bambu e o sabonete substituiu o gel de duche. Mas, no que toca aos produtos de casa de banho, a questão vai para lá da embalagem: muitos contêm microesferas (de plástico, disfarçadas por nomes estranhos como polietileno ou polipropileno) que correm com a água e vão parar aos mares. Foi em Janeiro de 2018 que o Reino Unido baniu as microesferas em produtos como o gel de duche. “Apresentámos uma proposta em Portugal em Novembro do ano passado – queremos dar cinco anos para as marcas se adaptarem”, explica Carmen Lima, da Quercus. Ainda não avançou porque falta resposta do Ministério do Ambiente: “Até ao fim do ano vamos apresentar directamente ao Ministério da Economia.” Com as portas do guarda-roupa escancaradas observei cabides e gavetas. Analisei as etiquetas: o poliéster (na maioria das vezes sinónimo de plástico) parecia estar em quase todas as peças. Acabei por optar por calças de ganga e T-shirt 100% algodão e uma camisola de lã. Já os sapatos foi mais complicado – não tinham etiqueta. Optei por uns sapatos de pele e sola de madeira.
A questão da roupa é mais pertinente do que se possa imaginar. É que mais de um terço do plástico que chega ao mar provém da lavagem de roupa, lembra o relatório publicado em 2017 pela União Internacional para a Conservação da Natureza. As microfibras passam pela drenagem da máquina e, eventualmente, vão parar aos ma-
O CHAMPÔ SÓLIDO, EM SABONETE, EXIGE ALGUMA PACIÊNCIA: É PRECISO BOA DOSE DE ÁGUA PARA FAZER ESPUMA
Do lado esquerdo, o plástico que usava: da água, do arroz, iogurte, refrigerantes, do gel de banho e champô ou do detergente para a loiça – e ainda as cápsulas de café
Do lado direito, os novos objectos: frascos de vidro para café, chá, risoto, iogurte ou bolachas. E os sabonetes de champô e desodorizante (em baixo) e para lavar a loiça (em cima) ou o saco de pano
res. É no livro Viver Sem Plástico que o autor Will McCallum – responsável pelos Oceanos da Green Peace Reino Unido – apresenta os factos e as alternativas: utilizar roupa em segunda mão ou, quando comprada, optar por materiais naturais como a lã, o algodão ou a seda. Mais: evitar roupa felpuda e o tecido polar – um casaco deste tipo pode libertar 250 mil microfibras.
Plástico por todo o lado
O microplástico contamina os mares e os animais. Os pequenos vestígios já foram encontrados em peixes e mexilhões na Costa Vicentina e Algarve: “É de cor azul. Pode eventualmente ser de garrafas de plástico, redes de pesca”, explica a professora e investigadora Maria João Bebianno, do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) da Universidade do Algarve. O próximo passo é saber a proveniência dos detritos. Dispensei a camisola polar, vesti o sobretudo de lã. Não podia ir de carro nem de transportes públicos para o trabalho – acabei por fazer os quatro quilómetros de percurso a pé. Apreciei as cadeiras das esplanadas, os escorregas e os baloiços, caixotes do lixo, bicicletas, mochilas e ténis: o plástico multiplicava-se ao ritmo das passadas. Chegada à redacção, fiz a primeira cedência, tive de usar o cartão (de plástico) para entrar no edifício. Poucos segundos depois cedi outra vez quando me sentei na cadeira, de lápis e caderno na mão para tirar apontamentos (naquela manhã tinha passado meia-hora à procura de um caderno que não tivesse plástico na capa). Não pude usar o computador e por isso não acedi ao email, não escrevi em Word nem fiz pesquisas no Google.
O gesto radical – que acabou com bolhas nos pés depois de quase sete quilómetros percorridos a pé naquele dia – tinha um propósito, mostrar que é impossível eliminar o plástico por completo. E isso não é necessariamente mau, concorda Will McCallum: “Não é que este material, que é barato, flexível e que pode salvar vidas, quando é utilizado em medicina, seja intrinsecamente mau. O problema é que desenvolvemos
uma cultura de desperdício centrada em produtos descartáveis.” Agora, de olhos postos na dispensa, percebo que o elefante na sala está espremido dentro do armário. Arroz, cereais, frutos secos, massa, açúcar, especiarias: tudo está envolto em plástico. Hora de ir às compras.
