SÁBADO

A normalidad­e da loucura

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MANUEL ALEGRE ESCREVEU QUE “HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE

resiste, há sempre alguém que diz não”. Poeta com esperança, Alegre procurou nas palavras o ato de revolta contra um sistema instalado num País em que o vento preferia “calar a desgraça”, nada dizer, quando questionad­o sobre as últimas novidades. Para bem da sua sanidade mental, é bom que Alegre não insista. Se os versos do poeta fizeram todo o sentido naquela infeliz época da História de Portugal, a evocação do poema nos dias que correm só nos pode conduzir a uma gargalhada ou à depressão como o melhor remédio para combater a alucinação coletiva que por aí anda. Tudo começou com a presença na televisão do ex-condenado, atualmente investido no papel de Motard do grupo “Bandidos” (classe!), e ativista social de extrema-direita através da plataforma por ele criada, qualquer coisa como Nova Ordem Social.

Claramente inspirado nos últimos filmes de A Guerra da Estrelas ea Primeira Ordem, Machado criou um animado rebuliço nas redes sociais, o que até levou à publicação de uma carta aberta subs- crita por umas quantas alegadas personalid­ades. “O racismo e o fascismo não passarão!” foi o grito de guerra do documento, que acusou a TVI e os apresentad­ores Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira de promoverem a xenofobia e o racismo. Só faltou mesmo a homofobia.

O que estas (alegadas) personalid­ades não entendem é que um tipo como Mário Machado não só pode, como deve estar presente no mainstream televisivo, pois só aqui é que poderá ser confrontad­o com a estupidez do que defende, com o seu passado, com as suas contradiçõ­es, com a anormalida­de da apologia da violência, do racismo e da xenofobia e não apenas como um tipo com “ideias polémicas”, uma espécie de “Gajo de Alfama” do Gato Fedorento. Se assim não for, e com a atual facilidade de comunicaçã­o, Machado e os seus companheir­os continuarã­o no subterrâne­o a fazer mera propaganda, sem crítica, sem contraditó­rio. Rapidament­e, porém, como qualquer boa polémica alimentada nas redes sociais, o assunto do dia deixou de ser o Machado, passando para o Presidente Marcelo e o telefonema para a Cristina Ferreira. Veja-se que Sua Exª até interrompe­u uma reunião, a qual, presume-se, não devia ser sobre nada de importante. Fez bem, fez mal, foi assim-assim, devia ter feito, não devia? E assim nos entretivem­os, enquanto, por exemplo, a ala pediátrica do Hospital de São João no Porto continua na mesma e há uma lista de espera de mil dias para uma consulta de cardiologi­a no Serviço Nacional de Saúde. Houvesse tantos posts e comentário­s contra o aumento dos combustíve­is, dos transporte­s públicos (e da falta destes para responder aos problemas concretos das pessoas), da falta de enfermeiro­s e médicos nos hospitais ou do preço das taxas de justiça e Mário Centeno já tinha libertado até uma verba para comprar vasos para o novo aeroporto de Beja. Podem procurar, porque sobre estes temas não vão encontrar indignação ou inflamadas petições à Assembleia da República. Neste capítulo, a “Recusamos a presença de José Sócrates como comentador da RTP” ainda continua a liderar o top das petições mais subscritas, seguida da “Fazer justiça pela morte do Simba”. Mais uns dias e ainda vai aparecer uma “Queremos Mário Machado confinado ao Facebook, Twitter e Instagram, nada de televisão, nem mesmo no canal Mais Kizomba”. Agora resta ao Presidente telefonar ao Goucha a anunciar que vai receber Mário Machado em audiência.

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CORREÇÃO: Na passada semana, referiu-se, infelizmen­te, por diversas ocasiões que morreram duas pessoas na derrocada em Borba. Na verdade, foram cinco. Aos leitores e às famílias, as nossas desculpas.
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Subdirecto­r Carlos Rodrigues Lima O
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