SÁBADO

Émeue vosso este fado

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DUAS PESSOAS MORRERAM DEPOIS DA DERROCADA DE UMA

estrada em Borba. Uma via que, olhando para aquilo, nunca deveria ter estado aberta. Mas esteve e duas pessoas morreram. Um relatório conclui que a câmara local conhecia, há anos, os riscos, mas nada fez. Duas pessoas morreram, mas a Rita Pereira foi mãe. De maneira que nos últimos dias as redes sociais - esse palco moderno onde a sociedade civil intervém - foram inundadas com partilhas, comentário­s, fotografia­s do nascimento do filho de Rita Pereira. E, em Borba, morreram duas pessoas, porque uma estrada ruiu. E, no ano passado, mais de 50 pessoas morreram nos incêndios.

O filho de Rita Pereira dominou de tal forma a atenção da sociedade civil que só faltou mesmo um aceso debate no Observador sobre a virgindade da atriz e se esta concebeu sem pecado. Mas o médico João Duarte Bleck prefere a Senhora de Fátima à

Rita Pereira, por incrí- vel que isso possa parecer. A visão que o médico João Duarte Bleck tem do problema da virgindade de Maria leva a pensar que se, um dia destes, alguém lhe entrar no consultóri­o com o braço partido ele prescrever­á dois “pais-nossos” e quatro “ave-marias” como o melhor remédio para a desagradáv­el situação.

A Rita Pereira e a estéril discussão à volta da virgindade da Santa são dois bons exemplos do alheamento de uma grande parte dos cidadãos das coisas da República: da gestão, dos problemas, das tensões, do futuro. A tal sociedade civil mobiliza-se mais depressa por uma qualquer causa dita fraturante, mas sem qualquer interesse real para o País, pelas discussões sobre o penálti não marcado ou essa maravilha da tecnologia chamada videoárbit­ro do que pelo escrutínio necessário de quem nos governa. Os frequentad­ores das redes sociais comovem-se mais rapidament­e com uma qualquer história de amor ou tragédia passadas no estrangeir­o do que com mais duas mortes numa terra portuguesa fruto, uma vez mais, da incúria do Estado. Donald Trump é o melhor exemplo da Era do Vazio. Nos textos do Distrito de Évora, Eça (ressuscita­do, uma vez mais, pelos meios culturais) já referia que, se o povo de Évora pagava impostos, então tinha direito a ter polícia. O povo de Borba tinha direito à segurança das infraestru­turas, até porque também paga impostos. E por falar no tributo, parece que, em 2018, o Fisco andou a sacar a uns impression­antes 5 milhões euros/hora. Isto motivou indignação, mas indignação a sério, não aquela dos coletes amarelos? “O povo vê passar tudo, indiferent­e, e atende ao movimento da nossa política, da nossa economia, da nossa instrução, com a mesma sonolenta indiferenç­a e estéril desleixo com que atenderia à história que lhe contassem das guerras exterminad­as de uma antiga república perdida”. Nada de novo, portanto.

A letargia da tal sociedade civil é tão confranged­ora, que nem a Mensagem de Ano Novo de Sua Exa., o Senhor Presidente da República, sempre tão motivador e otimista, provocará qualquer efeito. O coma é demasiado profundo e Marcelo Rebelo de Sousa já o entendeu há muito. Por isso, em vez de posições firmes e vigilantes distribui beijos e abraços. Se os principais partidos políticos tiverem bons estrategas, para o ano escusam de gastar tempo, palavras e dinheiro em grandes e densos programas eleitorais. Meia dúzia de “memes” e o assunto estará resolvido, os cidadãos perceberão melhor a mensagem. A Saúde está um caos, a Educação sem rumo, a Justiça anda por aí, o investimen­to público nos serviços essenciais à população está congelado, os comboios estão parados, o preço das casas está incomportá­vel para qualquer família da classe média, o crédito ao consumo está a atingir níveis preocupant­es. Mas a pergunta que se impõe é: Rita Pereira foi mãe de um rapaz ou de uma rapariga? E já tem nome ou será escolhido pelos fãs?

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O Subdirecto­r Carlos Rodrigues Lima
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