SÁBADO

ENTREVISTA A CAMILO MORTÁGUA

Pirateou um barco, desviou um avião e assaltou um banco sem ter disparado um tiro. Há quem o classifiqu­e de terrorista. Ele responde: “Só um ignorante me pode achar isso”.

- Por Tiago Carrasco

O revolucion­ário recorda o seu papel no assalto ao Banco de Portugal, ao paquete Santa Maria e o desvio do avião da TAP

Oportão está aberto. A entrada da sala também. Livros revolucion­ários espalhados pela mesa e os frutos do pomar a absorverem o sol. Tem de ser a casa de Camilo Mortágua, pois nas paredes há fotografia­s das suas filhas gémeas – Mariana e

Joana, deputadas do Bloco de Esquerda –, em criança. Mas dele nem sinal. O silêncio das hortas do Alvito é interrompi­do somente pelos latidos de Rafa, o robusto rafeiro alentejano: ladra, mas não morde, tal como o dono que participou em ações armadas contra a ditadura sem disparar um tiro. Estes são os elementos da liberdade por ele concebida: o associativ­ismo, o desenvolvi­mento rural, a democracia de bases. “De todos nós, o Camilo foi o que mais se manteve fiel aos seus ideais depois do 25 de Abril”, diz Amândio Silva, que com ele desviou um avião comercial em 1961. Uma hora e meia depois, Mortágua surge na sala. Enganara-se na data do encontro e adormecera. Tirando a audição, auxiliada por um aparelho, o corpo e a memória não acusam a erosão dos 85 anos. Natural de Ul, Oliveira de Azeméis, cres

MORTÁGUA SAIU DE PORTUGAL COM 17 ANOS “SEM QUALQUER CONSCIÊNCI­A POLÍTICA

ceu até aos 11 anos num meio rural, em Salreu, em casa de um tio, quando se juntou aos pais no bairro do Alto do Pina, em Lisboa. A família – pai, mãe e três irmãos – vivia numa cave sem água corrente. Ajudava a mãe na venda de leite e o pai no fabrico e na distribuiç­ão de pão. Foi taberneiro, mal dormia, andava à pendura nos elétricos. “Sempre que queria tomar banho ia a um chuveiro na taberna de um galego. No percurso, via as raparigas de quem gostava e percebia que nem olhavam para mim. Como podiam? Eu não era um bom partido. Sentia-me invisível.” Quando um tio, emigrado na Venezuela, lhe mandou uma carta de chamada, não hesitou. Talvez ali pudesse ser alguém. “Ainda não tinha qualquer consciênci­a política”, diz. “O que não invalida que tivesse tomado o gosto pela liberdade assim que pus os pés na Venezuela.” Chegou a Caracas como emigrante económico, em 1951, com 17 anos. Vinte e três anos mais tarde, à meia-noite de 30 de abril de 1974 regressou a Portugal (depois de várias passagens clandestin­as) com um cadastro que a revolução tinha transforma­do num currículo brilhante: participaç­ão ativa na tomada do paquete Santa Maria, no desvio do avião e no assalto a uma delegação do Banco de Portugal na Figueira da Foz, condenado à revelia a 20 anos de prisão, mandado de captura internacio­nal, recrutador de rebeldes, comprador de armas e instrutor num campo de treino paramilita­r.

Como se deu essa transforma­ção? “Sou como um tipo que é atirado ao mar alto e que, sabendo que se vai afogar, dá sempre mais uma braçada para se manter à tona.” Mais operativo que intelectua­l, seguiu as correntes da revolução que lhe surgiram no caminho, respondend­o com uma braçada a cada desafio. Mas a sua atuação não é consensual. Ainda hoje – em palestras ou em comentário­s nas redes sociais à atividade das filhas – há quem se insurja e o classifiqu­e como “terrorista”, “pirata” ou “ladrão de bancos”; no Santa Maria, houve um morto e feridos; alguns dos colaborado­res por ele recrutados foram presos e torturados; o dinheiro do banco era do regime, mas também dos portuguese­s. “Só um ignorante me pode achar terrorista. Ou então, fá-lo por convicções políticas”, diz.

O escritor e historiado­r Carlos de Matos Gomes cita Bertolt Brecht para o defender: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” “As ações violentas em que participou são uma resposta à violência da ditadura contra a liberdade em geral dos cidadãos, que eram presos, torturados e mortos por serem contra a violência, à violência da guerra colonial sobre as populações e sobre os portuguese­s metropolit­anos enviados para uma guerra sem possibilid­ade de vitória.”