Compras em frascos
Ao segundo dia, a ida ao supermercado foi atribulada. Passei por vários corredores até perceber que não podia levar nem água ou refrigerantes, batatas fritas, iogurte ou tomate-cherry (que, na maioria das vezes, é vendido em caixa plástica). Reforcei a fruta e os legumes. Para não usar os sacos transparentes (usados para pesar) tive de fazer equilibrismo com maçãs, banana, abóbora e brócolos. Chegada a casa, olhei orgulhosa para a bancada: tinha uma faca de cabo de madeira, uma panela e água para fazer sopa. O entusiasmo esmoreceu quando liguei a varinha mágica – aí estava o plástico, mais uma vez. O desânimo foi-se repetindo nos dias que se seguiram quando usei uma frigideira e a tostadeira, ambas com cabos e pegas de plástico. Outras trocas alimentares foram fáceis de resolver: da água engarrafada para a da torneira, dos iogurtes em embalagem plástica para os de vidro, do café em cápsula para o moído tradicional (feito em cafeteira italiana). O comércio de bairro foi útil, ao terceiro e quarto dias de experiência, quando visitei a Maria Granel. Por aqui os clientes servem-se em sacos de papel ou em frascos e podem trazer as suas embalagens. Há cereais, leguminosas, especiarias e até bolachas caseiras na área de alimentação. A loja abriu em 2015, lembra Eunice Maia, sócia fundadora. Começaram com 240 produtos, hoje têm cerca de 600 nas lojas de Alvalade e Campo de Ourique, em Lisboa, mas também online.
A casa de Campo de Ourique tem um piso dedicado ao desperdício zero. Há óleos corporais a granel, pasta de dentes em frascos de vidro, champôs sólidos e, em breve, maquilhagem: “Será em madeira de bambu certificada e vegan e teremos batom, base, sombras e pincéis.” Trouxe risoto, legumes desidratados e bolachas em frascos de vidro. O risoto estava pronto para cozinhar e só teve um senão – a quantidade estava contada ao grão e não deu para repetir. No fim, a loiça foi lavada com escova de madeira e sabonete de citrinos. A espuma foi pouca mas a lavagem eficaz: repeti o exercício durante a semana e só não me habituei aos respingos da escovagem.
Nova legislação?
Apesar de as lojas a granel terem regressado existem restrições. Não podem vender arroz branco, por exemplo, porque se considera que é de fácil contaminação. Mas Eunice Maia, da Maria Granel, acredita que as normas se adaptarão e espera, no futuro, ter azeite, iogurte e leite fresco nas prateleiras da sua loja. “É um admirável mundo novo e o plástico tem os dias contados.” Em Portugal, há já vários empreendedores no negócio do sustentável. A área mais difícil de operar esta mudança, é a da cosmética, admite a Eco Escolhas. A loja online de venda de produtos ecológicos e biológicos, preocupa-se com os materiais: “Temos a marca Odylique que usa embalagens de plástico reciclado a partir de garrafas de leite usadas”, conta Andreia Granja, fundadora da loja que abriu em 2006. O consumidor está atento a outros produtos: discos desmaquilhantes e pensos higiénicos de algodão, reutilizáveis, são cada vez mais populares.
“A fruta tem mesmo de vir numa caixa de plástico?” perguntei num café. A resposta, positiva, veio logo acompanhada de uma série de justificações: era uma questão de higiene e de custos (o plástico é barato por oposição ao vidro ou à loiça que se partem). Ainda insisti, apresentei alternativas e sorri – do outro lado, o cepticismo. “Ó menina isso é muito bonito, mas não é fácil.” Eu que o diga que ao quinto dia tive de usar gravador numa entrevista – mas mantive os apontamentos a lápis. Aliada à redução do consumo de plástico e à reciclagem está a reutilização: prolongar a vida aos materiais. É o que está a fazer a Precious Plastic com máquinas injectoras, compressoras e extrusoras. O responsável pela revolução é Dave Hakkens, designer holandês que iniciou o projecto em 2013. É através de vídeos que ensina a construir estas máquinas e tem juntado ambientalistas, engenheiros, arquitectos ou simples curiosos de todo o mundo (também em Portugal) que querem dar vida nova ao seu lixo. A ideia é fechar o ciclo. Em vez de ir para o lixo, o plástico vai para dentro da máquina – e sai em forma de fruteira, azulejo ou pulseira.
LEVEI FRASCOS DE VIDRO À LOJA PARA COMPRAR RISOTO E LEGUMES DESIDRATADOS PARA O JANTAR