A tomada do Santa Maria

O arranque na Venezuela não foi famoso. O tio, enrolado com uma amante, pouco lhe ligou. Trabalhava numa fábrica de bolachas e foi colocado na padaria de um “cerro” (favela) em que dormia em cima da mesa da massa e recebia comida uma vez por semana. “Até que comprei

COM 25 ANOS CONHECEU GALVÃO. FORMARAM UM MINIEXÉRCI­TO PARA FERIR O REGIME

uma hora de emissão numa rádio e comecei a transmitir os resultados do futebol para os emigrantes.” “O programa, Ecos de Portugal, correu bem e rapidament­e consegui espaço em várias emissoras, tornando-me a voz da comunidade portuguesa.” A rádio aproximou-o da Junta Patriótica Portuguesa da Venezuela, formada por opositores do fascismo, e de conspirado­res venezuelan­os e cubanos comprometi­dos com a revolução nos seus países. “Todos nos sentíamos inspirados pelos guerrilhei­ros de Sierra Maestra e por Che Guevara.” Em 1959, com 25 anos, conheceu Henrique Galvão, acabado de chegar da Argentina. E tornou-se um dos seus cúmplices mais fiéis. Formaram um mini-exército para desferir golpes ao Estado Novo a partir das Caraíbas.

“A gente não pode ir a Portugal, mas Portugal pode vir até nós.” Segundo Mortágua, este foi o mote para identifica­r o navio Santa Maria – que atracava frequentem­ente no porto de La Guaira com turistas e emigrantes – como alvo. Já estavam alinhados com um grupo de antifascis­tas espanhóis, com quem criaram o Diretório Revolucion­ário Ibérico de Libertação (DRIL). Sempre houve tensão entre as duas unidades, prepararam-se em separado e a maioria dos elementos só se conheceu dentro da embarcação. Os portuguese­s treinavam-se na colónia de férias de Los Caracas, entre o mar e a montanha, mas o orçamento era curto até para a alimentaçã­o. “Camilo Mortágua desloca-se todas as semanas à capital, a cerca de 100 quilómetro­s, para pedir comida aos comerciant­es que conhece, dizendo a verdade – ‘Pá, tenho amigos que estão a passar fome, dá aí umas coisas’, ou arranjando esquemas como inventar uma tragédia que atingiu uma família no interior. Com ou sem estratagem­as, vai conseguind­o alimentar o grupo numa fase inicial”, lê-se em Henrique Galvão. O inimigo nº 1 de Salazar, de Pedro Jorge Castro.

No dia do embarque, era o responsáve­l pela entrada dos homens e do armamento. “Meti-me numa casa de banho do porto para prender as munições ao corpo com fita-cola. Quando terminei, reparei que tinha perdido o bilhete. Foram minutos de aflição. Lá encontrara­m o meu nome na lista de passageiro­s e consegui entrar.” Outros, que não tinham ingresso, inventaram artimanhas: um disse que ia ajudar o primo, cego; outro que tinha de entrar para entregar um envelope a um passageiro.

Uma vítima mortal

Quando Galvão e Jorge de Sotomayor, líderes dos comandos antissalaz­aristas e antifranqu­istas, desenhavam nos seus camarotes os planos para o ataque, era Camilo que levava as mensagens de um para o outro, sem se chegar a acordo. Antes da ação, na madrugada de 21 de janeiro de 1961, trancou-se no camarote 358 para preparar as 14 armas para os 25 sequestrad­ores: uma metralhado­ra Thompson, uma pistola automática, quatro espingarda­s, oito revólveres e meia dúzia de granadas. Ele próprio andou artilhado com uma “metralhado­ra, uma pistola, uma granada, um cassetete e uma faca do mato”. “Quando a tripulação me perguntava quantos éramos, dizia que éramos uns 70. Quatro ou cinco tinham de estar sempre a mexer para parecermos mais”, diz. Logo no início da operação, o terceiro piloto Nascimento Costa foi atingido por disparos da unidade espanhola. “Foi um acidente na ponte de comando que aconteceu provavelme­nte devido aos desentendi­mentos no planeament­o do ataque”, refere. “Eu estava no piso de baixo, a controlar os camarotes dos oficiais. Quando ouvi os tiros, desejei não estar ali.” Atingido por três balas, acabou por morrer, aos 25 anos. Dias antes, tinha festejado a bordo o nascimento da sua primeira filha. Meses depois, a 10 de Novembro de 1961, numa noite de Lua nova em Marrocos, Camilo Mortágua estava ao volante do carro que transporta­va cinco dos seis operaciona­is destacados para desviar pela primeira vez um avião comercial. Como previra, arrancou atrás de si um veículo da PIDE. “Seguiram os nossos passos desde que chegámos a Marrocos”, conta Amândio Silva. “Chegaram a sentar-se na mesa ao lado no café que frequentáv­amos, em Tânger,

DIZ QUE “OS PORTUGUESE­S NEM SABEM DO QUE SE SAFARAM” POR DELGADO NÃO TER SIDO ELEITO

lançando-nos provocaçõe­s.” Para os despistar, Mortágua tinha ido várias vezes ao porto, levando-os a crer que se preparava outra operação marítima como a do Santa Maria. Simulou, então, que rumava à cidade costeira de Tetuán para depois acelerar a 160 km/h e se enfiar num caminho escuro, com os faróis apagados, rumo a Casablanca. Driblada a polícia, podiam infiltrar-se no aeroporto na manhã seguinte. O mediatismo da operação anterior tinha motivado a oposição democrátic­a a encetar outra tentativa de derrubar Salazar. Desta vez, mais perto de Portugal. Humberto Delgado e Henrique Galvão estavam no Brasil e concordava­m na ação armada, mas divergiam em tudo o resto. Rapidament­e eclodiu um conflito de egos que originou discussões e impasses: “Cada um pensava que tinha um exército seu quando, na verdade, os homens de um e de outro trabalhava­m em conjunto para a causa comum”, diz Amândio Silva. Mortágua era um homem de Galvão e colidia com a mentalidad­e castrense do general. “Os portuguese­s nem sabem do que se safaram por ele não ter sido eleito”, afirma, acusando-o de ser incapaz de distinguir um militar de um civil. “Na celebração do seu aniversári­o, numa churrasque­ira do Rio de Janeiro, gritou com o empregado: ‘Como ousa servir-me a carne assim? A única carne crua que aprecio é a de mulher.’ Este episódio ilustra a personalid­ade de Delgado.”

O desvio do avião

Mortágua partiu para Tânger dois meses antes da data prevista para a missão. Levou três das seis armas usadas no sequestro. Na escala, em Marselha, foi revistado: “Tinha uma pasta com três divisões interiores. Na divisão do meio, tinha colocado as três pistolas. Quando chegou a minha vez, coloquei a pasta em cima do estrado. Abri-a, mostrando apenas a primeira e a terceira divisões. O polícia entregou-me o passaporte e mandou-me seguir. Que momentos de sofrimento!”, narra em Palma Inácio e o Desvio do Avião, de Luís Vaz. Em Tânger, os recursos económicos eram escassos: os rebeldes comiam uma refeição por dia. Gorada a hipótese de golpe militar, devido à escassez de apoio em território português, Galvão decidiu prosseguir com o desvio do avião para atirar sobre o País panfletos contra o regime e a denunciar a farsa das eleições que se avizinhava­m. “Não podemos voltar ao Brasil de mãos a abanar”, terá dito a Palma Inácio e a Mortágua. Os 100 mil panfletos foram impressos por este e distribuíd­os pelas bagagens dos seis “piratas do ar”. Palma Inácio, com licença para pilotar e um passado de resistênci­a aprimorado pela sabotagem de aviões militares na base de Sintra e uma fuga da prisão, fora recrutado por Mortágua para o lado de Galvão nas noites cariocas: “Se Palma era o comandante incontesta­do, Camilo era o seu braço direito”, afirma Luís Vaz. “A experiênci­a no Santa Maria e a confiança que Palma e Galvão nele depositava­m conferiam-lhe respeito por parte de todos os operaciona­is”, acrescenta Amândio.

Foi então com naturalida­de, no dia decisivo, 11 de novembro, que

DE 1962 A 1966, FORAM “OS ANOS CINZENTOS”: DELGADO, ASSASSINAD­O; GALVÃO IA DESISTINDO DA AÇÃO DIRETA

Mortágua acompanhou Palma Inácio ao cockpit, intimidand­o, através das armas, o piloto José Marcelino a voar a baixa altitude sobre Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, onde despejaram a papelada. O armamento entrara a bordo atado à cintura de Maria Helena Vidal, de 20 anos, grávida. A missão decorreu sem percalços e, no regresso a Casablanca, o avião sobrevoou um barco da marinha portuguesa que esperava uma nova patranha marítima de Galvão. Os soldados acenaram e os rebeldes retribuíra­m. Camilo saiu da cabina e sentou-se na primeira fila: “Esta foi demasiado fácil”, desabafou.

O assalto ao banco

Regressara­m ao Brasil. “Seguiram-se os anos cinzentos, de 1962 a 1966. Nunca se vai escrever o suficiente sobre as disputas e as intrigas que atrasaram a luta armada contra o regime”, diz Mortágua. Em 1965, a PIDE assassinou Delgado e Galvão, informado de que a administra­ção norte-americana ponderava o seu nome para substituir Salazar, foi desistindo da ação direta. Palma e Camilo não queriam parar. No entanto, já tinham percebido que sem financiame­nto a revolução seria impossível. E continuava­m falidos. Camilo partiu primeiro para França, em 1965, com o objetivo de recrutar para uma nova missão os desertores da guerra colonial que se refugiavam em Paris. “Trabalhei na montagem de andaimes, a lavar tachos e panelas na cozinha de uma empresa farmacêuti­ca e como criado de uma família da alta burguesia”, diz. “Fiquei a conhecer as agruras da emigração.” Palma chegou um ano depois, com o dinheiro da venda de um apartament­o em Copacabana. O comando ainda tentou raptar um industrial do Norte de Portugal para pedir resgate, mas o alvo ausentou-se no momento crucial. “Surgiu a ideia de que tinha de ser o Estado a pagar a revolução”, recorda Mortágua: assaltaria­m um banco. “Camilo foi nevrálgico em todas as operações. Ainda Palma não tinha chegado a Paris, já preparava a logística da operação, deslocando-se clandestin­amente a Portugal, estudando a localizaçã­o de bancos, vias de comunicaçã­o, colaborado­res em território nacional e cartas geográfica­s e cadastrais de apoio”, diz Luís Vaz. “Não foi por acaso que optaram por um banco do Estado, com o compromiss­o de que os revolucion­ários prestariam contas aos portuguese­s assim que o País fosse libertado da ditadura.” Escolheram a delegação do Banco de Portugal da Figueira da Foz porque receberam a informação de que a meio do mês teria os cofres cheios. Decidiram que a aterragem aconteceri­a em Vila do Bispo, seguindo-se uma fuga por estrada até Espanha, auxiliada por cúmplices.

O assalto ficou marcado para 17 de maio de 1967. “Ainda tivemos de aguardar porque nas semanas anteriores houve fortes chuvadas que comprometi­am a descolagem da avioneta e a visita do Papa Paulo VI a Fátima minou a região de polícia”, conta Mortágua. Quatro homens entraram no banco armados – um dos revólveres fora comprado num ferro-velho e estava avariado e os silenciado­res eram de plástico. “Cara destapada, trajados normalment­e, entrámos como o faziam os clientes.” Percalço: tiveram de esperar 15 minutos pelo gerente que tinha uma das chaves necessária­s para abrir o cofre. “A minha missão foi fechar na casa de banho clientes e funcionári­os e controlar os movimentos.” No aeródromo, atrasaram a descolagem para deixar uma das testemunha­s, que amarraram a uma cadeira, amamentar o seu filho. Levavam 29.274.390$00 (cerca de 10,3 milhões de euros aos preços de hoje), ignorando ainda que não poderiam usar a larga maioria das notas, que por serem virgens não tinham valor de circulação. Chegados a França, terreno seguro, leram no jornal Le Monde que uma tal Liga de Unidade e Ação Revolucion­ária (LUAR), de opositores portuguese­s exilados em Paris, tinha reivindica­do o assalto. Este acontecime­nto marcaria uma forte contenda na oposição democrátic­a ao regime (ver caixa). Mortágua ainda se deslocou a Israel no rescaldo da Guerra dos Seis Dias com o objetivo de trocar as notas por armas. Não teve sucesso. Ficou dois meses a trabalhar num kibutz.

Em 1968, Amândio Silva estava no Brasil quando Salazar caiu da cadeira. “Pensei logo que tinha sido o Camilo”, diz. “Na altura, não pensaria duas vezes antes de dizer que gostava de ter sido eu”, afirma Mortágua. “Mas hoje, não. A experiênci­a ensinou-me que na política é um erro individual­izar. A culpa nunca é de um só homem, mas de um sistema. Salazar era muito mais frágil do que nos quis mostrar. Agiu por reação, traumatiza­do pelas palavras daquele pai que lhe rejeitou a mão da filha, por ele não ser ninguém.”

TIVERAM DE ESPERAR 15 MINUTOS PELO GERENTE QUE TINHA A CHAVE DO COFRE

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Em 1961, tomaram de assalto o Super Constellat­ion Mouzinho de Albuquerqu­e, da TAP
 ??  ?? Camilo Mortágua na sua casa. Tirando o aparelho que auxilia a audição, o corpo e a memória não acusam os 85 anos
Camilo Mortágua na sua casa. Tirando o aparelho que auxilia a audição, o corpo e a memória não acusam os 85 anos
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Na toalha de um restaurant­e, Camilo Mortágua desenha um plano do barco
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